Por um triz

- Janta comigo, Sr. Queen? - Indagou o inspetor Highsmith, aproximando-se do detetive novaiorquino que parecia entretido lendo algo na tela do computador. O interpelado ergueu os olhos, surpreso, e consultou a tela do celular, ao lado do teclado.

- Já são quase oito horas? Esse caso me entreteve mais do que eu poderia esperar...

Espreguiçou-se e colocou o celular no bolso do casaco, parecendo avaliar as possibilidades.

- Não vai para casa jantar, inspetor? - Questionou.

- Eu ia, mas acabei de receber uma ligação me pedindo que aguardasse; prenderam um possível suspeito no caso Lyla Johnston, estão trazendo o homem para cá.

- Então, temos um suspeito - analisou Queen, erguendo-se. - Vamos jantar logo, que não raciocino bem de estômago vazio.

Os dois homens saíram do distrito da Polícia Metropolitana de Londres, à frente do qual estavam estacionadas algumas viaturas, e atravessaram a rua. Na esquina, entraram num pub habitualmente frequentado por policiais.

- O de sempre, inspetor? - Indagou o proprietário, por trás do balcão.

Highsmith virou-se para o detetive:

- Linguiças com purê de batata e café, Sr. Queen.

- Está bem para mim - assentiu Queen.

- Dois - disse o inspetor para o atendente, erguendo dois dedos em V.

* * *

Após jantarem, Highsmith e Queen voltaram para o distrito, onde lhes foi informado que o suspeito havia sido levado para a sala de interrogatório. Antes de entrarem, a dupla conversou brevemente com os policiais responsáveis pela captura, Howard e Mitchell.

- O suspeito, Kaleb Nicholson, foi identificado com base nos vídeos das câmeras de segurança, na rua onde Lyla Johnston residia - relatou Mitchell. - Tem antecedentes criminais, por invasão de domicílio, roubo e agressão, mas nunca esteve envolvido num caso de assassinato... ao menos, até agora.

- Algum pertence da vítima foi encontrado com ele? - Indagou Highsmith.

- Não, nada... sequer o celular dela - lamentou Howard.

- E ele apresentou algum álibi para a noite do crime? - Questionou Highsmith.

- Disse que passou a noite em casa, com uma mulher, Bianca Wallace. Ainda não a localizamos, mas desconfio que irá confirmar o álibi - redarguiu Mitchell.

- Por quê? - Questionou Highsmith, braços cruzados.

- É namorada do suspeito - informou Mitchell.

- Não espere obter uma confissão rápida, inspetor - avaliou Ellery Queen. E voltando-se para Mitchell:

- Há algo que tenham notado, que possa nos servir no interrogatório?

- A atadura... - comentou Howard.

- O suspeito está com uma atadura no braço direito - informou Mitchell.

- Vamos verificar isso no exame de corpo de delito - avaliou Highsmith, antes de dispensar os dois policiais.

* * *

Kaleb Nicholson, um sujeito magro e alto, cabeça raspada, estava sentado na sala de interrogatório, braços cruzados. Não mudou de postura ao ver entrarem Highsmith e Queen.

- Sabe porque foi trazido para cá, Sr. Nicholson? - Inquiriu Highsmith, ligando o gravador.

- Multa de trânsito? - Retrucou Nicholson de forma insolente.

- Você ouviu falar do caso Lyla Johnston? - Insistiu o inspetor.

- Eu não vejo muita televisão - desdenhou Nicholson.

- Lyla Johnston foi estrangulada em seu apartamento na madrugada de quinta-feira passada. Temos razões para crer que pode estar envolvido neste crime, Sr. Nicholson - prosseguiu Highsmith.

- Então apresente suas evidências no tribunal - replicou Nicholson. - Não direi mais nada, reservo-me o direito legal de permanecer calado.

Queen olhou para Highsmith e balançou negativamente a cabeça.

- Melhor pedir logo o exame de corpo de delito - sugeriu. - Vamos ver o que o Sr. Nicholson esconde sob aquela atadura...

O suspeito mostrou-se subitamente alerta ao ouvir o comentário. Descruzou os braços, e inclinou o corpo para a frente, numa atitude hostil.

Highsmith desligou o gravador, e a dupla saiu da sala.

* * *

- Parece uma mordida - declarou o dentista forense a quem Highsmith mostrara as fotos do ferimento no braço de Nicholson, tiradas no exame de corpo de delito.

- "Parece"? - Questionou o inspetor. - Não pode ser mais assertivo, Dr. Morgan?

- Infelizmente, não - lamentou o dentista, devolvendo as fotos para Highsmith. - De antemão, lhe informo que marcas de mordidas em pele não são aceitas como provas forenses em tribunais sérios. Isso porque, além das marcas produzidas por uma arcada dentária não terem um padrão único, que possa ser associado a um indivíduo específico - como ocorre com as impressões digitais, por exemplo -, a pele humana é muito elástica, deforma-se com facilidade, e a mordedura de uma mesma pessoa pode deixar marcas completamente diferentes, dependendo do ângulo, do movimento do corpo etc. Enfim, dificilmente a corte aceitará isto como evidência, na falta de elementos mais fortes que sustentem a acusação.

- Lembro-me de um caso, nos Estados Unidos, onde um homem foi sentenciado com base numa mordida - comentou Ellery Queen, mão no queixo.

- Felizmente, não estamos nos Estados Unidos - retrucou o Dr. Morgan, com um sorriso gélido. - Suspeito que terão que buscar evidências em outro lugar.

- O que sugere? - Highsmith parecia ter se dado por vencido.

- Já se passaram vários dias desde o assassinato, portanto creio ser inútil tentar encontrar DNA da vítima na marca de mordida ou na pele do suspeito - ponderou o Dr. Morgan. - Certamente ele deve ter lavado e limpado o ferimento várias vezes, desde então.

- E na boca da vítima? - Sugeriu Queen.

- Se bem me lembro, o cadáver foi encontrado quase 48 h após a morte - relembrou o dentista. - Isto certamente degradou a qualidade de qualquer DNA alheio ao da vítima que possa ter ter estado presente, além da possibilidade de contaminação externa... exceto...

- Exceto? - Exortou-o o inspetor.

- Preciso examinar a boca da vítima - replicou o dentista, parecendo ter se lembrado de algo.

* * *

- Fios de cabelo? - Indagou o inspetor Highsmith.

- Fios de cabelo, deveras - assentiu Ellery Queen, exibindo o relatório recém-impresso. - Ao morder o agressor, quando este lhe deu uma gravata, Lyla Johnston ficou com alguns fios de cabelo presos entre os dentes. Como foram arrancados com os folículos, o laboratório forense não teve muita dificuldade em identificar o DNA de Kaleb Nicholson.

- Bem, agora temos mais do que uma mordida para apresentar à corte - ponderou Highsmith.

- A colaboração involuntária da morta foi decisiva neste caso - avaliou Queen, consultando a hora na tela do celular. - Almoça comigo, inspetor?

- Com muito gosto, Sr. Queen - replicou o inspetor, dedo erguido. - Mas eu escolho o cardápio.

- [28-03-2020]