O ÓDIO NOSSO DE CADA DIA

Até o começo dos anos 2000 era de praxe haverem investigadores que ficavam de plantão nos grandes hospitais. Eram responsáveis por colherem as informações em primeira mão de tudo o que pudesse ser de natureza criminosa. Havia para eles até uma sala particular nas instituições. Era um serviço relevante, mas era conhecido na Polícia Civil como O Desterro ou Limbo. Reservado para os prestes a se aposentar, os absurdamente incompetentes ou preguiçosos, os com problemas psiquiátricos, os sob investigação ou os em desgraça. Esse último era o caso de Valdir. Em 1996 já estava a três anos alocado no Hospital do Mandaqui, na Zona Norte de São Paulo. Retribuição do Delegado chefe do último departamento por onde passo pelo par de chifres que ele havia lhe dado.

A grande porcaria da função era que não era ele que continuava as investigações dos casos. Já prendera alguns em flagrante por tentarem passar por inocentes acompanhando as vítimas. Mas nada que comprasse seu perdão. Não era de todo ruim. Seu plantão era noturno, 12/36hs, dez plantões mensais. Sobrava tempo para fazer uns bicos de segurança e, como a maioria dos funcionários do hospital sendo do sexo feminino, a caça era farta ao ponto de poder esnobar. A única que era fixa era a legista, por motivos que não eram visíveis a olho nu. Mesmo assim seu sonho era "voltar para o batente"; fazer diligências, investigações, tocaias, prisões que aparecessem no Noticias Populares ou nos jornais da noite. Jornalistas o apertando, implorando por declarações ou enfiando seus microfones na sua cara:"Investigador Valdir, investigador Valdir, alguma informação sobre o caso?" Ele ali, do lado do elemento, cara de sério. Despertava e acordava no devaneio desse sonho e isso só aumentava o ódio que sentia por sua ocupação atual.

Eram cerca de três da manhã quando a ambulância deu entrada no P.S. Como de costume lá foi ele atrás dos socorristas como mosca de padaria. Era um caso de coma alcoólico. Nada interessante.

"Porra, finalmente o desgraçado do marido da Néia cumpriu seu destino. Bebeu até morrer. "

"Você conhecia esse cabra Jaime?"

"Um desgraçado. Eu trabalhei uns anos no outro plantão. Ele era marido de uma das auxiliares daqui do P.S., a Néia. Ela vivia aparecendo com hematomas pelo corpo e com maquiagem pesada. Era triste. Quantas vezes a peguei chorando baixinho no descanso ou pelos cantos. Taí um que foi tarde."

"Isso já vem de muitos anos?"

"Desde que eu trabalho aqui. Fazem 13 anos. E ela já estava aqui e era casada com ele."

Parou pensativo diante do corpo por uns 2 minutos enquanto o enfermeiro foi cuidar de outros afazeres, depois começou a examina-lo. Era um cinquentão barrigudo, olhos já com traços amarelos, a pele seca e enrugada. "Jaime, preciso de um favor. Colhe quantos tubos você puder de sangue desse pudim de pinga enquanto ainda não esfriou."

"Prá quê. Vai tentar indiciar a Katia ou a Breja? Haha!" Além disso eu preciso dos pedidos médicos para fazer isso."

"Os pedidos eu consigo com a Drª Shinigami. Aliás é para um estudo dela mesmo"

"Você continua comendo a Japa papa defunto? Quer impressionar a Drª Morte?"

"Fala dela assim não. Além do mais só com àqueles que conhecem a morte é que aprendemos a apreciar a vida"

"Filosófico. Eu vou colher, mas se você não aparecer com esses pedidos em meia hora jogo os tubos tudo fora."

"Valeu. Fico te devendo uma"

"O dia que eu resolver cobrar tudo que me deves, eu fico rico, lindo. Você ainda vai me ajudar a enterrar um bofe." Saiu rindo.

Valdir saiu voando em direção do necrotério. Mas ao parar na porta da escada de serviço deu uma olhada para as cadeiras ao lado da porta da Sala de Emergência. Viu a esposa. Uma mulata quarentona sentada ao lado de uma moça e de um adolescente. Ela era bonita, mas se percebia no rosto as marcas de uma vida sofrida. Mas o que lhe chamou a atenção foi o semblante. Era visível a miscelânea de alívio e tristeza. Mas o que se sobressaia era a preocupação. Desceu as escadas até o morgue como um raio.

"Sophia, eu preciso um enorme favor. Um cara acabou de morrer no P.S., supostamente de coma alcoólico. Eu já pedi que colhessem o máximo de tubos de sangue possíveis. Eu preciso que você faça os pedidos."

"Oi amor, você está bem? Que saudades eu estava de você. Não via a hora de ter uma folguinha para vir te ver. Sabe, mesmo que não sejam sinceras, são essas as palavras que eu espero ouvir quando você desce aqui. "

"O amor, você não sabe que eu te adoro? É que o troço é importante"

"Você suspeita de envenenamento em um alcoólatra? Esses caras costumam se envenenar sozinhos"

"Imagine-se casada com um bêbado durante décadas. Os melhores anos da sua vida perdidos do lado de um pudim de pinga. Além disso o cara é violento, apanhar e tentar esconder que apanha é sua rotina. Durante anos você pede que a cirrose, um carro ou uma briga de bar o leve. Mas o desgraçado insiste em voltar cambaleando toda noite, aumentando o volume do ódio que já está crescendo há anos. Você trabalha na área da saúde, começa a imaginar formas de se livrar dele sem se incriminar. Até que acha a forma e um belo dia a oportunidade se apresenta. Como você faria?"

"Me convenceu, vou fazer os pedidos. Mas depois do plantão você é meu! Sinceramente eu me livraria dele desta forma..."

Se revestiu de sua expressão mais compreensiva e empática e se aproximou da viúva: "Meus pêsames Dona Lucineia. Eu sou o investigador de plantão Valdir. Eu poderia trocar algumas palavrinhas com a senhora."

"Tem que ser agora? Eu tenho tanta coisa para fazer, avisar os parentes dele, liberar o corpo..."

"Desculpe Dona Lucineia, é procedimento padrão. Além disso eu sou amigo da legista, posso acelerar o processo. Tenho certeza que sua filha pode ir adiantando a parte de avisar os parentes. Eu já pedi para a menina da recepção para que ela usasse um dos ramais. Vai ser tudo muito rápido. "

"Então tudo bem."

"Me acompanhe por favor"

Foram até o cubículo que lhe servia de escritório. Lhe puxou uma cadeira, mas não sentou atrás da sua mesa e sim em outra cadeira em frente da porta, bloqueando a saída: "A senhora não se importa que eu grave seu testemunho. Poupa tempo porque assim o escrivão só transcreve, não precisa dar novo testemunho." Tirou o pequeno gravador do bolso e o ligou.

"Tudo bem."

Neste momento ouve-se uma batida na porta. Ele abre e entra a médica legista:"Desculpe Dona Lucineia, a Drª Sophia Shinigami, legista da divisão do IML aqui do hospital pediu para acompanhar seu depoimento porque ela precisa fazer algumas perguntas sobre o hábito de beber do seu marido. "

"Tudo bem" O tremor era patente na sua voz.

Ligou o gravador de mão: "Então, Dona Lucineia, conte me o que aconteceu esta noite."

"Ele chegou do serviço por volta das 17:30hs, tomou banho e avisou que ia sair. Ele fazia muito isso e a gente sabia que ia ao Bar do Mané na esquina. Por volta das 22:00hs, depois da novela, eu fui dormir. Acordei por volta das duas e encontrei ele no chão da sala. Não era a primeira vez. Quando tentei levanta-lo para voltar ao quarto percebi a falta de respiração e batimentos cardíacos e chamei a ambulância. "

"Seu marido bebia muito?"

"Muito, desde a época que eu o conheci. Mas eu era jovem, achava que ele mudaria. Depois vieram os filhos. A gente acaba aprendendo a lidar doutor"

"Sério? Eu nunca aprendi. Meu pai era um bêbado desgraçado. Gastava o salário no bar. Vivia nos envergonhando, isso quando não estava nos espancando. Era quase suportável. Vê-lo espancando minha mãe, isso era insuportável! Meu Deus quantas noites eu sonhei com ele morrendo! De tantas e tantas maneiras. Mas eu era covarde. Nunca tive sua coragem."

"Minha o que!?"

"Sua coragem. Quando me contaram sua estoria soube exatamente o que ocorreu. Minha dúvida era "como". Pedi que fizessem vários exames de sangue com urgência e a Drª fez uma exploração ainda na Sala de Emergência. O álcool antes de cair na rede sanguínea passa pelo intestino e pelo fígado. É diferente de álcool puro. Sabia que existe um exame que permite detectar insulina exógena? Além disso os dois arrebentam a veia. Imaginei que você usaria as mesmas que os socorristas iriam usar. E pronto! A Drª dissecou a veia e encontramos provas irrefutáveis do que você fez. Se você confessar agora sua pena se torna muito mais leve. O processo leva anos e com o histórico do seu marido é capaz até de ser inocentada. Se negar vai ganhar uma prisão provisória sem prazo para acabar."

Olhava para ela já esperando as fases da confissão. Primeira, a negação: "Você só pode estar brincando?". Segunda, a negociação: " Você jura que eu não vou para a cadeia direto?" E, por fim, a catarse:

"Vocês não tem ideia a quanto tempo eu queria me ver livre dele. Mas o desgraçado só era um porco em casa. Mantinha-se como um bom funcionário, recebia muito e arcava com a maior parte das despesas. O que ele não tinha o menor pudor de jogar na minha cara. Meus filhos precisavam do dinheiro. E eu não podia trabalhar mais porque eu precisava defender meus filhos dele. Suportei as humilhações, as surras, a degradação. Mas quando ele espancou meu filho e o ameaçou expulsar de casa por ele ser homossexual, foi o limite. E eu confesso! Eu confesso. injetei álcool Zulu, 20 ml, na veia basílica do braço direito. Depois 3 ml de insulina regular no mesmo lugar. E foi uma delícia. Devo ter demorado uns dois minutos para terminar. Injetava um pouco, puxava de volta só para ver refluindo o sangue do maldito, injetava mais um pouco, depois puxava. Amei cada segundo!

"Bem Dona Lucineia, eu e a Drª vamos sair um pouco. A porta vai permanecer fechada. Daqui a pouco uma viatura vai leva-la até a delegacia onde a senhora vai dar sua declaração oficial. Até mais."

Depois de fechar a porta deu 5 passos até dar um salto e gritar: "Capa do Noticias Populares aqui vou eu! Enfermeira assassina! Não melhor: Morreu com o que gostava! Mulher mata marido com cachaça enfiando álcool sua veia! Uma obra prima! Uma obra prima! Fala para mim meu amor, tem alguma forma de eu provar qualquer uma das baboseiras que eu falei?"

"Nenhuma, não existe exame para identificar álcool injetado, o de verificar insulina exógena é muito específico e só se consegue com evidências fortes. E duvido que eu consiga alguma coisa dissecando aquela veia. Mas eu me impressionei com a sua estoria. Não sabia que tinha tido uma infância tão sofrida."

" E não tive. Meu pai era pastor batista, abstêmio e incapaz de fazer mal a uma mosca. Eu sou um gênio, eu sou um gênio, eu sou um gênio..."

Diogenes R Cardoso
Enviado por Diogenes R Cardoso em 31/01/2020
Reeditado em 17/08/2024
Código do texto: T6855172
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