Amor e ódio no submundo (1)
A história de Bentinho - A gênese de um justiceiro
Alexandre Santos
Bentinho, como era conhecido Bento Antônio Trajano Mendes Apolinário Neto, olhou para os lados e, sem remorso, puxou o gatilho, abatendo sua 12ª vítima. O ribombar do disparo já não lhe causava nenhuma emoção. Os olhos não piscavam. As mãos não tremiam. O coração não apertava. A carreira de matador começara seis meses antes, quando teve liberado o demônio que morava dentro de si.
Até os dez anos, Bentinho, a irmã e o irmão tiveram infâncias felizes. Sem deixar que a pobreza interferisse na estrutura familiar, o pai de Bentinho, o soldado de polícia Natanael Bento, impunha rígida disciplina em casa. Bem ao estilo do marido, além de acordá-los bem cedinho para estudar e ajudar nas tarefas caseiras, a mãe obrigava os filhos a receber o pai no retorno do trabalho todos os dias no portão da casa.
Esta rotina foi quebrada bruscamente num dia de Natal, quando, ao invés do pai, a família recebeu a visita de um sargento que, com a voz baixa, informou sobre a morte de Natanael Bento num tiroteio com bandidos.
Desde então a vida de Bentinho se transformou. Sem condições de sustentar a família, logo sua mãe se casou com o dono da mercearia da esquina – um português com quase o dobro da idade dela. As novas obrigações conjugais a afastou dos filhos, que viram, repentinamente, abertas as portas do mundo. A irmã, não tardou, enveredou por uma trilha de festas e namorados. Ainda nova, deixou a casa e partiu para a noite. O irmão meteu-se com companhias estranhas e, em poucos meses, depois de curta vida de turbulências e tempestades, foi encontrar o pai, igualmente morto com o corpo crivado de balas.
Estarrecido com tudo aquilo, Bentinho, mal saído da infância, foi forçado a amadurecer. Amadureceu no carbureto. Ainda sem compreender a morte do irmão e desaparecimento da irmã, prometeu-se vencer na vida e honrar o nome do pai. Mergulhou fundo na mercearia. Acordava com os passarinhos e, ainda ruminando o café da manhã, se colocava atrás do balcão para atender os clientes e cumprir as ordens rosnadas pelo homem casado com sua mãe. No início da tarde, interrompia a faina e corria até a escola, onde ouvia coisas que já sabia. Pouco ligava para as surras que o padrasto lhe aplicava. Queria vencer na vida e tinha consciência que ainda não estava em condições de deixar o único lar que conhecia.
Um ano mais tarde foi forçado a abandonar a escola e o trabalho aumentou. Passou, então, a trabalhar 12 horas por dia. Os gritos e safanões que recebia do velho padrasto não arrefeciam a vontade. Pelo contrário. O menino superou as humilhações e, ao invés de cultivar personalidade fraca, curtido no fogo e no breu, Bentinho desenvolveu espírito forte. De qualquer forma, com o passar dos anos, as surras foram ficando cada vez mais esparsas até desaparecerem por completo. Bentinho nunca soube se a alforria deveu-se ao fato de ter crescido, tendo ficado mais alto que o velho, ou de ter assumido, de fato, a condução do negócio do padrasto.
Tudo ia bem até que, belo dia, sem mais nem menos, a pequena mercearia foi assaltada por três homens. Assustado, Bentinho viu quando, sem necessidade ou aviso, o padrasto foi alvejado com cinco balaços. O velho fora julgado, condenado e executado pelos bandidos. Seu único crime fora lamentar a coronhada que recebeu no rosto e reclamar da vida enquanto a caixa registradora era esvaziada. Sem encarar os bandidos, Bentinho viu a aranha tatuada no braço do carrasco. Uma imagem que nunca esqueceu.
Os funerais foram tristes. A polícia decepcionara, pois, em greve por melhores salários, além de demorar a liberar o corpo, não tomara nenhuma providência para elucidar o crime.
A morte perseguia Bentinho. Primeiro, o pai. Depois, o irmão. Agora, o padrasto. Mas, obstinado, mantinha a promessa de subir na vida e honrar a memória do pai.
Deu a volta por cima. Convenceu a mãe, ainda jovem e já viúva pela segunda vez, a experimentar novos ares. Vendeu a pequena mercearia, a casa miúda e mudou-se com o que restava da família. Nova casa, nova vizinhança, muitos planos, novo negócio. Não foi preciso muito esforço para convencer a dona do galpão abandonado e, incrivelmente situado no melhor ponto do bairro, a alugá-lo. Uma pechincha. Contrato longo. Aluguel barato. Só depois Bentinho soube da chacina que, junto com o marido e quatro amigos, arrasara os sonhos de felicidade daquela mulher. Habituado com a morte, Bentinho desdenhou os maus presságios e, embalado por muito suor e poucas horas de sono, transformou o lugar num mercadinho. Com sua experiência e a ajuda da mãe, pensava Bentinho, o negócio prosperaria.
Dito e feito. Já nos primeiros meses, o mercadinho se consolidou como o preferido da vizinhança. E, de tostão em tostão, Bentinho subiu na vida.
Disposto a contrariar a ‘regra’ tão condenada pelo pai, Bentinho não deixou que a prosperidade lhe subisse a cabeça ou que mudasse a boa alma que sabia ter. Pelo contrário. Passou a ajudar a comunidade, da qual retirava o sustento e a riqueza. Empréstimos aos velhos. Crédito para os necessitados. Remédio para os doentes. Ajuda à escola. Criou um time de futebol e passou a intermediar os pedidos da comunidade junto a prefeitura.
O nome Bento Antônio Trajano Mendes Apolinário Neto passou a figurar nas conversas do bairro. Para uns, ele queria ser vereador. Para outros, queria apenas fazer o bem. Todos, no entanto, concordavam em que a ação de Bentinho ajudava a comunidade, mantendo as crianças e adolescentes ocupados, longe dos maus caminhos. Sem saber das conversas, o benemérito Bentinho continuava a trabalhar duro, enriquecendo e ajudando os mais necessitados.
Belo dia, ao chegar ao mercadinho, Bentinho encontrou o lugar aberto. A porta tinha sido forçada com um pé-de-cabra. Pensou no pior. Mas, ao entrar, uma surpresa. Nada havia sido tocado. Prateleiras arrumadas, cofre intacto, caixa registradora incólume. Apenas um cartaz escrito em tinta vermelha denunciava a visita intrusa. Na folha de cartolina, garranchos ordenavam a imediata suspensão das caridades. A assinatura, o desenho mal rabiscado de uma caveira indicava a seriedade da mensagem. Com um frio na espinha, Bentinho resolveu acatar a intimação e, bruscamente, interrompeu sua carreira de bom samaritano. Ao tempo que a assistência social do bairro voltava para a exclusividade dos mentores do tráfico, Bentinho caia nos maus quereres dos antigos protegidos.
Coincidência ou não, o fato é que, em três semanas, o mercado foi assaltado duas vezes. Assaltos baratos, próprios de iniciantes e descontentes. Num primeiro momento, Bentinho endureceu e resolveu se armar – comprou uma escopeta cuja existência logo foi conhecida por todos. O tiro, no entanto, saiu pela culatra, pois, em comportamento que depois foi associado a uma espécie de implicância, os ladrões não recuaram e os assaltos ficaram mais frequentes.
Um dia, o mercadinho foi mais uma vez invadido. Cinco mascarados que logo anunciaram o assalto. Aquele seria apenas mais um assalto na atribulada rotina que se estabelecera há algum tempo, se não fosse a inesperada chegada de uma vizinha. Ao ver os homens armados, a mulher exasperou-se e gritou a todo pulmão. Foi o bastante para o início da fuzilaria. Ao todo foram disparados 18 tiros, cinco dos quais acertaram a mãe de Bentinho, matando-a imediatamente. Bentinho foi alvejado quatro vezes.
Ao despertar, dois dias mais tarde, no leito de um hospital, depois de uma cirurgia que lhe salvou a vida, Bentinho quis morrer. Perdera a última referência que ainda preservava. Desiludido percebeu que, injustamente, estava vivendo num inferno. Demônios impunes já haviam levado o pai, a irmã, o irmão, o padrasto e, agora, a mãe. Quem seria o próximo?
Ainda preso ao leito do hospital, Bentinho repensou a vida e os compromissos que tinha consigo mesmo. Ainda não completara 21 anos e, embora procurasse dar o melhor de si, nunca sentira o gostinho do céu. De que adiantava trabalhar honestamente, pensou ele, se sempre a vida lhe roubava os tesouros mais preciosos que tinha? E, num estalo de dedos, o Bentinho que todos conheciam desapareceu, dando lugar a um outro. Repentinamente Bentinho endureceu o coração. O lado bom de Bentinho não foi forte o suficiente para conter o demônio que emergiu do lado sombrio que sequer sabia possuir. Soube-se depois que a morte da mãe foi demais para a estrutura que todos imaginavam forte. Bentinho saiu do hospital transformado. Não era mais aquele homem pacato e confiante, que queria subir na vida pelo trabalho, honrando a memória do pai, o soldado Natanael Bento, morto em serviço, em combate contra bandidos. O novo Bentinho era um homem disposto a fazer justiça pelas próprias mãos.
Como se nada tivesse acontecido, Bentinho reabriu o mercadinho tão logo chegou em casa após uma rápida visita ao túmulo da mãe, ainda no dia em que recebeu alta do hospital. E, sem que ninguém soubesse, Bentinho se preparou e torceu pelo próximo assalto, que sabia não demoraria. De fato, não tardou. Ainda naquela semana, o mercadinho foi invadido por dois rapazes recém saídos da Febem. Coitados. Mal tiveram tempo para sacar as armas e anunciar o assalto. Tombaram mortos pelos tiros certeiros desfechados por Bentinho, que com um sorriso estranho segurava a escopeta jamais usada até então. As formalidades com a polícia foram mais simples do que Bentinho imaginava. Na realidade, o novo Bentinho não deixou de sentir uma certa simpatia pelos policiais encarregados pelo levantamento dos corpos. Como se estivessem aliviados pela súbita morte dos dois aprendizes de bandido, os policiais foram extremamente suaves no relatório, omitindo, inclusive, a participação de Bentinho no sangrento episódio.
Quinze dias mais tarde, o novo Bentinho voltou a agir, despachando mais duas pessoas para o mundo do além. Desta vez, ao puxar o gatilho, Bentinho sentiu uma estranha sensação de prazer. Um prazer que nunca experimentara. Ainda extasiado pela sensação, Bentinho se deu conta que, aos 21 anos, era virgem. Já matara quatro pessoas, mas nunca tivera uma mulher. Era melhor assim, pensou ele, pois, sem ter a quem gostar, não corria o risco de sofrer como sofrera com a morte do pai, do irmão, do padrasto e da mãe. Respirou fundo, lembrou a aranha tatuada no braço do carrasco de seu padrasto e, sem remorso, voltou à caçada convencido de que era sua a tarefa de banir o mal.
(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural