Raio de Ação - conto policial com Luis Souza

RAIO de AÇÃO

Um conto policial com: Luís Souza

De repente todo aquele ginásio com pessoas enlouquecidas gritando o nome do oponente de Souza começou a girar feito um furacão devastador. O policial que também é pugilista sente sua cabeça rachar a cada golpe desferido por Reinaldo, o Touro. Souza foi para o combate sabendo que seu adversário era mais forte, mais jovem e que com certeza iria para o tudo ou nada. Fim de mais um round. Luís caminha com dificuldade para o seu corner pois há sangue jorrando de seu supercílio direito. Tornado, seu técnico meneia a cabeça algumas vezes reprovando a postura de seu atleta.

- Luís, por um acaso você se esqueceu que há um cinturão em jogo?

- Ainda não. – se senta. – ele é forte.

- Eu avisei. – limpa o ferimento. – você precisa fazer com que ele gire todo o ringue, fuja do braço esquerdo dele.

- Estou tentando, mas ele é veloz.

- Certo, mas ele não é uma máquina, é um ser humano igual a você, então não há desculpa, vá lá e derrube-o.

Reinaldo Touro é alto, seu corpo é uma verdadeira aula de anatomia. Todo o seu tórax foi tatuado. Um touro estilizado vermelho estampa sua pele morena sem pêlos. Sim, Touro está em melhor forma, treinou mais, seguiu a risca tudo o que seu treinador recomendou. O gongo soa e Reinaldo já está de pé, pronto para colocar as mãos no cinturão que o consagrará campeão regional de boxe amador.

Como Tornado mandou, Luís faz com que Touro circule o ringue a sua caça. Souza sente que seus braços estão perdendo as forças por isso a dificuldade de mantê-los em guarda. Mesmo com a visão prejudicada devido ao inchaço na base dos olhos, Souza mantém uma boa esquiva deixando seu oponente sem muitas opções de combate. O agente tem um ótimo jogo de pernas e esse é o seu melhor trunfo. Reinaldo percebe o jogo de Souza e por isso resolve vencê-lo usando a força bruta. Para furar o bloqueio foi preciso o emprego de velocidade e energia. Mais uma vez Souza é golpeado com um direto que fez com que ele perdesse o equilíbrio. Aproveitando a vulnerabilidade do adversário, Touro aplica um poderoso gancho fazendo com que o corpo de Souza se transforme num arco. Luís cai e o juiz abre contagem.

- Um, dois, três...

- Vamos, levante-se. – grita Tornado.

- Quatro, cinco, seis...

Luís Souza ainda tenta se apoiar nos braços, mais volta a beijar a lona apagando de vez.

- Sete, oito, nove, dez, acabou.

Touro é ovacionado, consagrado campeão de boxe amador regional. Tornado corre para auxiliar seu atleta que segue caído com o rosto na lona.

- Souza, você está bem? – não há resposta.

*

O pior da vida de um pugilista não são os dias pesados de treino e nem o momento da luta em si. A pior é o dia seguinte da derrota. Tirando as dores por todo o corpo, Souza precisa conviver com aquela terrível sensação de derrotado, de vencido e humilhado. Mesmo sabendo que não perdeu muita coisa, o policial carrega com ele o sentimento de revanche, precisa provar para ele mesmo que consegue derrotar quem o levou a lona.

Ele entra em sua sala e ainda tem estampado no rosto as marcas do massacre. Márcia entra logo em seguida tirando sarro do chefe.

- Anotou a placa? – coloca alguns papéis sobre a mesa.

- Que placa?

- Do caminhão que te atropelou.

Uma tiração de sarro a mais ou a menos não fará diferença. Souza procura não retrucar as provocações, prefere ir direto ao trabalho.

- O que temos pra hoje? – se acomoda na cadeira.

- Dê uma olhada nesses papéis e depois temos que colher um depoimento ainda hoje, você está bem?

- Sim, acho que sim.

- Foi muito profundo esse ferimento no supercílio?

- Mais ou menos. – pega um dos papéis. – em que pé está o caso da filha do deputado?

- Ainda desaparecida. Paulo Filho disse que já não tem mais esperança de ver a filha com vida.

- Vamos manter as buscas, temos que virar Norma do avesso. Essas duas últimas horas serão cruciais para nós.

*

Maria Cândido, 16 anos, filha do deputado federal Paulo Filho, desaparecida a três dias. Assim que foi anunciado o seu sumiço, toda cidade ficou em alerta máximo a as autoridades iniciaram buscas dentro e fora de Norma. Até agora nada foi encontrado, nenhuma pista. A polícia ainda não quer trabalhar com a hipótese de sequestro, porém não descarta suas possibilidades. Em todos os telejornais a foto da menina de sorriso fácil é destaque em suas edições. Todos querem saber o paradeiro de Maria. Enquanto as respostas não chegam, Beatriz e Paulo procuram se apoiar um no outro na tentativa de juntos superarem essas horas desumanas. Desde quando Maria desapareceu, a casa do parlamentar vive cercada por jornalistas enlouquecidos atrás de um furo e entre e sai de viaturas policiais. No Interior da residência a movimentação de agentes é de deixar qualquer um tonto.

- Alguma novidade? – pergunta o deputado ao policial responsável pelas ligações.

- Ainda não.

Abatido e sem dormir direito a três noites, Paulo Filho volta para o quarto onde sua esposa está olhando um álbum. Calvo, mediano e óculos de grau, Paulo sempre se importou com sua aparência, sempre fez questão de se barbear antes de sair para o trabalho, mas de três dias para cá ele tem deixado a vaidade de lado permitindo que uma rala barba grisalha mude seu aspecto.

- Veja essa, Paulo, se lembra desse dia?

O deputado se senta ao lado da mulher na ponta da cama.

- Deixe-me ver. – pega a foto.

Na foto Maria aparece de roupa de banho segurando um minúsculo peixe estampando um sorriso largo e orgulhoso.

- Sim, claro que me lembro, foi no pesque e pague daquele sítio no interior. Que dia memorável.

- Foi mesmo, Maria tinha dez anos e você ainda estava em seu primeiro mandato.

De repente o silêncio. Paulo olha para a imagem de sua filha e faz um esforço absurdo para não desmoronar em prantos.

- Paulo? – Beatriz abraça o marido. – tem fé que a nossa Maria voltará para casa?

Ele olha para a esposa e aperta os olhos confirmando.

*

A noite Souza e Márcia estão na casa do deputado envolvidos até o pescoço nas investigações. Lado a lado com o agente que aguarda qualquer ligação, Souza cutuca as unhas em silêncio.

- Ansiedade, senhor?

- O que disse?

- Desde quando se sentou não parou de mexer nas unhas, eu li em algum lugar que isso é um típico sinal de ansiedade.

- Pode ser. – se levanta. – vou buscar um café, você vai querer?

- Por gentileza.

Sentado na mesa da enorme copa, Paulo retira os óculos e esfrega os olhos. Ele volta a prender o choro quando Luís aparece na porta da cozinha.

- Deputado? Achei que estivesse dormindo.

- Não consigo. – funga o nariz. – o senhor precisa de alguma coisa, detetive?

- Vim buscar café, se não se importa.

- A casa é tua, Souza. – aponta para a cafeteira.

Tudo naquela casa transmite luxo, requinte. Até mesmo uma simples cafeteira é capaz de intimidar o agente. Paulo Filho é um político honesto, justo, tudo o que conquistou foi com esforço e trabalho duro. Como todo político ele vive entre o céu e o inferno, mas graças a sua boa conduta ele vem caindo nas graças do povo e seu nome é forte para as próximas eleições presidenciais. Souza ainda segue estudando a cafeteira quando Paulo lhe pergunta.

- Me diga a verdade, se soubesse de algum fato envolvendo minha filha, você me contaria?

Finalmente Luís encontra o lugar onde se coloca água.

- Sim! Porque?

- Maria sempre foi uma boa filha, nós a criamos de uma forma que ela sinta confiança em nós, ela nos vê como pais e amigos.

- Isso hoje em dia é difícil. – liga o eletrodoméstico - Pode deixar, deputado, a polícia está trabalhando sério nesse caso.

Márcia aparece na porta da cozinha com uma expressão preocupante. Ambos os homens olham para ela, mas é Souza quem entende o recado.

- Com licença deputado.

Márcia anda com Luís até outro policial uniformizado, ele também tem a mesma sombra na face. Antes do agente abrir a boca Souza já se antecipa.

- Aonde o corpo foi encontrado?

*

Poderia ser minha filha. Souza desce da viatura ainda tentando separar as coisas. Como policial ele precisa manter sua postura como um agente da lei pronto para fazer justiça. Por outro lado o ser humano dentro dele consegue falar mais alto em determinados momentos. Não é porque Maria Cândido é filha de um parlamentar que tem a simpatia da maioria, mas sim, Maria é mais uma vida que teve seus sonhos interrompidos e será mais uma família que carregará para sempre essa dor.

O corpo da jovem foi deixado as margens da maior rodovia que liga Norma a outra cidade. Enrolado em sacolas de lixo, qualquer um que o visse acreditaria piamente que se tratava da falta de conscientização de alguém. Triste fim de Maria. Luís Souza se junta aos outros agentes que apontam suas lanternas iluminando o cadáver.

- Sinto muito, senhor. – diz um dos policiais.

Souza se acocora para ver mais de perto. Sim, de fato se trata de Maria, é a cara da mãe. Uma pena. Três dias desaparecida. Três terríveis dias onde a esperança sempre baixava a guarda para a angustia golpeá-los sem piedade. Linda menina de cabelos tingidos de ferrugem e pele morena. Ainda apoiado nos calcanhares, Souza engole o nó formado na garganta.

- Quem a encontrou?

- Ah, sim, ele está logo ali, Maurício Assis.

Assim que chegou perto da viatura, Márcia já conversava com Maurício que apesar de tudo estava bem tranquilo.

- O que fazia por aqui senhor Maurício? – Márcia pergunta e ao mesmo tempo escreve no bloco.

- Eu as vezes passo por aqui. Como eu trabalho no centro de Norma, sempre que posso desço naquele ponto e sigo a pé.

Souza cruza os braços e faz sua pergunta.

- Qualquer um pensaria em se tratar de um saco de lixo jogado na beira de uma rodovia. O que chamou sua atenção?

- Como eu falei, eu desço naquele ponto e sigo a pé. Me indignei com o fato de jogarem lixo aqui, o que não é comum, então resolvi recolhê-lo. Foi o maior susto da minha vida. – os olhos ficam marejados.

- Imagino. – expira. – não vá muito longe senhor Maurício, qualquer coisa nós iremos solicitar sua ajuda. Certo? – Souza vai se afastando.

- Estou a disposição.

O que teria acontecido com Maria? O que uma menina, aparentemente ingênua fez para merecer esse fim trágico? A justiça precisa ser feita. A pior parte de uma investigação não é quando as peças não se encaixam, muito menos quando não se tem pistas. Francamente, para Souza, a pior parte vem agora quando ele se torna o anunciante de uma tragédia. Enquanto caminha de volta para próximo do corpo onde peritos estão inclinados sobre ele, Luís enterra as mãos nos bolsos e abaixa a cabeça fixando o asfalto negro. Não tem jeito. A vida de um detetive tem disso também. De um dos bolsos ele puxa seu celular e disca o número do deputado.

- Boa noite, doutor Paulo, vá para um lugar mais reservado.

*

Voltar para o apartamento e ter que ouvir o entediante som do silêncio nunca foi tão satisfatório. Silêncio, era tudo o que Souza precisava. Ele se joga no sofá e fecha os olhos por um instante e logo a imagem da menina morta, envolvida por sacolas de lixo surge lhe assombrando. Luís volta a abrir os olhos e a vontade de ligar para Suzana sua ex esposa vem repentinamente. É tarde, quase meia noite, com certeza, Jeferson e ela já se encontram dormindo. Todos os outros investigadores nesse extrato momento, exceto os que estão de serviço, estão abrigados no seio familiar. E quando não se tem uma cobertura dessas, o que se faz então? Se toma uma cerveja? Boa ideia.

O detetive entra em seu quarto bagunçado desde o início da semana em busca de sua outra carteira. Ele se olha no espelho e as marcas de seu último combate como boxeador estão lá, bem latentes. Agora, outro sentimento lhe assola. Revanche. Luís precisa voltar ao ringue e surrar Reinaldo Touro de qualquer jeito. Ligar para Tornado a essa hora seria uma boa ideia? Quem não arrisca não petisca. Dois toques e o treinador atende.

- Grande Souza!

- Estava dormindo?

- Que nada, estou sem sono, o que houve?

- Vá para aquela petiscaria aí perto. Chego em minutos.

- Show!

É quinta feira, mas, pra que esperar até o final de semana? A petiscaria não está cheia, porém está com todas as mesas ocupadas. O lugar cheira a frango frito e nos quadros há imagens das lendas do rock nacional como Cazuza, Renato Russo entre outros ícones. Souza e Tornado ocuparam os bancos do balcão e pediram cerveja. Tornado veio como típico louco por atividade física, camisa regata de alças finas exibindo parte de seu corpo atlético e bermuda de um time de basquete americano. Se um negro de boa aparência já chama atenção, imagine dois.

- Claro que você não me chamou aqui para comer frango empanado e tomar umas brejas. Acertei? – Tornado apoia um dos cotovelos no mármore escuro.

- É... – risada nervosa. – Pois é, meu caro treinador. Andei pensando...

- Numa revanche?

- Eita? Você é rápido. – olha para a porta de entrada do estabelecimento. – cara, eu preciso de mais uma chance, prometo seguir suas orientações dessa vez.

- Reinaldo Touro é jovem, treina pesado todos os dias e...

- Sei o que vai dizer. – abaixa a cabeça. – ele tem garra.

- É isso aí. Garra, vontade, olhos de tigre. Lembra do tema de Rocky Balboa?

Os pedidos chegam e o assunto muda. Maria Cândido agora está em voga no balcão.

- E o deputado federal, como recebeu a notícia?

Souza molha o pedaço de frango no molho barbecue.

- A perda de um filho deve ser uma dor imensurável, cruz credo.

- A imprensa não fala de outra coisa. – fala mastigando.

- Vou intensificar as buscas. Vou virar Norma do avesso, mas, encontrar quem matou Maria Cândido agora é questão de honra.

- Falou o xerifão da cidade.

*

Realmente o assunto nas grandes mídias não é outro a não ser a morte de Maria Cândido. Todos querem uma resposta, todos querem a prisão imediata do assassino. Toda a rua onde reside o deputado federal se transformou num canteiro onde diversos jornalistas aguardam uma declaração do parlamentar. Paulo Filho aparece na janela apenas para ver como está a movimentação dos profissionais de imprensa e sente uma profunda vontade de desaparecer. Sua esposa Beatriz, sentada no sofá balança as pernas descontroladamente. Como ela envelheceu meu Deus! A tristeza dentro daquele ambiente é algo palpável e machuca.

- Vou descer e falar com eles. – diz Paulo ainda olhando pela janela.

- Tem certeza?

- Sou uma pessoa pública, Beatriz.

- Isso não importa mais, nossa filha foi morta, do que adiantou sua popularidade? – há um certo rancor nas palavras.

- Vida. – Paulo se acomoda ao lado da mulher. – eu também estou sofrendo, acredite nisso, estou sofrendo tanto quanto você. Não vamos nos isolar agora, eu preciso de você.

- Eu quero justiça, Paulo, justiça.

- Todos nós. – a abraça.

Um repórter faz uma cobertura ao vivo sobre o caso Maria Cândido quase em frente o portão principal da casa do político.

- Um crime brutal. Depois de dias desaparecida, Maria Cândido foi encontrada morta as margens da rodovia que liga Norma ao centro. – de repente uma confusão se instaurou atrás do jornalista. – esperem, acho que o deputado federal Paulo Filho vai falar com a imprensa.

Muito abatido, Paulo é quase esmagado pelo mar de microfones. Ele aguarda pelo silêncio que não acontece. Mesmo assim ele resolve falar.

- Bom dia a todos, peço desculpas por fazê-los esperar todo esse tempo. Minha família está atravessando uma fase difícil, não desejo a ninguém essa dor de perder um filho. Quero agradecer a todos que rezaram e oraram, mas aprouve Deus tal acontecimento. Justiça, é tudo o que minha família e eu queremos.

- Deputado, bom dia, Luís Souza ainda está a frente do caso?

- Com certeza, Luís Souza tem minha confiança, eu acredito muito no trabalho da polícia.

- E as eleições senhor deputado, isso pode atrapalhar?

- Peço aos senhores um pouco mais de sensibilidade. Perdi minha filha, por favor.

- Mas deputado, o senhor é forte candidato a presidência e...

- Irei me retirar, tenham todos um bom dia.

Irritado, Paulo Filho vai abrindo caminho entre os jornalistas e se desvencilhando das perguntas mais maldosas. Demorou mas enfim ele conseguiu chegar ao seu portão. Beatriz tinha razão, aliás, ela sempre tem razão. Ele não tinha nada que descer e dar satisfação a imprensa. São verdadeiros abutres viciados em furos e em uma boa polêmica. Assim que consegue entrar, ele fecha o portão atrás dele e depois se abaixa chorando bastante. Era o que faltava para um homem como ele. Chorar. Paulo não é de chorar, nunca foi, porém se não o fizesse explodiria. Beatriz aparece na porta e ao ver o marido naquelas condições não lhe resta outra coisa a não ser se juntar a ele.

*

Márcia Bernardo acompanha de perto todo o trabalho no IML. Sempre bem vestida e maquiada, a assistente de Souza vem tirando a concentração do médico responsável pelo corpo da jovem Maria. Desde quando a investigadora chegou o velho médico não para de lançar seus olhares e cantadas maldosas pra cima dela.

- Souza é um cara de sorte. – olha para ela por cima dos óculos de leitura.

- É a vida. – confere algo no celular.

- Bom. Acho que terminamos por aqui. – tira o avental. – essa menina sofreu um trauma bem aqui, veja. – aponta para o ferimento na nuca. – foi o que causou a morte.

Mesmo sem querer muito, Márcia se aproxima do médico que estampa um sorrisinho cafajeste enviesado para ver mais de perto.

- Hum, seu perfume me faz lembrar o jardim de minha casa no campo, te levo lá qualquer dia desses.

- Mais alguma coisa, doutor?

- Vamos deixar as formalidades de lado minha rainha. Pode me chamar só de Anselmo.

- Encontrou mais alguma coisa, Anselmo? – revira os olhos.

- Sim. – faz a volta na maca e anda até sua bancada. – encontrei esse papel no bolso da calça dela. Há um número de telefone.

- Como vou saber que não é o seu? – fecha a cara.

- Não. Infelizmente não é o meu, realmente esse pedaço de papel estava dentro do bolso da coitadinha aí.

Um número de telefone celular. Um simples número. Márcia os verifica por alguns segundos e quando retira os olhos do pedaço de papel, lá está o velho médico a devorando com os olhos. Ele a encara como se a policial fosse a comida preferida dele.

- Acabamos? – Márcia recolhe seus pertences.

- Gostaria muito de dizer que não, mas, acho que sim.

- Com licença.

*

Antes de pegar firme na parte técnica, Tornado sugeriu uma corridinha de vinte voltas em torno do ringue. Souza não gostou muito da ideia, mas o maior interessado é ele. A academia onde Tornado ganha a vida como instrutor de boxe é ampla, antes o lugar era um galpão e servia para armazenagem de eletrodomésticos. As vinte voltas terminam e Luís quase sofre um ataque cardíaco.

- Vamos lá campeão. – Tornado bate em seu ombro. – vamos de pular corda, três de dez.

- Tá falando sério?

- Muito sério. Agora chega de papo.

Alguns quilômetros dali Reinaldo Touro também treina pesado desde as primeiras horas do dia. Sempre com sua expressão fechada e uma concentração invejável, o pugilista amador segue sem reclamar todas as recomendações de seu técnico. A confiança de Touro beira a arrogância, mas tudo isso tem um porquê. Reinaldo não estudou muito. Filho de pai e mãe alcoólatras, as vezes, ou quase sempre não tinha o que comer. Para fugir desse ambiente de miséria ele encontrou no boxe uma válvula de escape e fez disso seu meio de vida.

O apelido Touro surgiu quando de maneira brilhante e irresponsável Reinaldo reagiu a um assalto. Segundo testemunhas, o lutador nocauteou os dois meliantes os deixando a beira da morte. Claro que Reinaldo teve problemas com o acontecido, ele precisou responder e foi condenado a pagar algumas cestas básicas. Touro, esse é o seu vulgo. Touro, só de olhar faz qualquer um tremer nas bases.

*

Acordar cedo para Souza é sinônimo de saúde. Além de fazer o dia render mais, ele adora sentir a brisa fresca e ouvir cada nota emitida pelo canto dos pássaros. Após um café reforçado com direito a ovos e suco cem por cento natural, o detetive está pronto para encarar mais um plantão. Para provar para ele mesmo que consegue abandonar certos hábitos, Luís desceu pela as escadas e ainda verificando no telefone se há novas mensagens no aplicativo. Sim, claro que há mensagens, mas nenhuma chama sua atenção. Como ele gostaria de receber uma mensagem de Suzana, um bom dia já estava de bom tamanho. Não. Isso não acontece e nunca vai acontecer. Suzana fez questão de risca-lo de sua vida, página virada.

Assim que chega ao térreo, ainda olhando o conteúdo das mensagens ele recebe outra. Márcia, “Temos uma pista”. A adrenalina mostra sinal de vida fazendo Souza digitar rápido e sem habilidade, “ O que encontrou?”. Ele passa pelo porteiro e com um gesto de cabeça o cumprimenta ao som do portão sendo destravado. “ Um número de telefone no bolso de Maria, venha o mais rápido que puder”. “Me envie o número” “Certo!”

Dentro do carro Souza confere o número ainda remoendo sua derrota para Touro. Fato é, sua falta de preparo fez com que ele beijasse a lona. Ele disca o número e aguarda ser atendido. Um sonolento “ Alô, quem fala” atravessa os ouvidos do detetive.

- Bom dia, sou o investigador Luís Souza, com quem falo?

- Polícia? – a voz agora parece mais dispersa.

- Exatamente. Com quem falo?

- Lucas, Lucas Melo, o que aconteceu?

- Lucas, você é menor de idade acredito eu?

- Tenho 18 anos. Posso saber o que está acontecendo?

- Me passa seu endereço, vamos conversar pessoalmente.

*

Beatriz nunca foi um exemplo de animação, nunca gostou de grandes badalações. Sempre quando sai com o marido político ela sempre faz questão de se manter na retaguarda. Dentro de casa podemos dizer que é a mesma coisa. Beatriz não é antipática, mas sim muito séria. Com a perda de sua menininha as coisas só pioraram. Para ajudar a passar o tempo e fazer com que a dor amenize, Beatriz optou pela leitura dos livros de Augusto Cury e a bíblia.

Com as pernas cruzadas, óculos de leitura e concentrada nas passagens sagradas, Beatriz nem percebe que o marido a observa na porta da sala.

- Amor? – ele diz.

- Sim? – responde olhando para o livro em seu colo.

- Tudo bem com você?

- Eu que pergunto, tudo bem com você? – finalmente olha para Paulo.

- Lendo a bíblia? – vai até o bar e se serve de uma bebida. – quer? – ergue o copo.

- Não, obrigado, gostaria muito de saber como vão as investigações, Souza ligou?

- Não, mas, sei que estão empenhados. Que passagem está lendo?

- Estou lendo a história de Ester. Paulo, não podemos mais esperar, nossa Maria foi morta, morta, não há justiça nesse mundo? – começa a chorar. – ela tinha sonhos, era apenas uma menina. Meu Deus.

- Concordo com você, querida, mas o que podemos fazer? Um lado meu pede que eu saia em busca do miserável e o mate, porém sabemos que as coisas não funcionam desse jeito. Deus colocou certos homens na terra para correrem atrás da justiça e é nosso dever confiar neles.

Beatriz não disse mais nada. Ela ouviu cada palavra dita por Paulo, mas não se convenceu. Ela não está nem aí para discursos, tudo o que ela quer é ação. Para não esticar o assunto ela volta sua atenção a leitura do livro de Ester ignorando a presença do marido.

*

A casa dos Melos é grande, com muros altos e câmeras em pontos estratégicos. Elas cobrem todos os pontos cegos daquele terreno gigantesco. Luís Souza é recebido por um funcionário já na terceira idade que cuida do jardim. O detetive é conduzido até o interior da residência.

- Pode se sentar se quiser, o patrão já está descendo.

- Obrigado, seu José, estou bem assim.

Souza não pode deixar de admirar a decoração da casa e também sua organização e limpeza. Passos são ouvidos e de repente um homem com uma calvície bastante grave aparece na sala com as mãos enterrada nos bolsos.

- Como vai, agente Souza?

- Bom dia.

- Devo lhe adiantar que meu filho não tem nada a ver com a morte da menina. Lamentamos em não poder ajuda-lo nas investigações.

- Posso falar com o Lucas?

- Não se eu não puder acompanhar.

- Por mim, sem problema.

Um rapaz de semblante triste e roupas não muito adequadas para sua idade sai de trás do velho careca.

- Bom dia senhor Souza. – diz com voz arrastada.

- Bom dia Lucas, podemos conversar um pouco, seu pai vai nos acompanhar.

- Arthur, Arthur Melo. – diz o velho.

Os três se acomodam e Mesmo sendo sufocado pelo clima pesado causado pelo velho careca, Souza segue com os procedimentos. Souza também não pode deixar de reparar em Lucas e em suas roupas. Muito jovem, recém saído da adolescência, Lucas se veste como se fosse um senhor de sessenta anos. Claro que isso tem o dedo do pai que a essa altura deve obriga-lo a se portar e a se vestir digno de um Melo legítimo.

- Maria Cândido, você a conhecia, certo?

Antes de responder Lucas olha para o pai que mantém uma expressão fria para ele.

- Sim!

- De onde? – Souza apoia os cotovelos nos joelhos e entrelaça os dedos.

- Escola, curso e baladas.

- Vocês tinham algum envolvimento. Digo, vocês namoravam?

Lucas volta a olhar para Arthur que não esboça qualquer expressão ou movimento.

- Ficamos, uma vez. – abaixa a cabeça.

- Maria tinha algum desafeto?

- Não que eu saiba. Maria era a queridinha de todos. Todos os caras queriam ficar com ela e todas as meninas queriam ser amiguinhas dela.

- Sei, mas...

- Acho que o senhor já conversou bastante com meu filho. Ele tem uma prova importante no fim da semana e precisa estudar. Não é, Lucas?

- Por que estou sendo interrogado?

- O número do seu celular estava num dos bolsos da calça de Maria.

- Eu não a matei.

- Vamos, Lucas. – Arthur se levanta.

- Lucas, se ainda tiver algo para falar não hesite em entrar em contato comigo. – retira do bolso um cartão.

- Meu filho já lhe falou tudo o que sabe, detetive. Tenha um bom dia.

Luís Souza está de volta a estrada dirigindo rumo ao departamento de polícia colocando sua mente para funcionar ao máximo. Lucas Melo não lhe contou tudo o que sabe. Com certeza a presença do pai lhe deixou intimidado. Morar debaixo do mesmo teto que Arthur não deve ser uma Disneylândia. A opressão do pai vem transformando Lucas numa bomba relógio. Souza pega a segunda entrada e sua mente se volta para o confronto com Reinaldo Touro que a essa altura já deve estar sabendo da revanche. Luís quer surra-lo, fazê-lo jogar a toalha ainda no primeiro round.

*

Tornado é do tipo de técnico que abraça qualquer desafio. A palavra desistência jamais fará parte de seu vocabulário. Apesar de jovem, o treinador conquistou o respeito de seus alunos e todos acreditam piamente em sua capacidade de fazer de um anônimo um verdadeiro sucesso nos ringues. O dia ainda demora para mostrar sua cara e Tornado já se encontra organizando a academia para receber seus alunos e no meio desse bojo está Luís Souza, pronto para ser sugado até a última gota de suor.

- E aí, policial, pronto para o massacre?

- Eu já nasci pronto, treinador.

- Legal. Vamos começar com algumas voltinhas e depois o senhor praticará comigo. Que tal?

- Praticar, com você, tá falando sério?

- Você já me viu brincando alguma vez? – expressão fechada.

Não adianta reclamar e nem achar que Tornado está pegando pesado demais. Foi Souza quem propôs a revanche. Depois das dez voltas em torno do ringue eles partem para a luta. Professor e aluno num confronto histórico. Os poucos alunos que fazem seus aquecimentos, ao verem o mentor calçar as luvas e colocar o protetor dentário, param o que estão fazendo e se aglomeram em torno do ringue.

- Essa eu não perco por nada. – diz um deles.

Souza conhece bem seu técnico, ele sabe que Tornado não aliviará e tentará levá-lo a lona o mais rápido possível. Agora eles estão frente a frente. A expressão de Tornado não permite que Luís o encara por mais que dois segundos. Olhos de tigre. Olhos intimidadores. Soa o gongo e o terremoto começa.

Minutos depois Souza se encontra caído no centro do ringue tentando não apagar de vez. Tornado está do lado de fora do ringue retirando as luvas sendo elogiado por outros alunos.

- Souza, a luta já acabou, pode levantar se quiser. – zomba outro aluno.

Foi mais rápido do que Souza imaginou e também bem mais dolorido. Tornado não aliviou mesmo e o atropelou feito um trator. O detetive caminha em direção ao vestiário ainda sentindo cada canto do corpo dolorido. No chuveiro a água escorre pelas costas quando a voz do treinador ecoa.

- Você está bem?

- Bem mal. – abre mais o chuveiro. – mas, valeu.

- Também gostei. Apesar do desfecho ter sido o esperado, você me surpreendeu algumas vezes. Parabéns. Mais forte a cada dia.

- Acha que consigo vendê-lo?

- Eu não treino perdedores.

*

Mochila nas costas. Bem arrumado e passos apressados assim que os pés tocam o asfalto. Lucas Melo caminha quase correndo em direção ao ponto de ônibus que fica a alguns metros de sua casa. Ele passa tão perto de um carro estacionado que sua mochila esbarra no retrovisor. Dentro desse veículo há dois agentes observando o agir do rapaz. O policial que ocupa o banco do carona bate algumas fotos enquanto que o motorista tamborila com os dedos o volante.

- Onde ele vai com tanta pressa? – pergunta o que bate as fotos com o celular.

- Sei lá, moleque esquisito, olha as roupas dele, parece um senhor de idade.

O coletivo passa forçando Lucas a correr. Ele sinaliza freneticamente com o braço até o ônibus brecar.

- E aí, vamos atrás dele? – pergunta o motorista.

- Vou enviar as fotos para o Souza. Vá saindo devagar.

Souza e Márcia estão em silêncio analisando outras fotos de Maria. Uma das marcas da adolescente é o seu sorriso fácil. Lucas tinha razão quando relatou que todos queriam estar perto dela. Além de bonita, Maria Cândido passa a imagem de uma pessoa rica em espírito. Uma perda imensurável para seus pais.

- Encontrou algo? – Márcia boceja.

- Não. Incrível como por ser filha de um dos políticos mais influentes do país, a fama não lhe subiu a cabeça. Veja, uma menina simples, parece que tinha gosto pela vida.

- E o Lucas Melo? – caminha até onde a cafeteira se encontra. – precisamos ter outra conversa com ele.

- Sim! Tenho certeza de que ele não me contou tudo o que sabe.

Nesse momento o celular de Souza vibra no bolso.

- Falando no diabo...

O detetive olha foto por foto enviada via aplicativo de mensagens. Lá está o jovem Lucas vestido como se fosse um velho arrancando uma curta risada de Luís. Ele as mostra para sua assistente que também estranha o estilo do garoto.

- O pai desse menino deve ser muito conservador.

- Deve ter haver com religião ou coisa parecida.

Souza recebe uma chamada.

- Investigador Souza falando.

- Senhor, o garoto entrou no curso de inglês, qual o próximo passo?

- Siga com a vigilância. Você notou algo suspeito nele?

- Veja bem, fora o péssimo gosto para roupas, o garoto me parece meio assustado.

- Certo. Fiquem aí até ele sair. Qualquer novidade me avise.

*

Por mais que Lucas tenha passado a noite toda estudando, ele não consegue se lembrar de quase nada. Sua mente é um borrão. Ele perde preciosos minutos olhando para aquela folha A4 repleta de questões e nada acontece. Lucas olha para o lado e observa uma garota ruiva cheia de tatuagens e busca chamar sua atenção. Se ele se sair mal nas avaliações, seu pai irá cobra-lo como um ditador faraônico. O importante agora é fazer com que essas coisas fiquem distante de seus pensamentos, porém o fato de a polícia está em seu encalço também o faz perder por completo a concentração. Lucas volta a olhar para a garota ruiva tatuada e a mesma percebe que está sendo observada. O filho do senhor Arthur Melo fala, mas não emite som obrigando-a fazer leitura labial.

- Não me lembro de nada. – diz ele.

Ela dá de ombros.

- Me ajuda!

Ela volta a dar de ombros.

- Por favor.

Uma sombra os encobre e em seguida o som de alguém pigarreando. O coração de Lucas tenta fugir pela boca.

- Posso saber o que está acontecendo aqui?

- Nada, professor, eu só gostaria de saber as horas.

- Lucas Melo. Você faz inglês aqui a bastante tempo e ainda não reparou o relógio bem ali, acima da lousa?

A tatuada finge que não é com ela e se volta para a prova.

- Não admitimos alunos que colam aqui. Terei que suspender sua avaliação.

A imagem do pai furioso se formou na mente do jovem que entra em pânico, chegando a implorar.

- Por favor professor, eu não estava colando.

- Pelo que eu vi você estava tentando convencer a Taís a lhe ajudar. Confesse? – bate na mesa.

Viver sobre pressão. Desde que se entende por gente Lucas não sabe o que é ter tranquilidade. Sempre muito cobrado, tudo precisa funcionar perfeitamente, caso contrário terá que sofrer as consequências. Que porcaria de vida.

- Me acompanhe até a coordenação.

Ao se levantar ele volta a olhar para a ruiva tatuada. Agora o seu olhar já não é mais de aflição, mas sim de alguém muito perigoso. Taís volta a dar de ombros preferindo concluir sua avaliação. Lucas é conduzido a coordenação em silêncio enquanto que um filme de horror é exibido em sua cabeça.

*

O dia foi um desastre, Lucas não conseguiu responder se quer uma questão e ainda por cima recebeu uma advertência. O pior de tudo não foi ser pego tentando colar, mas sim, ter colocado o nome dos Melos na lama, isso seu pai não admitirá jamais. Ninguém suja o nome Melo, nem mesmo alguém de dentro da família. Tudo por causa de uma ruiva metida a besta. Ela sim merece ser punida. Lucas aguarda em pé atrás de uma árvore terminando de roer as últimas unhas da mão esquerda. Taís, a vaca que não foi capaz de lhe ajudar na hora do sufoco.

A menina passa distraída com seus enormes fones de ouvido curtindo o som pesado do Iron Maiden. Antes de segui-la Lucas ainda confere o belo corpo de pele absurdamente branca ornamentado por desenhos de caveiras. A alguns metros dali o carro descaracterizado da polícia acompanha cada movimentação do filho de Arthur Melo.

- O que esse garoto quer com a ruivinha gostosa? – diz o motorista.

- É, Souza tinha razão. Esse cara esconde algo. – joga o zoom e bate mais fotos.

*

O treino de Reinaldo Touro é bastante puxado. Para iniciar as atividades ele corre a toda velocidade em torno da academia e depois segue para as séries de exercícios nos aparelhos. Tudo isso sob a supervisão de seu treinador mastigando seu chiclete. Eles quase não se falam, boa parte da comunicação é feita por gestos ou olhares. Touro escolheu Moacir por um único motivo, ele jamais perde a cabeça quando seu atleta vai mal ou perde um combate, ele simplesmente assume toda culpa. Na verdade Reinaldo sabe que nem tudo é culpa do treinador, ele sabe que o trabalho de um técnico é condicionar o esportista a ser melhor, a se superar e principalmente acreditar. Por isso ele se doa ao máximo.

Hora de praticar. Reinaldo vai para o ringue fazer o que ele mais gosta, destruição. Seu esparro teme, sabe que Reinaldo não hesitará em levá-lo a nocaute ainda no primeiro round. Tudo pronto. Soa o gongo e Touro quer definir logo o jogo. O outro pugilista tenta manter a distância, mas é sufocado pelos cruzado que mais parecem mísseis sendo disparados um atrás do outro. Reinaldo leva muito a sério o boxe, por isso, independente de ser treino ou não ele quer sempre ser o melhor, deseja sempre vencer. Após uma série de cruzados mal sucedidos, por fim ele encaixa um gancho que desmorona o colega de academia. Moacir não esboça qualquer expressão, somente faz um gesto sútil chamando Touro para uma conversa.

- Revanche é melhor e mais importante que disputa de título mundial. Se continuar com essa ideia de demorar para finalizar o adversário, aquele policial vai te engolir. Se liga. – soca o peito do aluno.

- Pode deixar.

*

Quanta angústia vivida nesses últimos dias em que não se sabe absolutamente nada sobre o caso da filha assassinada. Esse quadro em que se encontra Beatriz Cândido é de fazer qualquer um se sensibilizar. Beatriz sempre foi uma mulher vaidosa, ama cuidar de sua imagem, principalmente por ser a esposa de Paulo Filho, político influente. Hoje Beatriz não tem ânimo para se pentear e prefere prender as madeixas escuras num rabo de cavalo. Boa parte do dia ela se dedica aos telejornais e noticiários das rádios e quase sempre discutir com o marido. Paulo não tira a razão da esposa, ela tem todo o direito de cobrar das autoridades. Hoje não foi diferente dos outros dias. Beatriz bateu boca com o deputado e nesse momento cada um se encontra em seu canto digerindo o gosto amargo da pós discussão.

Com o rosto ruborizado e olhos úmidos, Paulo Filho liga para Souza que atende ao segundo toque.

- Não morre tão cedo.

- O que disse?

- Eu estava pensando justamente no senhor.

- Detetive Souza, por favor, alguma novidade no caso, a situação aqui em casa está insustentável, Beatriz já andou falando em divórcio.

- Pede para a dona Beatriz se acalmar, acho que a resolução do caso da filha de vocês está mais próximo.

- Como assim? – gagueja.

- Estou com um suspeito aqui, bem na minha frente.

*

Lucas Melo mexe as mãos descontroladamente. Seus olhos estão fitos no policial negro de boa aparência bem a sua frente falando ao telefone. É a primeira vez em sua vida que ele pisa num departamento policial. Lucas já havia ouvido falar de Luís Souza, sempre admirou seu trabalho, porém nunca imaginou ser um alvo de suas investigações. Assim que Souza coloca o fone no gancho a primeira pergunta é feita.

- O que você pretendia fazer com aquela menina? – coça o queixo.

- Com a Taís? Nada!

- Então por que a seguiu?

Lucas parece pensar nas palavras antes de dizê-las.

- Vai colaborar ou não? – aperta Souza.

- Acredite ou não. Eu não sou capaz de matar sequer uma mosca.

- Lucas, você tem ideia de que está acontecendo aqui? Você é o principal suspeito de ter matado a filha de um dos políticos mais importantes desse país. Eu quero te ajudar, mas primeiro você precisa me ajudar.

- Droga de vida. – os olhos ficam marejados.

- Você gostava de Maria, não é?

Lucas apenas balança a cabeça positivamente.

- Quer me contar o que aconteceu? – coloca a mão no ombro.

Lucas aperta os olhos e finalmente as lágrimas descem.

*

Arthur Melo simplesmente invadiu o departamento de polícia destilando seu veneno em qualquer um que se coloca em seu caminho. O agente da recepção o seguiu até perto da entrada do corredor principal na tentativa de detê-lo.

- Senhor, não pode circular por aqui.

- Meu filho está sendo interrogado por um crime que não cometeu.

- Senhor, seu filho não está passando por um interrogatório, ele está conversando com o investigador. Me acompanhe até a sala de espera por favor.

- Negativo. Quero ver meu filho, ele deve estar precisando de mim.

Arthur passa por cima das ordens do policial e ultrapassa a área restrita a somente pessoas autorizadas.

- Senhor, serei obrigado a detê-lo.

- Meu filho tem direito a defesa legal. – vocifera.

Nesse instante Márcia aparece na entrada do corredor com uma expressão fechada disposta a acabar com o espetáculo do velho careca.

- Senhor Arthur Melo, mais uma palavra e quem vai precisar de defesa legal será o senhor.

*

Educadamente Souza coloca o copinho com café diante de Lucas que no momento admira a sala do detetive.

- Pelo visto o senhor gosta de que faz?

- Com certeza. – volta a se acomodar em sua cadeira. – acho que você tem interesse em seguir a carreira de policial. Estou certo?

- Já tive. – abaixa a cabeça. – meu pai é uma pessoa difícil de se conviver e pior ainda de se lidar. Ele deseja que eu me forme em humanas ou em exatas.

- E sua mãe, o que acha de tudo isso?

- Minha mãe limitou-se em ficar apenas nos bastidores. Ela não opina muito.

- Você gostava muito de Maria, certo?

Lucas assente.

- O que houve entre nós durou pouco, mas significou muito para mim. – limpa as lágrimas. – Maria era perfeita, adorável, o beijo dela era doce.

Souza percebe que Lucas está disposto a soltar tudo o que se encontra preso dentro dele. Um rapaz manso, pacífico, mas com conflitos internos violentos que precisam ser cessados e se for ele a pessoa a oferecer um ombro amigo, que assim seja.

- Lucas, você sabia que eu sou divorciado?

Lucas levanta a cabeça.

- Mesmo sabendo que ela não me quer mais, eu sigo a amando de verdade.

- Difícil, né?

- Muito.

- Maria rompeu comigo, me trocou, me senti um lixo. – Lucas demonstra todo seu furor.

- Como assim, ela te trocou? – se inclina.

- Sei lá. Ela me trocou por um cara mais velho. Um sujeito que apareceu do nada lá no curso.

Luís tenta não transparecer muito empolgado.

- Você alguma vez viu esse sujeito?

- De longe, não sei se o reconheceria se o visse na rua.

Lucas assopra o café e o toma bem devagar.

- Lucas, você está me dizendo que Maria Cândido estava se envolvendo com um homem mais velho?

- Ela me trocou por ele.

- Há mais alguém que pode confirmar essa sua história?

Lucas volta a abaixar a cabeça.

- Não sei, Maria fazia tudo as escondidas.

Souza se levanta e joga o copo descartável de café no lixo.

- Lucas, você já pode ir, mas lembre-se, fique em Norma, facilite as coisas.

- Detetive Souza, eu não a matei, eu juro.

- Isso veremos.

*

Luís Souza e Márcia Bernardo nunca tiveram problema algum com a imprensa. Pelo contrário. A relação dos investigadores com ela sempre foi de cumplicidade. Mas hoje essa aliança ameaça a se romper. Quando a viatura parou a alguns metros de distância da casa de Paulo Filho, os jornalistas que aguardavam no portão giraram seus canhões para os agentes.

- Detetive, por favor, uma declaração.

- Por enquanto nada. – continua a caminhar com pressa.

- Investigadora, a senhora acompanhou os exames no corpo da jovem Maria, a senhora pode confirmar se houve estupro?

- Gente, por favor, de onde vocês tiraram essa história de estupro? – Márcia se desvencilha dos microfones.

Na parte da dentro da casa o casal Cândido acompanha a saga dos policiais até o portão. Márcia é a primeira conseguir se livrar dos jornalistas. Logo, Souza também. O deputado desce os degraus da varanda deixando Beatriz para trás.

- Eu não entendo, detetive, veio fazer buscas no quarto de Maria?

- Isso mesmo. – Souza olha seriamente para o parlamentar. – vou precisar de um mandato?

Paulo gira o pescoço para olhar para sua esposa que dá de ombros.

- Não. Claro que não. Vá.

- Com licença. – Souza e Márcia sobem as escadas.

O quarto de Maria se encontra tão bem arrumado, tão bem organizado que a impressão que se tem é que ele nunca fora ocupado. Nas paredes não há rabiscos e nem postes de Youtubers ou astro pop. Na mesa o notebook rosa segue fechado. No armário ainda há algumas peças de roupa como uma bermuda jeans, camisetas e jaquetas. Souza e Márcia fazem uma busca minuciosa deixando os pais da finada intrigados.

- Podemos ajudar, detetive? – pergunta Beatriz.

- Sim. Minha assistente vai procurar por algo no notebook dela. Enquanto isso gostaria de conversar com os senhores.

*

Souza é conduzido pelo casal até o escritório de Paulo que fica ao lado da cozinha. O cômodo lembra e muito um escritório de advocacia com uma bela estante repleta de livros e coleção Barça no topo do móvel. O lugar cheira a um tipo de produto cítrico de limpeza. Beatriz ocupado o sofá enquanto que seu marido e o policial as cadeiras perto da mesa.

- Diga? – Paulo cruza as pernas.

- Os senhores conhecem Lucas Melo?

Paulo olha para Beatriz.

- Sim.

- Ele alguma vez esteve aqui?

- Uma vez. Foi muito rápido. – descruza e cruza as pernas.

- O que vocês acharam dele?

Beatriz resolve entrar na conversa.

- É um menino adorável, acima de qualquer suspeita, eu não entendi por que Maria não quis ficar com ele.

- Então, Maria não contou a vocês o real motivo do rompimento com Lucas?

- Não. – Agora é a vez do deputado. – ela falou que ele era um cara legal, mas que não se encaixava no perfil dela. Aceitamos, não é, vida? – olha para Beatriz que confirma com um gesto de cabeça.

Luís procura pelas palavras certas antes de fazer as perguntas. Sim, dependendo do que se vá perguntar os pais podem sofrer mais do que já estão sofrendo. Seria uma bomba devastadora para eles descobrir que a filha assassinada estava se relacionando com um homem mais velho.

- Sei que vocês criaram a Maria de um jeito que ela tinha confiança e os via como confidentes, porém sabemos que há situações que é de foro íntimo, não é mesmo?

- Lógico! – Paulo coloca a mão no queixo.

- Vocês com certeza fiscalizavam o celular e o computador dela. Certo? – Souza fala devagar. – encontraram alguma coisa? Fotos, mensagens ou conversas?

- Nossa Maria era virgem, detetive, se é isso que o senhor está perguntando. – Beatriz atravessa a fala de Souza.

Agora sim o clima ficou tenso. Um breve, mas constrangedor silêncio acontece obrigando o detetive a se levantar e a caminhar naquele pequeno espaço dentro do escritório. Paulo o acompanha com os olhos e de repente ele se vê furioso com o jeito do policial.

- Souza, pelo amor de Deus, você precisa nos dizer o que está acontecendo.

- Maria estava se relacionando com um cara mais velho.

Beatriz ruboriza o rosto e a vontade que tem é de agredir o agente com tapas e arranhões, mas se controla. O deputado percebe o mal estar de sua esposa e se junta a ela no sofá.

- Detetive Souza, nossa filha nunca escondeu nada da gente, o senhor está cometendo um equivoco.

- Isso só as investigações vão dizer. Agora com licença.

Márcia aparece na sala com um celular na mão. Luís Souza aguarda uma posição de sua assistente.

- Não encontrei nada no notebook e agora estou vendo o telefone dela, também não há nada.

- Maria escondia algo dos pais, ela não era tão Santa como eles acreditam.

- E se Lucas Melo mentiu?

Outro silêncio. Souza enterra as mãos nos bolsos e se afasta, volta para dentro do quarto da menina. Parado na porta ele passa os olhos no armário, na cama, na mesinha e na janela. Ele caminha até a janela que se encontra fechada e a abre. Uma linda vista para o quintal. Bem a frente, depois do chafariz desativado um pequeno quarto o qual Souza supôs ser o lugar onde ferramentas são guardadas. A passos largos ele deixa a casa e vai até a parte de trás.

Ele chega e abre a porta. Um cheiro forte de desinfetante penetra em suas narinas o fazendo tontear. Souza olha em todos os cantos, mexe nas gavetas do velho armário, verifica ferramenta por ferramenta e nada. Xingando ele deixa o lugar e anda até o chafariz e se distrai com a estátua do elefantinho com sua tromba em forma de S. O agente entra na pequena piscina vazia de piso azul e olha ao redor e nada vê. Paulo Filho aparece no portão que dá acesso ao quintal e resolve brincar com o fato do detetive está dentro da piscina vazia.

- Bem que eu havia falado para o João, nosso funcionário, consertar esse chafariz, alguém um dia iria querer tomar um banho.

- Pois é. – volta a olhar para o elefante. – a quanto tempo está desativado?

- Desde quando nos mudamos para cá. Deve ter dois anos, mais ou menos. Maria adorava ficar sentada aí conversando ao telefone.

- Aqui? – olha para o base que sustenta a estátua.

- Sim. Por que?

Souza toca duas vezes no elefante. Oco. Toca na base que mais parece uma mesa. Oca também. Paulo se aproxima curioso.

- O que procura, Souza?

- A estátua é parafusada nessa base, mas a base não é chumbada, veja. – aponta. – qualquer pessoa, inclusive uma menina conseguiria inclinar e...

Souza inclina a base e pede para que o parlamentar procure algo embaixo da base. Muito contrariado o pai de Maria se abaixa. Enfia a mão e toca em algo. Ele olha desapontado para Souza que lhe devolve o mesmo olhar.

- Meu Deus do céu! – lamenta Paulo.

Ao se levantar o deputado tem na mão esquerda um celular.

- Ela havia dito que o celular tinha sido roubado no curso, então comprei aquele outro que a investigadora estava averiguando.

- Vou ficar com ele.

Hesitante, Paulo entrega o aparelho.

*

Paulo Filho se isola de tudo e de todos para chorar. Ele sempre fez isso. Hoje o choro é amargo, carregado de terríveis sentimentos. Maria era sua única filha. Assim que recebeu a notícia de que seria pai, ele prometeu para ele mesmo que a protegeria e que seria o melhor amigo de sua filha ou filho. Pois é, o deputado sente que falhou nessa parte. Maria, sua princesa, agia as escondidas de Beatriz e dele. Ele não consegue imaginar ela envolvida com um homem mais velho numa cama de motel de beira de estrada. O que mais ela esconderia deles? O choro sai apertado, doído e não para. O parlamentar sente o corpo pesado e desaba ali mesmo perto do chafariz.

Paulo se encontra entre lágrimas e soluços quando uma mão delicada e morna toca-lhe o ombro.

- Amor, quer companhia

Eles se abraçam. Paulo volta a chorar enquanto que sua se mantém forte acariciando suas costas. As lágrimas de Beatriz se secaram e tudo o que restou foi o senso de justiça. Tudo o que ela mais quer agora é vê o assassino de sua filha na cadeia.

*

Arthur Melo invade o quarto do filho com sua velha e assustadora expressão. Lucas percebe a presença do pai, mas continua a navegar. Arthur pigarreia impaciente.

- Pode falar, pai. – mexe no mouse.

- Você sabe muito bem que eu odeio ter que dividir atenção.

Contrariado o jovem se afasta da mesa do computador e mesmo sentado ele cruza os braços.

- Você teve um caso com a filha do deputado?

- Sim! – abaixa a cabeça.

- E quando você pretendia me contar?

- Não sei.

- Não sei não é resposta.

Um gosto ruim desce garganta abaixo. Lucas não suporta mais viver sob o julgo do velho Arthur. Ele precisa fazer algo agora ou estará condenado a passar a vida toda nesse inferno. Mesmo ciente as consequências ele resolve peitar o pai.

- Pai, com todo respeito, mas, eu preciso da minha liberdade, eu não quero ser como a minha mãe que sofre calada dentro dessa casa.

- O que está dizendo?

- O que o senhor ouviu. Pra mim já chega. Eu tenho 18, o senhor precisa entender que vivemos num lar democrático. Eu te amo, pai, mas, se é para continuar vivendo assim, eu prefiro cair fora.

- Ingratidão, era só o que me faltava. – esbraveja.

- Estou cansado de ter que usar essas roupas ridículas.

Arthur dispara porta a fora.

- Faça o que bem entender.

Lucas volta a focar no monitor e de repente seu rosto estampa um breve, mas significativo sorriso. Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós.

*

Souza e Márcia analisam com bastante cuidado os conteúdos das mensagens do aplicativo do celular de Maria. Como Luís havia dito antes, Maria Cândido tinha muito o que esconder dos pais. Santinha do pau oco, assim pensa Márcia ao ler o que ela era capaz de fazer se tivesse a oportunidade de transar com mais de um homem. Maria poderia ser o que fosse, mas nada justifica sua morte, nada mesmo.

- Acha que o tal namorado é o assassino? – questiona Márcia.

- Sim.

Uma outra mensagem faz Souza engasgar com o seu conteúdo. Na verdade se trata de uma mensagem de áudio onde ela conversa com uma tal de Isa sobre um encontro com homem chamado Maurício.

Isa: E aí amiga, como foi ontem?

Maria: Cara, nem te conto, foi sensacional, se eu soubesse que homens mais velhos eram os melhores, eu nunca tinha me envolvido com meninos da minha idade.

Isa: E aí, ele tem pegada?

Maria: Muita. Me machucou algumas vezes, mas valeu a pena.

Isa: E quanto ao Lucas?

Maria: Ah, felizmente para mim e infelizmente para ele a fila andou.

Márcia olha para o chefe.

- Maurício, já temos um nome.

- Deve haver alguma foto. Vamos seguir.

A assistente continua com o trabalho de análise enquanto que Souza vai até a cafeteira. Sua cabeça volta a ser alvo da luta contra Touro. Uma revanche é sempre uma revanche. O ginásio estará lotado, com pessoas enlouquecidas, exigindo que ele massacre o campeão. Touro. Ele coloca dois copos e os enche até a borda não dando espaço para adoçar.

- Porcaria!

Luís está confiante, sabe que pode ganhar esse combate e tudo isso graças a experiência e dedicação de Tornado. Em uma de suas inúmeras preleções com Souza ele disse que revanche também pode significar recomeço.

- Precisamos voltar do início e descobrir onde erramos.

De repente Souza vê uma luz, uma ponta de luz num túnel onde o breu domina. Ele se apressa em levar o café para Márcia. Entra na sala já perguntando.

- Qual o nome do rapaz que encontrou o corpo da Maria?

- Tenho que ver. – diz se levantando.

- Temos que voltar, lá no início, lá na autoestrada.

Márcia puxa nos arquivos e lá está o nome do rapaz.

- Eita. Maurício Assis.

- Bingo! – estala os dedos.

- Faz sentido. – Márcia volta para as análises do celular. – temos que encontrar uma foto ou vídeo, sei lá.

Demorou, mas por fim os agentes encontraram uma gravação de pouca duração onde Maria dança de lingerie para um homem o qual ela chama de Maurício. Souza dá um salto da cadeira apontando para o aparelho.

- É o mesmo cara que encontrou o corpo. Vamos buscá-lo, agora.

*

A motocicleta para na porta da recepção de um motel três estrelas. Na condução do veículo está Maurício e na garupa uma menina que aparenta ter seus 16 anos. Para dificultar e não ter trabalho, Maurício a orientou a não retirar o capacete. Ele paga a estadia com dinheiro vivo.

- Vamos ficar duas horas somente.

A moça da recepção olha para a menina sentada atrás e depois para o piloto, pega o dinheiro e dá de ombros para a situação.

- Boa noite. – diz a recepcionista entregando a chave. – quarto 12.

- Obrigado!

Dentro do quarto Maurício não pode deixar de notar o nervosismo da menina e por isso tenta acalma-la.

- Vem aqui. – a puxa para junto dele sentado na cama. – tudo bem com você?

- Estou com um pouco de medo. Eu nunca fiz isso.

- Sério? – a beija na testa. – fica tranquila, o papai aqui vai cuidar bem de você. Veja, eu trouxe um presente.

Maurício lhe entrega uma sacola. A menina branca de cabelos compridos castanhos e sardas nas bochechas abre a sacola devagar.

- Uma lingerie, eu nunca usei isso?

- Tem sempre a primeira vez. Vá colocar no banheiro, quero que já saia de lá dançando. Tudo bem? – segura no queixo pontudo da menina.

- Acho que sim.

Ele se esparrama na cama somente de cueca. E para deixar o clima ainda mais favorável, Maurício diminuiu a luz, colocou a bebida no balde de gelo e na mão algumas notas de vinte e cinquenta. Tudo o que ele quer é um showzinho particular antes de conferir o material. Ana Clara aparece na porta do banheiro vestida como uma stripper profissional, porém com uma diferença, ela está completamente tímida.

- Essa calcinha e pequena demais.

- Essa é a intenção. Dance, por favor, dance.

Não há nada que Ana Clara possa fazer. Ela topou sair com ele, aliás, a dias eles vem se encontrando as escondidas. Maurício Assis é um lobo sedento por carne de meninas novas, um tarado em potencial. Ana ensaia alguns gestos e mesmo ruborizada ela ainda consegue fazer com que sua cintura balance.

- Isso, bebê, você consegue.

Dois toques na porta e Maurício quase infarta. Ana para de dançar e corre para o banheiro.

- Calma, garota, deve ser nosso lanche.

A porta é aberta e realmente é o lanche encomendado levado pela recepcionista.

- Obrigado. Está tudo aqui? – abre as sacolas.

Nesse momento dois homens armados invadem o quarto. A recepcionista sai de cena e Maurício solta as sacolas do lanche no chão.

- Você está preso, Maurício Assis, coloque a roupa. Onde está a menina?

- Que menina, do que estão falando? – diz com os braços erguidos.

- Deixa de conversa. Onde está a garota?

Na saída do motel é possível ver um Maurício acuado tentando se defender e Ana Clara aos prantos sendo acalmada por Márcia. Souza se aproxima de Maurício.

- Você tem muito a me dizer. Entre na viatura.

*

Márcia viveu para ver seu chefe tomando suco natural de laranja sem açúcar sentado num belo bar repleto das melhores e maiores cervejas do mundo. Ela está orgulhosa em ver o xerifão de Norma empenhado nos treinos.

- Estou encantada.

- Vai começar a tiração de sarro? – brinca.

- É estranho vê-lo ao lado desse copo duplo de suco.

- Vou ganhar essa luta, ah se vou!

- E Maurício Assis, falou tudo?

Souza toma um gole do suco.

- Demorou, mas ele acabou confessando que matou a filha do deputado. Lucas não mentiu. Eles estavam juntos a algum tempo e tiveram um desentendimento. Maria o ameaçou dizendo que iria contar tudo para o pai.

- Hum. Então ela se aproveitou do fato de ser filha de um político?

- Maurício Assis é esperto, planejou tudo. Com certeza ele sabia que Maria ainda mantinha contato com Lucas. Tudo o que ele precisou fazer foi plantar provas contra o garoto.

- Sim, o número do celular dele no bolso da calça.

- Malandro! – toma mais suco.

- E o casal Cândido?

- Estão providenciando o sepultamento. Agora que tudo se resolveu, penso eu que as coisas vão começar a entrar nos eixos.

- Será que o nosso próximo presidente será Paulo Filho? – Márcia sorrir.

- Sei lá, dois votos ele já tem.

*

Foi como Souza esperava. O ginásio está lotado. Lotado até demais. Touro está em seu corner sendo orientado por Moacir. Tornado massageia os ombros de Luís que se esforça em não dar atenção aos seus torcedores que gritam seu nome incessantemente. Hora da verdade. Eles vão para o centro do ringue. Reinaldo parece um animal pronto para desfacelar seu alvo. Revanche, onde Souza estava com a cabeça quando propôs isso?

A luta começar e Touro não está para brincadeira. Dois cruzados, os quais Souza teve que trabalhar a esquiva. Agora um direto que se pega era lona na certa.

- Isso, Luís, mexa as pernas. – grita Tornado.

Os dois lutadores estão se respeitando demais e isso irrita o público de ambos e logo as várias ecoam. Touro e Souza entendem o recado vindo das arquibancadas e resolvem dar espetáculo. Muita trocação de golpes violentos até o término do primeiro round. Luís é elogiado por seu treinador enquanto que Touro apenas gesticula para o seu.

Mais um round e dessa vez é Souza quem desfere um forte cruzado de esquerda fazendo Touro cambalear segurando nas cordas. A galera vai a loucura. O detetive aplica outro cruzado e Reinaldo cai. O árbitro abre contagem. No cinco ele já está novamente de pé. É um Touro mesmo esse tal de Reinaldo.

Em menos de um minuto Souza é bombardeado com dezenas de diretos o deixando sem reação e por fim um gancho o faz ver a cor da lona bem de perto.

- Merda! – berra Tornado.

Contagem. Souza luta para ficar de pé. Metade do ginásio está em silêncio. No sete o detetive já é novamente a ameaça ao cinturão de Reinaldo.

- Lutem! – grita o árbitro.

É tudo ou nada. Os dois lutadores proporcionam uma verdadeira aula de boxe aos presentes. Tanto Tornado quanto Moacir estão boquiabertos com seus alunos. Sequências de cruzados, diretos, ganchos entre outros. Todo o ginásio agora aplaude a dedicação dos pugilistas até o último momento.

*

Souza e Tornado tomam cerveja dando as melhores gargalhadas. O treinador está explodindo de alegria analisando cada detalhe de seu aluno dentro do ringue.

- Aquela esquiva fez com que Reinaldo perdesse o equilíbrio, foi até engraçado. – brinca Tornado.

- Foi mesmo.

Na porta do estabelecimento aparece Touro com mais dois sujeitos com pinta de brigões. Eles entram e andam em direção aos dois. Souza e Tornado se levantam prontos para um possível acerto de contas ali dentro do bar.

- Fica frio Touro. – diz Tornado.

- Eu estou frio. Empate técnico foi um bom resultado. – estende a mão para Souza. – eu só vim agradecer o oportunidade de poder lutar com o nosso xerife.

- Que nada. Você é um baita de um lutador. – diz Souza o abraçando.

- E tem outra. – Reinaldo fala. – Moacir não aceitou o empate. Gostaria de saber se você me aceita como aluno?

Tornado cumprimenta o seu mais novo discípulo sob o sorriso orgulhoso de Souza.

- Aliás, não só eu, mas, os meus amigos aqui.

- Todos vocês serão muito bem vindos. Tomam uma cerveja com a gente? O Souza paga.

FIM

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Júlio Finegan
Enviado por Júlio Finegan em 04/05/2020
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