A outra lenda das ruas, um thriller
O Alvo, uma manhã qualquer
A ideia veio assim como vem todas as ideias embora depois não nos pareça que foi assim, do nada. Num jornal qualquer, um dia qualquer, uma manhã qualquer leu a notícia aterradora (nem mais aterradora nem menos aterradora do que outras tantas, mas essa em especial o atingiu em cheio): dois adolescentes em uma moto desceram de arma na mão, ordenaram ao rapaz – que tranquilamente comia um pastel na feira (e ele adorava comer pastel na feira) – que deitasse no solo e placidamente lhe meteram duas balas na cabeça; depois, como se nada demais tivesse acontecido, montaram na motocicleta e lá se foram, deixando atrás de si a dor e o desespero, a revolta impotente dos que assistiram aquela cena e nada mais.
O X da questão
A ideia surgiu (sumia, ia e voltava todo momento), nunca se ia definitivamente, estava lá. Ficou ruminando, acertando detalhes. Imaginou – provavelmente com toda razão – que muitos já haviam pensado nisso. Lembrou-se de casos vistos na mídia, especialmente uma senhora no interior - em uma cidade pequena – que em plena sessão de julgamento esfaqueou o vagabundo que ferira ou matara seu filho. Este era o X da questão – as pessoas assim ultrajadas às vezes agiam, mas impensadamente, por impulso, agiam e eram imediatamente dominadas, muitas vezes sem atingir o alvo. O Alvo.
Sem conexões
Pacto Sinistro (Strangers on a Train) é um livro escrito por Patrícia Highsmith, filmado por Hitchcock e se desenvolve a partir da teoria da troca de assassinatos “eu mato alguém que você queira; você mata alguém que eu queira – não havendo conexão entres os crimes, tudo se resolve da melhor maneira possível”. Que tal? Só que nesse caso não haveria pactos. Seria ele e só ele. Planejador e executor – sem testemunhas, sem conexões, sem rastros.
O executor
No período mais torpe da história recente do país, se engajara, não por ter ideais, mas porque precisava de grana e não estava disposto a “pegar no pesado”, a se esfalfar na luta diária de uma vida sem emoções. Flertou com a Marinha, é certo que nutria uma boa dose de afeição pelo mar, mas este arremedo de sonho era dispendioso e pensou que poderia haver batatas, provavelmente muitas batatas. Optou por outra Arma menos trabalhosa, ao menos no folclore, uma força extra digamos assim.
Não guardou quase nada desse tempo na memória. Muito pouco fez; muito pouco viu. Não enfrentou nada alarmante, nem distúrbios, nem colegas corruptos, nem revolucionários sanguinários. Passou como se não passasse, mas algo ficou – era um fenômeno nas aulas de tiro e nem sabia bem de onde viera esse talento. Recebeu um Colt cavalinho e saiu atirando extremamente bem (nos stands de tiro ao alvo primeiro). Quando houve o desligamento da corporação, começou a montar seu arsenal sem nenhum motivo especial, apenas pelo prazer de manusear uma arma. Desse tempo, ainda que de forma fugaz, houve um caso também. Uma garota, uma paixão adolescente. Branca, pele extremamente branca onde se viam as pequenas veias azuis, como um mapa sob a pele. Absurdamente delicada, andava ao seu lado no inverno, mas não viu a primavera esse amor. Nos caminhos incertos da vida extraviaram-se e nunca mais.
O Alvo – Creópa
Fazia frio no alvorecer do domingo.
Porto (sim, há um nome) navegava pela Internet quando viu a notícia – garoto fuzila dono de mercadinho e foge com o troco. Clicou e ampliou o texto que resumidamente dizia “cidade tal, região leste do Estado de São Paulo. Garoto de dezesseis anos invade mercadinho, rouba R$ 60,00 e detona o proprietário com três tiros certeiros. No momento do roubo mais duas pessoas estavam no estabelecimento, uma freguesa e a esposa do comerciante, que assistiram a tudo horrorizadas sendo que esta última, a esposa, está em estado de choque diante da barbaridade do crime. Segundo ela o marido, com quem estava casada há 04 anos, entregou todo dinheiro que dispunha sem esboçar a menor reação e mesmo assim foi assassinado. A Polícia investiga o caso.”
Caso. Será este o primeiro, pensou ele. Levantou, fez a higiene ritual, tomou um vigoroso café da manhã recheado de frutas e cereais, desceu para a garagem. Sob o banco, em um local especialmente preparado para isso, as armas e respectivas munições.
Ligou o velho, potente e discreto carro e saiu. No rádio, o Arquivo Musical, tocava “Me And Bobby Mcgee” (Yeah, Bobby shared the secrets of my soul). Na estrada havia sol e a velocidade era constante, sem pontos de parada, nada como viajar domingo de manhã! Por volta de 04h00 da tarde entrou na cidadezinha que procurava. Nunca tinha estado por ali. Parou num bar qualquer, pediu um salgadinho de vitrine e uma cachaça. Ainda uma vez olhou o sol.
Nenhum comentário, embora as pessoas o olhassem com curiosidade, como é natural em cidades do interior onde a presença de qualquer forasteiro é logo notada. Pra não deixar vestígios, nada perguntaria, seu alvo teria que esperar.
Levantando a caça
Registrou-se em um hotel de terceira. Ao subir para o quarto no segundo andar, sua primeira impressão foi de repulsa diante do odor terrível de naftalina mesclado a velhos suores, mas sabia que teria que ser assim.
No segundo dia saiu à caça.
Vagou pelas ruas, entrou em imobiliárias como se estivesse à procura de casa para alugar, indagou das casas e dos bairros, se o bairro era perigoso, quais bairros tinha mais “concentração de bandidos” e soube. Palmilhou a cidade e soube. Como em todas as cidades há divisões sociais, rapidamente captou os bairros que seriam mais propícios ao surgimento de delinquentes. Era, a princípio, um chute, um tiro no escuro, mas optou por uma região frequentemente citada em termos mais ou menos assim “quer alugar casa na cidade, então foge do bairro Santa Misericórdia que a coisa ali é braba”. Sendo assim, então devia ser por ali que a presa estava.
Santa Misericórdia
Era a degradação. Encravado aos pés de um morro, em uma cidade bonita diga-se, expandia-se o bairro pobre e sujo. Casinholas, algumas em alvenaria a maioria barracos, agrupavam-se desordenadamente em ruelas de traçado desigual. Cães, gatos, galinhas, crianças, ratos, moscas; gritos. Vai e vem de mulheres desgrenhadas, rotas. À porta de bodegas, homens vencidos.
Entrou em um dos “estabelecimentos” escolhido ao acaso e pediu uma cerveja que inacreditavelmente veio bem gelada. Olhares desconfiados o esquadrinharam, mas ninguém disse um ai. Vagarosamente tomou a cerveja, um olho no copo e o outro do outro lado da rua, vendo quem passava. Passou uma, passou duas. Ao efetuar o pagamento perguntou discretamente ao vendeiro “se havia por ali - e onde ficava - alguma casa de atendimento especial”. Havia sim, 150 metros, foi!
Encontrou um ambiente sórdido, fedorento decorado com uma grande quantidade de quadros (santos diversos, escudos de times de futebol), flâmulas, samambaias murchas, roupas penduradas, paredes descascadas e poucas luzes onde pode visualizar 03 mulheres que, em um sofá rasgado próximo a pequenos biombos cortinados esperavam a clientela.
Escolheu uma das meninas - sem muito falar.
A presa
Fez o que havia pra ser feito - sem repugnância ou carinho, precisava de informações e nada mais. Após, de forma absolutamente casual, comentou sobre pequenos ladrões e a probabilidade de que estes gastavam muito com elas - dinheiro fácil, claro. A moça tocou no fato de que roubavam muito, mas ganhavam pouco, gastavam pouco, pechinchavam demais. Ele falou em garotos que roubavam - e até matavam - por 50, 60 reais, vai comprar o quê com isso? Ao que ela emendou “pois é, vê aí o caso do Creópa”.
Eis aí. Um nome era tudo precisava. “Creópa foi o que fuzilou o comerciante dia desses, não é?”. Ela o fulminou assustada pelo repentino interesse, mas ele estava preparado “calma que eu não tenho nada com isso não, só comentei porque vi na TV”. Pagou e saiu, sem pressa. Na rua buscou ter certeza de que não era seguido, afinal, um desconhecido por ali, saindo de onde ele acabava de sair, era uma bela duma vítima e tornar-se vítima logo no seu primeiro caso seria no mínimo constrangedor.
O encontro
Nos dias que se seguiram, flanou por ruas, parques e botecos. Bebeu do gargalo. Corrigiu a tempo imperfeições no plano, estudou gestual, aprimorou a forma que queria ter para matar. Um andar canhestro, olhar de esguelha. Falar reticente. Cabelo solto, volumoso, solto. Marcas para possíveis testemunhas não esquecer.
Até que topou o alvo!
Uma rua tranquila, noite em meio, viu o sujeitinho desajeitado caminhando. Se aproximou e falou como se a ninguém se dirigisse: Creópa é? De onde vem esse nome esquisito?
O sujeitinho parou, mediu, titubeou em responder, mas, não viu perigo “não tinha cara de poliça”, respondeu atropelando as palavras de forma quase inaudível, como se as engolisse – minha mãe ouviu falar da história da cobra que picou a mulher gostou do nome e me deu e também porque é o nome da filha do cantor que ela mais gostava essa que é atriz de novela mesmo eu sendo menino.
Porto olhou pro menino – ainda era um menino – talvez tenha tido um lapso de remorso mas que não se avivou, sacou a pistola e atirou. Foi rápido. Enquanto o corpo magro caia, exalando um cheio forte – muito forte - o executor teve tempo de dizer: “não aprendeu até hoje, não aprende mais, imbecil! Vai pros quintos soletrando - é Cleópatra (destacou cada sílaba) seu burro!” Ao longe, fanho, um rádio (sempre um rádio, sempre) qualquer tocava o mais recente sucesso da banda de rock progressivo “in surto”. Os pensamentos e o real e o irreal tudo se atropelava, Porto lembrou-se vagamente do assassinato do vocalista; quem sabe mais um caso interessante, quem sabe. Caminhou na noite e sumiu no escuro. Enquanto caminhava sem pena, sem remorso, sem nada guardava ainda nas narinas – e pensou embatucando o motivo - o cheiro forte, nauseante que podia ser de suor malhado, de pele escura queimada, de esgoto remexido, de morte.
Deu de ombros, pois que tanto fazia como tanto faz se a noite é estúpida se a vida é lerda se o bar está fechado com água suja escorrendo na sarjeta e levando tudo, escoando uma realidade que em nada existiu. Assustador não é o deserto, assustador não é o mar; assustador não é o infinito cósmico, a montanha inóspita. Assustador é o homem, o que vai no coração do homem, e sua devoradora solidão.