UM CASO DE POLÍCIA

UM CASO DE POLÍCIA

A velha Paris dos 1800 estava aflita, uma sombra de medo e angústia incomodava os corações dos nobres e abastados -- havia também gente "de sangue azul" quase falida ou de poucas posses -- e por suas mentes circulava o terror de perder fortunas numa noite qualquer. Um ladrão ao estilo de Arsène Lupin passara a rondar castelos e mansões e a Gendarmerie ainda não conseguira solução alguma, nada tinham de concreto sobre os casos. Os jornais "tocavam fogo" no problema, pior, divulgavam em manchetes os feitos de HIPPÓLYTTE, o "Rei dos Furtos". Assim se denominava o desconhecido, em cartas anônimas pelos jornais e que continham -- além de dinheiro para pagar a taxa de publicação -- uma ridícula quadrinha anunciando mais um roubo executado com sucesso. O povo gargalhava nos quarteirões e esquinas, praças e feiras, bares e templos... satisfeitos em ver "pelados" duquesas e barões, condes e baronesas, ministros e bispos, toda a nobreza, enfim. Reforçaram-se janelas, ampliaram a guarda, tomaram outras precauções... tudo em vão. O miserável parecia conhecer cada canto das mansões que "visitava" alta madrugada.

As pesquisas da Polícia parisiense foram em vão... nas agências dos Correios nenhum indício relevante: ora era menino quem deixara a carta endereçada ao Jornal, em outra ocasião fôra uma jovem camponesa, velha mendiga, um beberrão conhecido nas redondezas e que, interrogado, disse ter recebido garrafa de bourbon apenas para postar a missiva na agência postal. Abusado, Hippólytte foi além das expectativas: postou nos Jornais foto de seu "Quartel General", digo, esconderijo... registro feito à distância, pelos fundos do prédio arruinado e com as cores originais trocadas propositalmente, dificultando a identificação de ruas e casas de um subúrbio dos mais pobres de Paris.

Junto à foto "Rei Hippólytte" acrescentou mais uma daquelas "quadrinhas" infames, que faziam a festa da população sacrificada, que odiava todo aquele luxo:

-- "Madame de Chantilly, / que tem tanta coisa boa, / há de perder hoje, aqui, / a sua bela coroa"!

Lady Isabelle de Montmartre y Chantilly apelou aos policiais, pagou-os regiamente e fez um cordão de isolamento ao redor da mansão. Noite alta, chega mais um contingente, meia dúzia de Dragões Reais do Conde de MontParnasse, que "arrastava asas" pela nobre e sonhava "juntar seus trapinhos" e os 2 sobrenomes pomposos. Traziam grande baú com armas e munições, mais farnel farto para resistir a longa noite de vigília. Isabelle viu-se muito grata, precisava retribuir a gentileza. Finda a noite sem incidentes, comemoraram todos a estranha vitória, a Condessa indormida indo ver com seus próprios olhos que seu cofre não fôra tocado, a coroa intacta lá e os Dragões a seu lado felizes com o bom serviço. Despediram-se todos, limpando mal e mal o salão onde beberam e comeram durante a madrugada, a coroa real valiosíssima, herança do bisavô, Príncipe dos Habsburgos, estava a salvo, continuava no cofre.

O dia seguiu monótono até a manhã seguinte, precisamente às 11 horas, quando o jornal "LE FRANCE SOIR" saía às ruas, para o prazer dos fofoqueiros. Lá estava a foto da coroa em cores, anúncio caríssimo, na cabeçorra meio disforme de um anão desconhecido, que ninguém em toda Paris jamais vira.

A duquesa foi logo informada por um cavalariço que estivera na feira pouco antes. Acordou de um cochilo como quem desperta de um pesadelo: com dor de cabeça e a sensação de que o teto desabara sobre si. Correu ao vasto salão, onde se achava o cofre, atrás de imenso retrato do bisavô real. Os dedos tremiam involuntariamente, enquanto girava o cone cheio de estrias e números... acionou a manivela da tranca interna, o coração na boca. Ah, celestial alívio... lá estava a maravilha ! Pegou-a delicadamente, pesava bem menos ! Expoz a jóia à luz do meio-dia que explodia em raios vindos da imensa janela... oh, céus, vidro barato pintado com esmalte para unhas, pedras incolores, imitações grotescas em suporte de alumínio banhado em ouro de poucos quilates. A nobre desmaiou !

Acordou cercada de policiais, o Inspetor-Geral a segurar-lhe as delicadas mãos de seda perfumadas. Agora sim, era um "caso de polícia", toda a Guarnição fôra feita de boba, ridicularizada como nunca antes. O conde Marcel DesChamps de MontParnasse acorreu, intimado pelo inspetor a explicar-se sobre os Dragôes:

-- "Sinto muito... não lhe enviei Guarda alguma -- os que tenho são insuficientes para o tamanho do meu castelo -- nem nada sei sobre o tal bilhete. Esse selo nele é FALSO"!

Convocaram, então, Monsieur GERÔME, o Cruel... da estirpe de detetives de escol como Poirot, o belga Maigret e o inglês Sherlock Holmes, embora menos famoso. Seu apelido nascera do sucesso de suas "caçadas": achava sempre quem procurasse, resolvia os mais intrincados enigmas, punha na cadeia (ou na forca) quem ousasse se interpor em seu caminho. Sempre de chapéu e bengala, longa capa num braço e o indefectível cachimbo na outra mão. Dispensou a foto colorida... poderia ser de qualquer bairro em dez cidades !

-- "RATO se pega com queijo... vamos dar-lhe o queijo" !

E traçou, apenas com o inspetor, o plano para chegar até o bandido. Dias depois os jornais estamparam manchete inusitada:

"A NOBREZA VAI AOS POBRES"! e, em página inteira, a explicação quase inacreditável de que os nobres em peso contribuiram com moedas -- algumas de ouro -- para diminuir a fome e a miséria nos bairros pobres de Paris. Uma carroça com vários baús abarrotados de moedas (as de ouro cintilavam entre outras, "menos nobres") seguiria em direção aos locais mais necessitados, na tarde do dia seguinte, sem escolta, apenas uma "charanga", reles Bandinha de subúrbio, com a participação da pobretada.

Dito e feito ! Para espanto da população, atônita com a novidade, lá se foi a charrete, baús abertos para calar os incrédulos ! Solitário senhor de chapéu e bengala a acompanhou a boa distância, sem pressa e "fumaçando" seu cachimbo. Como era de se esperar -- "não chegará na próxima esquina"!, profetizaram os mais céticos -- a carruagem foi assaltada. Meia dúzia de meliantes, ágeis e atléticos, afeitos ao tradicional Savate, disfarçados com máscaras e armados de facas e porretes puseram a Bandinha para correr, disparando êles com a carroça milionária. O senhor do chapéu não se abalou, seguia o fino rastro de farinha de trigo deixado pelo veículo, saco bem camuflado dentro do carro, encoberto por capim e feno, para despistar os mais prevenidos.

Mal caíra a noite e volta êle ao ponto final da carroça -- agora à cavalo e rodeado por 20 "gendarmes" bem armados e dispostos -- que cercam o velho Teatro abandonado, onde são presos quase sem resistência os saltimbancos e seu mentor e patrão, o anão Hippólitte. Muitos crimes se desvendam com seu depoimento à Polícia. Hippólitte esclareceu que seu pai fabricava cofres e êle aprendera TUDO sobre êles, as caixas-fortes não tinham segredos para o anão. Saíra da Itália pois em Roma não mais havia castelos a "limpar". (Entrava nas mansões dentro do baú, com fundo falso e portinhola interna, o bando disfarçado de trabalhadores variados, pintores, carpinteiros, etc.) Desfazia-se das jóias levando-as para ciganos em terras espanholas que, andarilhos, repassavam as pedras preciosas em outros países, sem levantar suspeitas. Moedas de ouro eram derretidas e transformadas em pequenas barras, transportadas em locais secretos, nas charretes.

O anão teve o fim que todo o que rouba nobre merece... a forca e seus asseclas foram condenados a trabalhos forçados. Ah, a foto "disfarçada" era realmente daquele Teatro abandonado há 3 ou 4 décadas, tirada a partir dos fundos. Monsieur Gerôme recebeu estátua em bronze, mandada executar pela duquesa e o busto dele enfeita a entrada da mansão.

Quanto ao dinheiro, não se perdeu grande coisa: os baús continham areia até quase a borda, fina camada de moedas baratas "os enchia" e mesmo as de ouro eram comuns, banhadas em tinta dourada. Gerôme "pagara com a mesma moeda" (?!) o truque da coroa falsa. Contudo, com os ladrões foi encontrada boa parte do butim de roubos anteriores.

"NATO" AZEVEDO (em 3/julho 2020, 6-17hs)