OS BIGODES DO CORONEL
O tempo já havia arranhado seu rosto com a ferocidade de um tigre em jejum há três dias. Os sulcos desenhavam vales profundos em sua face, escondendo lá embaixo, seus medos, e crimes, e maldades, e amores e misérias e temores a Deus. Era como se toda essa experiência de dores e do mal que acumulara ao longo da vida, fosse se protegendo em seu rosto, criando um muro áspero de peles envelhecidas, para esconder tudo, principalmente aquilo: o rubor dos seus mais depravados desejos escondidos. Como este, que agora tomava e queimava sua face ao cruzar com a visão de Manuela, então na flor dos seus 15 anos. Mas o coronel Silvério não era homem de saliências em público. E muito menos com a filha mais nova de seu capataz, capitão do mato e o único que não tremia nas calças quando a coronel torcia os cantos dos seus bigodes, já que, - e por isso mesmo - era ele quem cumpria as ordens e sentenças do coronel.
E necessário que se fale sobre o medo que se instalava em todas as pessoas, da vila e daquelas extensões de terras da fazenda Jabuticaba, quando o velho Silvério bigodeava. Quem estava fazendo alguma coisa acelerava os passos e agia ruidosamente para que o coronel - já também meio surdo - percebesse que estavam à postos. Quem não estava, caçava o que fazer nas urgências que o medo provocava naquela gente pobre, negra, humilde e aprisionada nas desesperanças. Porque verdade seja dita: quando o coronel cofiava aquele amontoado horizontal de pelos brancos amarelados pelo fumo - e que cultivava desde a juventude entre a boca e o nariz - algum coisa ruim ele iria praticar até o final da noite, quando então saborearia um licor com a esposa, dona Candinha, senhora das honras mais distintas e predicadas.
O coronel sabia muito bem que não era para seu bico aquela pequena fruta brejeira que corria brincando e rindo com as crianças defronte à casa grande. A menina, em sua inocência, mal desconfiava do interesse do coronel pela algazarra que todos faziam nas brincadeiras dominicais. Sentado ali na cadeira de balanço da varanda, ele ia e voltava com seus pensamentos de ignominias e infâmias. Bigodeava. O menino Lazinho, que estava ali em frente, tirando uns pés de mandiocas, viu e se benzeu. Não por medo, nem nada, que ele se avantajara nos livros e já era capaz de superar estas crendices de deuses, tanto os dos brancos quanto dos negros. Mas fez o sinal só para mostrar ao coronel que não era bobo nem nada e que enxergava de longe suas intenções. O coronel percebeu sua benzeção dissimulada. “Esse negrinho já está me indo além da conta. Merece uma coça”, pensou ele.
Mas logo a ideia sumiu nos labirintos do pensamento do coronel, porque Manoela começou a gargalhar de alguma troça e ria tão gostosamente bela, tão intensamente sôfrega, que seus seios pequenos pulsavam como jovens e adocicadas peras dentro do vestido de chita. Para o coronel eles estavam querendo, pedindo - quase implorando - pular para fora da roupa. E o coronel, sulcando suores, olhava e pensava o que poderia fazer diante daquele esplendor da força da natureza que começava a despertar no corpo de Manuela. E constatou, seguramente, que aquele fogo ainda nos seus primeiros arderes conseguia fazer milagres como aquele: o de aumentar o volume na braguilha de suas calças. Homem afamado por conquistas e violências praticadas contra as mulheres da vila, da casa grande e da senzala, sentia saudades dos velhos tempos da volúpia e do desejo ardente. E sonhava libertinagem de fazer Sade corar. Mas desejo é uma coisa que as vezes traz para gente o diabo em pessoa. “Que venha, oxê“, pensou o coronel matutando como iria levar a cabo aquele desejo inconfesso. Estava disposto a desafiar infernos e perigos. Depois, deu um grito para Lazinho.
– “Vem cá negrim!”
Verdade também seja dita: o velho tinha uma predileção especial por aquele menino de uns 15 anos, que ajudava a avó na cozinha da casa grande. Essa predileção vinha desde pequeno, por ele ter a capacidade de ficar olhando o fogo por muito tempo na cozinha, e depois dizer para a avó o que coronel gostaria de comer nas refeições do dia. Pois não é que o desgraçado do negrinho sempre acertava? Vai que daí, com o tempo, o coronel tomou gosto por ele. Alfabetizado por dona Candinha na mesma época que alfabetizara o filho, Lazinho não parava um segundo de ler. Lia tudo. Por isso, o coronel o deixou bulir com as revistas que chegavam da capital com as últimas notícias, com os jornais velhos que serviriam para ascender o fogo no fogão, e deixou até ele bulir nos livros, que se não fosse ele, morreriam virgens de olhos na estante de madeira de lei que embelezava a casa do coronel. Sim, o velho gostava de Lazinho que gostava de livros. Estas ideias dos saberes, ele tinha em quantidade muito mais que suficiente para sua idade. Acontece que Lazinho também gostava de outra coisa além de livros. E esta outra coisa tinha um nome: Manuela.
- “Pois não, coronel”, disse o negrinho escondendo o chapéu nas costas, como que para mostrar um respeito que, na verdade, ele já não tinha por homem algum. E o coronel então perguntou: “ Vamos, diga, negrim, o que eu quero comer hoje? ”. E Lazinho, depois de olhar alguns instantes no fogo do cigarro de palha que queimava no canto esquerdo dos bigodais do coronel, sussurrou em seu ouvido: “Manuela”.
Ora, era um caso para destemperanças! O coronel enrubesceu-se! Poderia até sangrar as carnes daquele fedorento ali ó, no coração, sem as misericórdias que nunca lhe foram frequentes! Mais: poderia colocá-lo no tronco. E marcá-lo na testa. E fazê-lo engolir um ovo fervendo! Mil demônios assopraram no ouvido do coronel as vinganças mais cruentas. Mas o mal do desejo, como já foi dito anteriormente, e que ele as vezes trás o diabo junto. E o coronel aquietou-se. Pensou que Lazinho, sabendo desse desejo por Manuela, poderia vir a ajudá-lo de alguma forma na conquista da moça. Vai ver o moleque até já estivesse bicando sua flor. E por este motivo, somente por este motivo, deu-lhe com o cabo do relho na bunda, com força, gritando: “eu quero comer hoje é mandioca com torresmo, seu burro fidumaégua”. E deu-lhe mais três lambadas bem servidas, enquanto Lazinho corria embora pegar as mandiocas na frente da casa, com olhos humilhados ao ver que Manuela acompanhara toda cena.
O coronel já andava bem enrugado, meio surdo, mal das pernas, é verdade. Por isso, ninguém estranhou muito quando ele começou a passar mal depois de fartar-se em mandiocas com paçoca de torresmo à mesa – e justamente quando já entrava nos licores com dona Candinha, senhora das honras mais distintas e predicadas. Primeiro foram os vômitos, náuseas e diarreias. Depois, convulsões com a dilatação da pupila. O coronel não entendia nada, blasfemava, olhava para um e para outro, como que indagando que diabo estava acontecendo Ninguém tinha resposta para dar ao coronel, na verdade. Todos choravam e lamentavam a demora do médico em vir desde a cidade até a fazenda.
Antes de entrar em coma, o coronel Silvério viu entre eles, com os olhos arregalados e contidos, o negrinho, arfando uns descompassos silenciosos, como se avolumasse informações preciosas na garganta.... Poderia sim, gritar a pleno pulmões: “o que mata o coronel é mandioca brava! E mandioca brava! ”. Mas não ousava propagar a informação contida a ninguém. Mesmo porque, a mandioca brava, fora ele quem colhera.
Foi neste momento então que o coronel Silvério, senhor de todas aquelas terras da fazenda Jabuticaba, homem conhecido e temido, viu o fogo brilhar nos olhos do negrinho. Percebeu, então, mui desgraçadamente, que entre o nariz e a boca de Lazinho, o imberbe se ausentava e já cresciam aqui e ali tenros fios de um incipiente bigode. Incipiente, mas não insuficiente o bastante para que ele não pudesse torcê-lo em suas extremidades. E assim pode perceber o velho - quando já se esgueirava pelas paredes do inferno - que o negrinho, quieto e meditativo, pela primeira vez, bigodeava