Amor e ódio no submundo (2)

A história de Benício - A gênese de um bandido

Alexandre Santos

Benício Inácio Nascimento e Lúcio Antônio de Emílio Nascimento eram irmãos por parte de mãe, uma mulher ainda jovem que, na juventude, de um namoro mais aceso com o diretor da escola, ganhara Benício – um garoto claro e de olhos azuis, nunca reconhecido pelo pai – e que, dois anos depois, já na vida, ganhara o mulato Lúcio, filho de um tal Emílio, um freguês contumaz, que, se amparando na promiscuidade da mulher a quem sempre pagara por sexo, jamais admitira como seu o pequeno filho da puta que, sem qualquer culpa, nascera sem pai.

Sem entender o mundo no qual viviam, nem porque, muito embora irmãos, fossem tão diferentes, Ben e Lu, como todos os chamavam, brincavam a valer. E, fora os constantes resfriados que escorriam continuamente pelos narizes sempre sujos e as surras diárias que levavam da mãe, a vida era uma festa. “Eu não disse para não fazer isso?” gritava a mãe antes de soltar a mão a torto e a direto, sem explicar o que era o tal ‘isso’ e, muitas vezes, ainda tonta das noitadas das quais trazia dinheiro para sustentar os três. Mesmo assim, a vida era boa. As brincadeiras no beco, o lanche na escola.

Amadurecido pelas ruas, logo Benício desarnou e passou a andar com a turma do bairro. De sua parte, ainda muito pequeno para ganhar o mundo, Lúcio olhava com inveja para as cédulas e moedas que Benício trazia para casa e se deliciava com as peripécias que o irmão contava. Tinha orgulho de Ben, que, com pouco mais de dez anos, já tinha um ‘emprego’. Não um emprego de verdade, como a mãe, que precisava se pintar e usar vestidos curtos para trabalhar a noite inteira, mas, mesmo assim, um emprego. Benício era empinador de papagaio. Seu trabalho era empinar papagaio na entrada do bairro. Só isso. “A única obrigação é largar o papagaio e correr para casa quando aparecer a polícia. Só isso”, lhe dissera Locamar, um cara gente fina que, ao final de cada dia, estendia o braço tatuado com uma aranha para lhe entregar um punhado de moedas.

Tudo ia bem até que, no Natal, aconteceu o pior. Ao invés de Papai Noel (que nunca vira, mas sabia que existia em algum lugar do mundo), Benício viu a morte pela primeira vez. Naquele dia, de seu posto no acesso ao bairro, tão logo percebeu a chegada dos carros da polícia, não se fez de rogado e cumpriu a obrigação: entregou o papagaio aos ventou e correu para casa. Ainda não atravessara o beco quando ouviu a primeira salva. Na hora até pensou que fosse festa, mas instintivamente sabia que alegria e polícia são coisas não combinam. Em casa, abraçado ao mano, tremendo dos pés a cabeça, ouvia o tiroteio, o maior que já tinha ouvido. Buracos de luz surgiam por toda a parede de madeira e a casa estremecia. De repente, num estrondo, a porta implodiu e, por ela, cambaleou Locamar, que, se avermelhando rapidamente, perdia os sentidos enquanto revidava a esmo os tiros que recebia seguidamente. Aí, num ímpeto desesperado que Benício jamais compreendeu, o irmão levantou e correu. Não chegou a cruzar o umbral. Como que atingido por um coice, o pequeno Lúcio foi jogado para trás e já caiu morto, com a testa esfacelada. A seu lado, imóvel e mudo, o homem de quem recebera o primeiro emprego jazia sobre uma poça de sangue, sem brilho na pele e com um olhar estranho, perdido, fixo, fosco. Na sequência, a casa foi invadida por policiais encapuzados, que, pouco se lixando para o corpinho ensanguentado de Lúcio, esparramado na porta, ou para a presença de Benício, deram vários pontapés no corpo inerte e crivado de balas de Locamar, como que para confirmar aquilo que a realidade mostrava sem recato. Com a determinação de “fique calmo” ditada por uma voz dura, Benício foi entregue a vizinhos que mal conhecia. E, entre um e outro copo de água-com-açúcar, em meio a estranhos que em voz baixa comemoravam que o soldado que dera o primeiro tiro em Locamar também morrera, passou uma eternidade confusa até ser resgatado pela mãe, que, aos berros chegara da noite para encontrar a casa destruída e o filho caçula morto a tiros. Depois de presenciar duas mortes, incluindo a do irmão mais novo, ninguém ficaria calmo, como determinara o policial. Mas, estranhamente, Benício ficou. Lembrando a aranha no braço de Locamar e a cabeça despedaçada do irmão, Benício recalcou os sentimentos e sequer chorou.

Nos dias seguintes ninguém da comunidade teve tempo para lamentar as mortes, nem mesmo a do pequeno Lúcio – atribuída a uma bala perdida sem referência ao fuzilamento de Locamar –, pois, disposta a vingar a morte do soldado no tiroteio, a polícia ocupou o bairro, invadindo, prendendo, arrebentando. Pintou e aconteceu. Junto com a queima de fogos de fim-de-ano, os jornais noticiaram a morte de doze ‘traficantes’ do bando de Locamar. De sua parte, pouco se importando com a versão dos jornais, mas assustada com o boato das execuções sumárias que vinham ocorrendo naqueles dias, a mãe de Benício arrumou os trapos e deixou o bairro. Mudou-se para o outro lado da cidade, disposta a começar nova vida. A profissão seria a mesma – ela não sabia fazer outra coisa que não dar prazer a quem estivesse disposto a pagar por ele –, mas a vida seria outra.

Contornando a ausência de Lúcio, que não tivera tempo para viver, pois fora assassinado antes de completar nove anos, e da mãe, que não tinha tempo para viver, pois passava os dias se recuperando das noites sempre movimentadas, Benício fez novas amizades e a turma era da pesada. Desta vez, nada de papagaios. O jogo era bruto e quem não seguisse certas regras pagava um preço muito alto. Um dia, como que para se divertir, o grupo resolveu assaltar um posto de gasolina. Benício ainda relutou, mas, para não ser acusado de frouxo, acompanhou a patota e viu quando um cara novo na turma, um tal Natanael Júnior, morreu com o corpo crivado de balas. Esta foi a terceira morte presenciada por Benício. E, neste embalo perigoso e emocionante, Benício cresceu, ganhando e perdendo amigos, vezes para o camburão, vezes para o rabecão, num processo que endureceu sua personalidade.

Aos dezessete anos, junto com a percepção da verdadeira profissão da mãe, Ben percebeu muitas outras coisas. Percebeu que seus colegas não estudavam, não trabalhavam e não tinham onde se divertir. Percebeu que nunca a polícia dava o benefício da dúvida, batendo antes de perguntar qualquer coisa. No começo, a revolta. Depois a promessa de tirar a mãe daquela vida, a vontade de mudar o mundo. Queria ser uma espécie de Robin Hood. Inspirado em Locamar, seu primeiro ídolo, mandou tatuar uma aranha do braço e, disposto a formar seu próprio bando, recrutou Zezo e Biu, dois parceiros da antiga turma. A primeira ação seria contra o mercadinho pertencente a um português velho e chato, que, segundo diziam, batia na esposa, muito mais nova do que ele, e no enteado, um cara que sofria o pão que o diabo amassou. O assalto não teria sangue. Mascarados, Ben e os amigos renderiam as pessoas, tomariam o dinheiro do caixa e correriam. Tudo rápido. Tudo limpo. Mas, nada deu certo. Na hora, inexperiente e violento, bastou um gesto inesperado do português para Zezo aplicar-lhe uma coronhada e, perdendo a noção das coisas, puxar o gatilho. Dali em diante, o descontrole foi total. No conjunto, foram doze tiros, cinco dos quais acertaram o português, matando-o instantaneamente.

E, com dezessete anos, Benício participara de seu primeiro latrocínio. Nada de mudar o mundo. Nada de Robin Hood. Apenas um bandido a mais sobre a face da terra.

(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural