DUARTE

Carregando seus copinhos de café, saíram da delegacia para uma conversa particular o delegado e o agente de polícia recém-chegado na unidade. A última coisa que o novato desejaria é ser visto como leva-e-traz no meio de pessoas que arrancariam sua cabeça sorrindo. Sua transferência aconteceu por solicitação do delegado que o acompanhava, primeiro porque ele era um bom policial, coisa indispensável para uma delegacia de homicídios e, segundo, e mais importante, para fazer o que os outros agentes não conseguiram, que era trabalhar com o investigador de polícia Duarte, um homem difícil de lidar. Era o tipo de cara largado que gostava de jaquetas, cigarros e do seu Opala Ss preto, ano setenta e oito. Cada um ali na delegacia poderia relatar uma série de peculiaridades a seu respeito e divergir sobre quase tudo sobre sua pessoa, mas todos estavam de acordo quanto à eficiência de seu faro policial. Era também o tipo de cara desenrolado que não se importava em fazer o serviço sujo, de se meter na lama, no mato ou num buraco, de trocar tiro, de correr atrás de vagabundo, de se passar por traficante, subornar prostitutas ou ficar metido numa sarjeta madrugada adentro para levantar informações. Aliás, era o que ele gostava de fazer, dar o seu jeito, trabalhar em casos difíceis e que faziam seu sangue ferver. Era o que todos pensavam dele. Mas o que o novato viu no último serviço com o novo parceiro fugia completamente de tudo o que já tinha ouvido e do que estava acostumado a ver em outras operações, e pensou que Duarte poderia estar louco.

– Doutor, preciso lhe confessar algo – falou o novato para o delegado.

– Fala.

– Olha, tudo bem que o Duarte é uma lenda viva na polícia, que possui um tirocínio excepcional, que tem lábia...

– Nã nã nã nã! – interrompeu o delegado. – Olha novato, nem me venha com esse papo, você não queria vir pra cá?

– Calma doutor, escuta – continuou o agente. – Desde que eu entrei na polícia eu queria vir pra cá. O que eu sempre quis foi pegar criminoso de verdade, gente ruim, entende? Com o Duarte eu aprendi nesses dias o que eu não tinha aprendido nos últimos anos. Eu não sou um desses moleques criados pela avó, mas acredite em mim, o Duarte está pirando.

– Por que me diz isso? – perguntou o delegado depois do último gole de café.

– Você sabe como a gente pegou aquele traficante, o Chupa Cabra?

– Você sabe que eu não questiono o trabalho de ninguém, desde que não dê merda, porque também não vou tirar o de ninguém pra colocar o meu na reta. – observou o delegado desta vez levantando as sobrancelhas e acendendo um cigarro.

– É aonde eu quero chegar chefe, do jeito que ele faz qualquer hora vai dar merda – falou o novato acendendo também seu cigarro. – Escuta chefe, o Chupa Cabra a gente pegou porque caímos pra dentro da casa de um correria dele lá, um tal de De Menor, baseado em tudo que levantamos. Até aí tudo bem, mas quando é que imaginávamos que a mãe do moleque estaria também na casa? Sentada assistindo televisão enquanto o vagabundo tentava pular o muro. O Duarte o pegou pela nuca e o levou até a sala. Deu-lhe um tapa na cara e perguntou onde estava o Chupa Cabra. O moleque falou “Eu não sei Eu não sei” E foi aí que o cara surtou. Foi na mãe do moleque, segurou nos cabelos dela e disse com cara de psicopata “Olha De Menor, vou fazer um trato com você. Eu acho que você não merece apanhar, não mesmo! Me perdoa! Você me perdoa?” Perguntou agarrando o cabelo da velha em uma mão e a arma na outra. “Você me perdoa filho?” Ele continuou, e quando a mulher disse “Me solta!” já levou também um supapo na boca, que começou a sangrar. Depois o Duarte começou a cantar um trecho daquela música, Pais e Filhos, do Renato Russo, bem baixinho: “Você me diz que seus pais não o entendem/Mas você não entende seus pais/Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo/São crianças como você/O que você vai ser/Quando você crescer?” – cantou o novato, gesticulando e parodiando a cena, como se em uma das mãos estivesse a senhora e na outra a arma.

– Renato Russo? – perguntou o delegado caindo na risada.

– O moleque – continou o novato – ficou puto. “Deixa minha mãe cara. Seus fi da puta, eu vou cortar a cabeça de vocês e tal”, mas o Duarte fez “xiu” pra ele e foi falando: “Voltando ao raciocínio. Você é bom moleque, é sim. A culpa não é sua de trabalhar pra traficante. A culpa é toda da sua mãe, que deixou você crescer solto, como um animalzinho selvagem. Não é minha senhora?” Deixando o rosto da mulher de frente para o dele. “Não é senhora?” Perguntou ainda mais agressivo. E o pior é que ela assentiu. “Está vendo De Menor, você é essa bosta por causa dela. É por isso que nunca mais vou encostar a mão em você. Nunca mais! Agora, se você não falar onde o Chupa Cabra está eu vou descontar toda minha raiva nela. Eu juro!” E o moleque falando “eu num sei eu num sei”. Daí o Duarte botou medo até em mim. Puxou a velhinha pelos cabelos até o banheiro e me pediu pra levar o moleque. “Não vai falar não?” O cara tava desfigurado.

– Não me fale uma merda dessas cara, você tá de brincadeira – disse perplexo o delegado, passando a mão na cabeça.

– Tô falando. “Não vai falar?” O Duarte perguntava. E o moleque nada, só gritava. Daí já meti um tapa na boca dele também, pra ficar calado, porque senão a gente tava fudido. “Nada?” Perguntou o Duarte de novo. Daí ele meteu a cabeça da véia dentro do vaso. Só parou quando o moleque disse tudo que sabia.

– Você tá brincando cara?

– Num tô dizendo que o cara tá loco? Depois que o moleque contou pra gente, fomos com ele até à casa do traficante. Ficamos cinco horas de campana na porta do infeliz, até pegá-lo. E olha que isso foi no penúltimo serviço, mas se quiser posso falar de outro QRU.

– Putz, tem mais? Olha, não precisa, não precisa. – disse o delegado surpreso, respirando fundo. – Olha, que loucura, não comenta nada disso com ninguém, tá certo?

Cessaram a conversa e voltaram para a Delegacia.

*****

Duarte havia amargado cinco anos em uma delegacia perdida em Xerém. Só saiu daquele buraco porque a Corregedoria fez uma limpeza em Duque de Caxias. Nada contra ele, mas foi necessário sair. O investigador percorreu uma carreira brilhante. Possuía várias menções honrosas e conquistou o cargo atual com um tempo bem abaixo que o da maioria. Cada promoção por um caso extremamente espinhoso resolvido. Tinha gabarito para chefiar os demais investigadores, mas não conseguia ser chefe nem de si mesmo. Era completamente doido, mas ele poderia levantar a fama de qualquer delegacia e, em consequência, de quem a comandava.

O delegado da Homicídios não queria perdê-lo, tampouco se comprometer. Resgatou na memória o que levou Duarte a pirar, o que teria levado o investigador a comportar-se de forma tão estranha. Resolveu falar com ele, mas não o recebeu antes de tirar suas próprias conclusões. Se tivesse sido um pouco mais atento, não seria necessário que seu agente lhe contasse aquelas coisas, porque Duarte já vinha dando outros sinais de alteração. Desde que o investigador solucionou, a pouco tempo, o famoso caso do Decapitador de Copacabana, no qual Duarte foi peça importante na solução do caso, adotou uma postura muito diferente depois.

– Feche a porta e sente-se, por favor – disse o delegado recebendo Duarte. – É o seguinte, eu sempre admirei o seu serviço. Não há dúvidas de que você, sem demagogia, é um dos melhores, se não o melhor, policial deste estado. Eu acho que você vem se esforçando muito, muito mesmo. Desde o caso do serial killer você não parou, e sei que pra você foi bastante desgastante. Eu mandei te chamar pra poder compensá-lo de alguma forma. Suas férias vão demorar ainda, e como acredito que elas não serão suficientes, eu vou te liberar por trinta dias, começando hoje – concluiu forçando um sorriso.

– Eu agradeço muito doutor, mas eu prefiro recusar – disse Duarte depois de um breve silêncio.

– Não tem por que recusar. Tire um tempo pra você. Sinceramente não é uma decisão que estou disposto a abrir mão. Devemos ver o descanso como parte do trabalho. Por menos afetados que nos sentimos o desgaste está lá, pronto para implodir. Não é uma negociação Duarte, você precisa descansar!

– O novato andou falando alguma coisa? Porque se ele estiver reclamando quem tem que tirar férias é ele – argumentou contrariado o investigador.

Mas Duarte observou a resposta negativa do delegado, sua fisionomia, observou os olhos, as micro contrações, o tom de voz na resposta furtiva seguida do sorriso falso do delegado e depois acabou aceitando as férias.

*****

No dia seguinte o delegado saiu da Rua da Relação, onde ficava a delegacia, e foi andando até um bar que gostava perto da Praça Tiradentes. Sem Duarte não iria conseguir se manter muito tempo naquela delegacia, tão cobiçada entre seus pares. Tinha que por a cabeça do seu melhor investigador no lugar. Lembrou-se do caso do Decapitador. Cabeças começaram a aparecer em sacos pretos pela orla de Copacabana, uma a cada mês. Os corpos não eram encontrados. As vítimas não possuíam nenhuma relação aparente entre si, o que costuma ser a principal dificuldade nestes casos de mortes em série. Apenas uma coisa era comum em cada uma delas. Todas as vítimas tiveram o anúncio de que eram as próximas vítimas da mesma forma. Todo mês um pequeno papel enrolado com o nome de cada uma delas fora encontrado dentro de uma garrafa na praia de Copacabana. Isso deixou a cidade em pânico, ainda mais depois que os jornais deram notícia disso. Duarte ficou completamente obcecado pelo caso. A solução surgiu da noite para o dia. Tratava-se de uma seita demoníaca envolvendo várias pessoas. As datas das mortes possuíam relação com numerologia. Das dezesseis cabeças encontradas, três corpos foram recuperados. Foi aí que o ânimo do investigador mudou. Tornou-se alcoólatra. Afastou-se das pessoas. Curiosamente deixou de almoçar em um restaurante na Rua das Marrecas, perto do Quartel General da Policia Militar, para onde ia liturgicamente todo santo dia, lugar também no qual duas pessoas que ele conhecia viria a serem assassinadas posteriormente, um garçom e o dono do restaurante. Recusou-se a investigar o caso. Virou vegetariano.

O delegado ficou remoendo essas coisas quando deixou cair o que estava comendo e começou a vomitar, ali mesmo no meio da rua. Entendeu o que tinha acontecido com Duarte. Entrou no seu carro e saiu apressado.

Na Praça Marechal Âncora havia uma pequena doca de onde se podiam ver tanto as Barcas que vão para Niterói quanto os aviões que chegam ao Aeroporto Santos Dumont. Era um lugar ótimo para fugir das pessoas e poder pescar, costumava dizer Duarte. Mas não comia os peixes. Sendo a Baía da Guanabara o que era seria suicídio. Jogava-os de volta no mar, depois de um instante de reverência à capacidade de sobrevivência deles naquela água poluída. Foi sentado ali que o delegado o encontrou, com a vara na mão e duas garrafas ao seu lado, uma de pinga e a outra com um pedaço de papel dentro.

– "Duarte! Duarte! Eu sei o que faziam com os corpos!" – disse o delegado correndo.

– Agora, chefe? Agora é tarde. Destampou uma das garrafas e retirou um papel com seu nome completo escrito. O delegado sentou-se ao seu lado e virou a garrafa de pinga em sua boca.

Duarte desapareceu no dia seguinte. Nenhuma parte do seu corpo foi encontrada. Na outra semana uma senhora começou a vender uma empada de carne um pouco mais dura na Rua da Relação.