Amor e ódio no submundo (3)

A rua dos namorados

Alexandre Santos

Walquíria era uma mulata sensacional. De rosto bonito com lábios carnudos, sempre entreabertos num eterno beijo, e corpo esguio bem delineado por curvas certas nos lugares certos, a mulata brilhava a cor e o sabor da raça desenvolvida ao longo dos centenários cruzamentos que condensaram o que há de melhor nas brancas e nas negras. A depender de como a luz marcava o semblante, Walquíria podia parecer a menina sapeca que explica muitas pedofilias ou a mulher vivida que embala o sonho erótico de tarados de todas as idades. Rindo ou chorando, a mulata tinha charme sedutor e, nem mesmo os corações mais duros, resistiam a sua gargalhada. Assanhada, Walquíria não tinha problemas em dividir seu amor com vários homens. Lembrava com saudades do tempo em que vencera o desafio de cultivar três namorados simultaneamente, tratando-os com igual carinho. A mulata, uma máquina de arrancar suspiros e dar prazer, era perita na arte do amor. Cobria o macho com as coisas da carne, concentrada no presente, no aqui e no agora, sem deixar que nada – estivesse no passado ou no futuro, ali ou acolá – quebrasse o encanto dos momentos a dois. Quando percebia intenções mais ousadas, erguia o dedo em sinal de silêncio e, como se tudo pudesse ser feito ao som do nada, satisfazia o parceiro às últimas consequências, levando-o a lugares onde ninguém jamais sonhou chegar. E, nesse mundo de prazeres e mistérios, a fêmea imperava, dobrando os felizardos, que, ao se despedir, sempre exaustos e felizes, já partiam com saudades, odiando a vida deserta, sem os chamegos e os temperos da mulata.

Walquíria morava num sobrado na rua do cemitério. ”A rua da necrópole”, explicava ela, dando magia àquele endereço tão soturno. Se pudesse escolher, moraria na praça da Matriz, para se distrair com casamentos, mas, sem alternativa, se contentava com os funerais. Da janela do quarto, já habituada à movimentação lúgubre que desfilava sem parar em frente a sua casa, Walquíria podia acompanhar todos os enterros que ocorriam na cidade. Da mesma forma, todos que choravam seus mortos podiam ver a bela mulata que, enfeitando a janela, pouco se lixando para o sofrimento dos enlutados, derramava sorrisos e olhares que faziam levantar qualquer defunto. “Quem é aquele cara?”, se perguntava Walquíria toda as vezes que alguém despertava sua libido.

“Quem é aquele cara?”, se perguntou Walquíria, excitada com a visão do homem que, lembrava bem, nunca acompanhava enterros, mas sempre percorria a trilha dos túmulos recém ocupados. Sem ligar se o cara trabalhava em funerária ou prefeitura, Walquíria decidiu tê-lo para si e concentrou o olhar até despertar a sua atenção. Da porta do cemitério, aonde sempre ia para confirmar a identidade dos mortos da semana, impressionado com a beleza da mulher-menina que, numa espécie de desrespeito ao campo santo, sorria alegre e faceira para ele, Bento, um homem calado, ainda casto os 30 anos, correspondeu ao olhar e, num ímpeto que jamais tivera na vida, inventou uma desculpa para se aproximar. Não precisou fazer mais nada. Sabendo exatamente o que fazer e falar, Walquíria assumiu as rédeas da conversa e conquistou o conquistador, impondo o ritmo que desejava. Dali à cama foi um passo. Na primeira vez, fingindo não perceber a inexperiência do novo namorado (que, por incrível que pudesse parecer, embora homem feito e maduro, ainda era virgem), Walquíria o fez rei. Aos pouquinhos, para não assustar o homem-menino que tinha nas mãos, se deleitou e o ajudou a se deleitar. A pistola que Bento levava na cintura aumentou o tesão da mulata, que, enlouquecida, o enlouqueceu, levando-o a um céu que nem ela conhecia. A paixão por Walquíria foi imediata. Arrebatado por sensações que não sabia existir, Bento afrouxou a guarda que mantinha sobre as coisas do coração e, sem saber em que terreno estava pisando ou com quem estava lidando, se entregou, inscrevendo o nome no rol dos escravos da mulata – uma longa galeria que só ela sabia a extensão. Daquele dia em diante, passaram a se ver com frequência. Com motivação adicional, Bento, que na boca de Wal-quíria era simplesmente Bem, passou a visitar o cemitério mais vezes e em todas elas erguia os olhos ao sobrado na esperança de ver e ter a mulata. Quando não a via na janela, desfalcado do sorriso que esperava receber, digitava o número que tinha décor e, sabendo que o celular vibraria no bolso traseiro da amada como que mandando recados através daquela bunda monumental, Bento intumescia imediatamente. Muitas vezes o telefone chamava, chamava e nada. Aí, tomado por crescente ciúme, Bento precisava fazer muito esforço para controlar a raiva que lhe acelerava o sangue até que, horas depois, sem maiores explicações, Walquíria retornava a ligação com um “estou louca para ver você” que, prontamente, transformava o rosnado do machão num sussurro apaixonado.

Amparada na idéia de que a mulher precisa ter mistérios para manter o feitiço das relações, Walquíria nunca abria a alma para nenhum de seus homens, muito menos para Bentinho, que andava armado e já demonstrara ser extremamente ciumento. Ela tinha suas razões. Afinal de contas, como poderia dar vazão ao vulcão que tinha em seu interior se agisse de outra forma? Sexo – muito sexo –, além de conforto, carinho e segurança era o que Walquíria queria e, convicta de que nenhum homem tinha tudo isto a oferecer, ao invés de reprimir sonhos ou resignar-se à natureza, resolveu ter tantos quantos fossem necessários para atingir seu ideal de felicidade. Nunca fizera as contas para saber o número de homens que precisaria para resolver seu caso. Naquele momento, mais preocupada em aplacar a fúria que lhe afligia a periquita, estava com dois, mais já houvera tempo em que recorrera a três namorados fixos e, ainda, a um ou dois casinhos de menor importância. Embora não recebesse tudo de um único homem, Walquíria não se dava aos pedaços. Generosa, a mulata agradecia os fragmentos de felicidade que recebia se dando por inteiro, com o melhor de si, satisfazendo corpos e egos com carinhos, promessas, mentiras e tudo o mais que fosse necessário para deixar seus homens felizes. Walquíria fazia qualquer coisa, menos renunciar aos seus ideais de felicidade e deixar de buscar nos homens que via as coisas que faltavam naqueles que tinha. Se algum de seus homens quisesse uma mulher só para si, que fosse procurar outra, pois esta não seria Walquíria.

Uma tarde, ainda insatisfeita, com a vulva em brasa, ansiosa por mais, sempre mais, acariciando languidamente a arma de Bentinho, cujo corpo nu jazia prostrado a seu lado, Walquíria sentiu falta de Benício – o macho tatuado que vinha completando sua satisfação já há uns seis meses. Puxou pela memória e recordou de como o segundo Bem surgiu na sua vida. Da janela em que distribuía festa no caminho do campo santo, sentindo o calor que lhe queimava as entranhas, Walquíria viu e decidiu ter para si aquele cara que parecia viver de enterro em enterro. Testemunha assídua da movimentação do cemitério, Walquíria já percebera Benício, que, pelo uma vez por semana, acompanhava algum funeral, ajudando a fechar covas que, dias depois eram visitadas por Bento. Naquele dia, disposta à luta, Walquíria plantou-lhe o olho até receber a piscadela que queria em retorno. Não se fez de rogada. Desceu à rua e, em menos de uma semana, já estava na cama, chamando Benício de Bem e arrancando-lhe urros de prazer. Desde, então, Walquíria passou a se dona de dois Bens – Benício e Bento, homens muito parecidos, que, além de serem apaixonados pela mesma mulher e terem mesma idade, viviam perambulando pelo cemitério de Walquíria e andavam sempre armados.

O trio imperfeito era perfeito. Com dois homens que se revezavam na cama para lhe agradar, Walquíria amansou o facho e começou até a pensar nas coisas da mesa, imaginando se seria preciso mais alguém para pagar as contas. De sua parte, sem saber da sociedade que partilhavam, orgulhosos, tanto Bento quanto Benício sonhavam ser o super-homem responsável pela alegria do mulheraço. Por quase um ano, Walquíria conseguiu administrar seus homens e manter o trio. Mas, o ciúme estragou tudo. Mesmo sem saber, os namorados agiam como se soubessem do mundo secreto de Walquíria.

“Quem era?”, vinha a pergunta em tom ríspido, sempre que tocava o celular da mulata. A raiva de Bem, qualquer que fosse ele, aumentava quando – talvez lembrando das muitas vezes em que ficava a ver navios, pendurado na ponta de uma linha não atendida –, ao invés de responder, a namorada fazia um ar de riso ao olhar o visor do telefone e voltava a socar o aparelho ainda trêmulo no bolso traseiro da calça apertada que lhe realçava a cobiçada bunda. Já na primeira chamada enigmática, confiante em sua capacidade de domar os touros do seu rebanho, Walquíria desdenhou a raiva do seu homem e disse que aquele telefonema devia ser de um ex-namorado que, enxotado “por você, meu amor”, insistia em renovar o romance. E, assim, um “deve ser ele” dito de forma displicente passou a ser a resposta automática que fazia crescer o clima de mistério – um elemento básico de um ainda não publicado ‘Manual da paixão segundo Walquíria’, a imperatriz da rua do cemitério – e aumentar, muito mais, o ciúme dos seus Bens. Fêmea sem limites, com seus joguetes, Walquíria acirrou o sentimento de posse e dominação nos seus machos, que passaram a desconfiar de tudo e de todos. Homens, conhecidos e desconhecidos, que, voluntária ou involuntariamente, olhavam para as irresistíveis ancas da mulata, telefonemas e presentes de origem desconhecida, tudo era motivo de explosões de ciúme. Por mais de uma vez, para deleite de Walquíria, seus Bens juraram de morte qualquer um que dela se aproximasse.

Bento e Benício só se viram uma única vez. Naquela tarde de 2ª feira, quebrando a rotina que o deixava longe do cemitério no começo das semanas, Bento resolveu surpreender Walquíria e, sem aviso prévio, foi para a rua da necrópole. Quando dobrou a esquina, mesmo com a visão ofuscada pelo sol poente e pelos cortejos que acompanhavam os mortos do fim-de-semana, viu a mulher da sua vida conversando, quase abraçada, com um desconhecido. Pouco importando se era primo, amigo da escola ou o escambau, Bento decidiu mostrar àquele cara quem era o dono da mulata. Enquanto manobrava o carro, através das frestas abertas nas pequenas multidões que se acotovelavam em torno dos ataúdes, Bento viu quando, após retrucar alguma coisa cochichada em seu ouvido com um sinal de silêncio, Walquíria sorriu e tomou o homem pela mão, puxando-o para casa. Naquele momento, que pareceu uma eternidade, Bento lembrou das coisas que ele e Walquíria faziam depois daquele gesto e, convencido de que aquele cara era o tal ex-namorado que vivia telefonando para ela, resolveu matar os dois. Acelerou e, sem se importar com o que estava pela frente, investiu contra o mundo, derrubando esquifes e atropelando pessoas.

Assustada com a gritaria, ao ver o carro do outro namorado investir contra a multidão, Walquíria soube de imediato o que iria acontecer. “Oh! Meu Deus!”, conseguiu balbuciar antes de berrar para Benício correr. Acontece que Benício não era homem de fugir de nada e, mesmo surpreso com a inesperada reação da namorada, não arredou um milímetro de onde estava. Ainda sem entender a situação, mas desconfiado de que aquele motorista maluco deveria ser o tal ex-namorado que vivia telefonando para Walquíria, Benício se preparou para defender a mulher que amava e, tomando sua frente, sacou a pistola prateada da qual nunca se afastava. A trinta metros, cego pela visão de sua mulher sendo abraçada pelo desafeto anônimo, Bento desceu do carro de arma de em punho e, espalhando carpideiras e viúvas por toda a rua, correu em direção ao casal gritando “Walquíria”.

Apesar da estreita convivência no último ano, a realidade é que, empenhada na satisfação sexuais dos três, Walquíria não tivera tempo para conhecer nenhum de seus dois homens. Quando não estava na cama com Bento, estava na cama com Benício e vice-versa. Fora do leito, cada um tinha seu mundo e pronto. Este era o trato. Dando o tom do tipo de relação que queria, Walquíria jamais perguntava sobre o que seus namorados faziam, onde trabalhavam, nada. Só sexo, muito sexo. As pistolas, por exemplo, que pareciam fazer parte dos seus corpos, nunca foram encaradas como armas e, sim, como símbolos de virilidade. A mulata conhecia tudo sobre a carne de seus amantes, cada nervura, cada saliência, cada desejo, cada vontade, cada tara, mas quase nada sobre o que pensavam ou faziam quando estavam fora dela. Na realidade, Walquíria não sabia nada sobre aqueles homens, porque andavam armados ou porque perambulavam pelo cemitério. Os rivais, no entanto, embora tão submissos aos caprichos da mulata, eram homens calejados na vida que viviam e, sabendo exatamente porque andavam armados e porque iam tantas vezes ao cemitério, não eram de fugir de coisa alguma. Talvez, se soubesse quem eram aqueles homens, Walquíria tivesse vivido mais intensamente.

Bento e Benício se olharam por entre a multidão. O brilho nos olhos dizia tudo. Ninguém sabe quem atirou primeiro. Enquanto os corpos iam sendo alvejados, um grito feminino ecoou: “Bem, eu te amo!”. Ao final, em meio a uma clareira a poucos metros do campo santo, três corpos ensanguentados estavam estendidos. Testemunhas afirmam que foram mais de mil tiros. Depois de reconhecer os corpos, o pessoal da polícia duvidou que tivesse havido mais disparos do que o número de balas cravadas nos corpos. “Esses aí não erram”, comentou o sargento, apontando para o que restava do famoso Bento Antônio Trajano Mendes Apolinário Neto, conhecido na polícia como Bentinho, um justiceiro impiedoso, e do não menos famoso Benício Inácio Nascimento, mais conhecido como Bin, acusado de ser chefe de uma perigosa quadrilha de assaltantes. No bolso da mulher, logo referida pela imprensa como o pivô da tragédia amorosa que limpara o mundo de dois bandidos, um cartão avermelhado de sangue e batom com sucessivas marcas de beijos sobre as fotografias já esmaecidas de Bento e Benício sob a legenda ‘meus amores’.

No dia seguinte, a poucos metros da casa onde viveram grandes histórias de amor, foram sepultados os corpos de Bento, Benício e Walquíria. Colocados em covas justapostas, juntos, os três puderam continuar na morte o que não fizeram em vida. Daquele dia em diante, a rua do cemitério passou a se chamar rua dos namorados e muitas pessoas juram que ainda é possível ouvir o grito apaixonado de Walquíria chamado seus dois amores.

(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural