O ÓDIO NOSSO DE CADA DIA*
O Investigador Alcântara examinava absorto a cena do crime. A calçada onde a moça fora alvejada ainda mantinha as manchas cor de vinho no concreto. Algo que seu avô lhe ensinara da primeira vez que tentara mentir para ele. "Você disse que o menino roubou sua mochila aqui. Uhum... E foi aqui também que ele machucou seu dedinho com canivete. Uhum..." Lhe deixou em uma lanchonete e apareceu meia hora depois com a sua mochila nas mãos. "Marcas de sangue são difíceis de sair do cimento meu filho. Não era mais fácil dizer que tinha esquecido no fliperama que eu te proibi de ir?" Aprendera na sua profissão que assim como sangue no asfalto, o ódio era quase impossível de esconder. E o que tinha na frente era um crime de ódio.
Chacoalhou a cabeça. De volta para o presente. Segundo as testemunhas o atirador parou a moto em frente da casa da vítima. Esta sempre ficava na calçada durante a tarde porque, grávida de sete meses, não aguentava o calor de dentro do domicílio. Parou a moto, tirou o capacete, olhou fixamente no rosto da vítima, puxou do colete uma doze cano serrado e deu três tiros, o primeiro no rosto, o segundo no peito e o terceiro na barriga. Fugiu sem levar nada. Segundo o manual, crime passional. Só que de paixão, de rompante, de intempestivo, a ação não tinha nada. O criminoso observou a vítima e calculou exatamente o quê queria e como queria fazer. Um ódio marinado e curtido bastante no tempo. A pessoa que fizera aquilo planejara o ato inúmeras vezes. Se preparara durante meses, até anos, para matá-la. Imaginara a cena incontáveis vezes e de formas diferentes. Até a sequência era bem reveladora. O primeiro tiro foi no rosto, para desfigurar, descaracterizar, humilhar a vítima. O segundo foi no coração, para confirmar a morte e para ferir o que ela havia lhe ferido, e o terceiro fora na barriga, para privá-la até de descendência. Mas porque tirar o capacete revelando a identidade? Se era para ele importante que ela soubesse quem estava matando-a, porque não erguer apenas a viseira? Já tinham até foto colorida do elemento. Branco, loiro e de barba, ia ser fácil de achar. Todos estes pensamentos lhe ocorriam enquanto repetia a cena, ora do angulo do atirador, ora do angulo da vítima. Pegou no celular: "Aline, minha gostosa, tenho serviço para você. Samantha, com agá depois do t, Silva Neres, RG tal, CPF tal, 29 anos, mãe tal. Checa aí se ela foi vítima em algum caso de estupro, ou agressão. Checa também no registro de menores. Eu sei que dá o maior trabalho, mas avisa que a fulana morreu e que o sigilo pode ser respeitosamente mandado as cucuias. Tô te mandando umas fotos da princesa para ajudar a convencê-los. Um abraço, gostosa. Depois a gente se fala. É urgente viu. Tchau!"
Bem, não adianta nada ficar aqui. A posição do corpo não vai me dizer nada. A mãe está sem condições de falar seja o que for e as irmãs também. O padrasto parece ser um belo de um "cornuto contentti", também não deve saber de nada. Vamos ver... O bar da frente é um típico ninho de moscas brejeiras e cachaceiras. O dono pode ter coisas interessantes para dizer, mas não é o que eu quero agora. Eu quero fofoca. E fofoca quer dizer...: "O moça, você sabe onde a vítima fazia os pés ou o cabelo?"
"O seu dotô, ela era enjoada. Só ia em um salão lá na avenida." Merda! Bem, vamos dar uma volta. Encontrou a 200m uma pequena boutique com uma senhora de três quartos de idade sentada na porta. Roupa de crente e uma cara azeda de doer. É essa mesma! Deve saber da vida dos moradores da vila inteira melhor até do que elas mesmas:
"Boa tarde!"
"Boa tarde."
"Posso trocar dois minutos de prosa com a senhora?"
"O senhor é o policial que está investigando a morte da Samantha?"
"Sou sim. Investigador Alcântara. Tome aqui um cartão meu. O seu nome é..."
"Vilma. O povo aqui me chama de Dona Vilma."
"A senhora conhecia a vítima?"
"Conhecer a gente nunca pode dizer que conhece, mais..." Daí a metralhadora de veneno saiu disparando à todo vapor. Aquele ódio espraiado entre a vida e as pessoas que se dissimula por trás de um véu de santidade, sempre tão útil para o trabalho policial. Enquanto ela falava uma passagem bíblica ficava brincando em sua mente: "Ai de vós, hipócritas! pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia".
Bem, depurando a peçonha, a estória era até que simples. Haviam chego na comunidade há uns dez anos atrás, ela e a mãe, vindas de lugar nenhum, com jeito de fugidas. No primeiro ano até pareciam gente de bem, trabalhadora. Mas como o que se é sempre vem a tona, como uma baleia que precisa de ar, logo a mãe começou a dar mole para caras casados e a filha passou a andar com a fina flor da malandragem do lugar. A progenitora embuchou, perdeu, embuchou de novo, ganhou. Vivia da pensão do pai da criança, que dizia-se era gorda, e da ajuda do "cornutto". A menina rodou a banca dos "irmãos", foi para a pista, Jesus a achou e trouxe para seu rebanho. Não há tempo de salvá-la de "quedar embaraçada". Mas o progenitor, pelo que parecia, também estava frequentando os cultos, tinha largado o fluxo mesmo tendo a proteção do pai e estava trabalhando de feirante, fazendo planos para o casamento. Uma lástima. De inúmeras formas. Pegou o celular:
"Ô Bandeira. É, sou eu, o Alcântara. Tem como você me emprestar uma das viaturas que estão lá na cena do crime que nem mosca de padaria? Não Bandeira, porque se eu quisesse uma viatura da Civil pedia para o Delegado, Bandeira! Eu preciso de uma viatura da Militar e dos seus meninos que precisam "manter a fama de mau". Aliás, eu realmente preciso de uns caras que conheçam aqui o bairro. Porra Bandeira! Que é que custa? É trabalho! A gravidinha baleada na favela pega mal prá nós e pega mal prá vocês, não é? Não dá para a gente se ajudar? Valeu Bandeira, fico te devendo uma. Deixo até você fazer a primeira declaração pro Datena. Hahahaha!" Voltou a cena do crime e entrou em uma Tático Móvel: "Corre para uma bocada controlada pelo mesmo pessoal daqui. Ah galera! Vão fazer essa cara de bunda agora? Vão dizer que não sabem quem manda no que aqui nesta merda? Vocês são policiais ou não? Ótimo. A gente faz assim. Me dizem onde é, eu tento comprar, vocês aparecem dez minutos depois.
Passaram Delegacia e ele colocou uma calça suja de tinta e uma camisa velha, onde sempre se guardavam destas roupas para essas ocasiões. Deixaram-no há uns trinta metros do lugar. Enquanto estava comprando a Tático apareceu e ele segurou a figura enquanto seus colegas debandavam:
"E o paspalho do dia é... Você! Fica frio que dessa vez a gente não quer nem você nem seus baratos. Eu preciso do seu celular, que vai até continuar na sua posse se você fizer o seu serviço direito. O barato é o seguinte. Me bota na linha com seu chefe que eu preciso conversar sobre a gravida morta na favela aqui do lado" Depois de idas, vindas e ameaças várias, a conversa com quem era de direito aconteceu. Em resumo, ninguém na favela tinha motivos para matar a moça. Inclusive a criança que ela esperava era neta de um dos patrões. O menino estava inconsolável e o pai espumava de ódio e já tinha até estabelecido recompensa. Estabeleceram um meio de comunicação para trocar informações com a condição que tudo continuasse como sempre e de que se "os parças" encontrassem o fulano antes, o entregassem para a polícia. Vivo... mas não precisava estar inteiro.
Bem, uma tarde inteira de trabalho e o resultado era quase nada. As câmeras dos noticiários policialescos já estavam todas no local e seu Delegado já ligara umas cem vezes pedindo que lhe desse alguma coisa: Fala Aline! Salve meu dia! Ahh, ela foi vítima em um caso de estupro quando tinha 16. O cara ainda está preso? Não, entendi. Absolvido, como? Pelo Supremo? Então o negócio deve ter sido uma bagunça. Só juízas nas duas primeiras instâncias. Entendo... Onde que aconteceu? Osasco. Passa o número do processo e já liga para o juiz para eu conseguir uma autorização. Já fez?! Ô minha delícia, o que seria da minha vida sem você? Tá, eu te pago um jantar, onde você escolher. Dentro da realidade de um policial honesto, ou seja nada muito acima do Bar do Alfredo! Olha a linguagem, logo eu, que te amo tanto minha flor. Valeu!
Foi até a vara original da ocorrência e passou a tarde examinando o processo. Pelo que pode entender o fulano e a tal Samantha tiveram uma relação consensual desde os 14 anos dela. Quando ela fez 16 ele tentou terminar e a menina ficou doida. Acusou-o de estupro, segundo ele depois de uma foda de despedida. Foi preso em flagrante. Ela negou a relação e só manteve a versão do estupro. O otário ficou preso 6 anos, a mulher se divorciou e impôs uma ordem de restrição para que ele ficasse afastado das duas filhas. Na verdade se não fosse a mãe e o irmão ela teria deixado o cara liso. Com o dinheiro da metade da casa e do carro conseguiram pagar o advogado. O último endereço conhecido era em Suzano, casa da mãe: "Chefe, vou esticar o plantão hoje. Posso ficar com a viatura, entrego amanhã? Encontrei uma pista no caso da gravida. É, só que o cara mora em Suzano. Pista boa chefe! Encontraram a moto? Queimada? O macacão e a doze estavam juntos? Era alugada? Porra chefe, pede para o Valmir ver isso! A coisa é quente, se eu deixar passar esfria. Quebra essa, vai! Valeu, você não vai se arrepender!
Chegou já eram umas dez da noite. O endereço era o de uma pequena pizzaria. Entrou. Na televisão uma reprise do Cidade Alerta falava justamente sobre aquele crime. Bom sinal, ninguém grava o que não lhe interessa: "Por favor vocês conhecem uma pessoa chamada Rafael. Rafael de Almeida Ortiz." Um senhor de meia idade, pardo, grisalho, barba bem feita, que estava no caixa olhando para a televisão respondeu: "Sou eu, porquê?"
"Alcântara, investigador do DHPP. Têm um tempinho para que nós possamos falar a sós"
"Só se eu tiver a certeza de que se trata de apenas uma conversa. Não tenho boas recordações de policiais."
"Só conversar. Não tenho mandado, estou sozinho e sem más intenções"
"Imagino. Deve ter a melhor das intenções. Você sabia que o Papa São Bernardo, famoso pela sua atuação nas Cruzadas, é o autor da frase: O caminho do Inferno é repleto de boas intenções". Enquanto falava já saía do caixa e um senhor parecido com ele o assumia. Se encaminhou para fora, encostou do lado da viatura que dava para a rua, afastado dos motoqueiros que esperavam entregas. A aparente calma dele faziam o investigador se sentir incomodado. Acendeu um cigarro: "Então, qual o problema dessa vez?"
"Você já ouviu falar de uma moça chamada Samantha Silva Neres?"
"Da vagabunda que destruiu minha vida! Lógico que eu já ouvi falar. Eu espero que essa vaca apodreça nos piores confins do inferno! Igual ela fez comigo, desgraçada! Mas o que, ela está me acusando de novo? Minha inocência foi provada no Supremo."
"Provada não, que o Supremo não analisa as provas dos autos. Ele só analisa se houveram falhas processuais."
"Que no meu caso eram um monte. Com esse monte de juíza agora o bom hoje é ser viado, que aí ninguém tem nada a ver com a sua vida."
"É, pode ser. Bem, você não está sendo acusado por nada. Ainda. Não, ela foi assassinada. Três tiros. Todos de calibre 12. O primeiro estraçalhou o rosto. O segundo arrasou o peito, bem no coração. O terceiro arrebentou a barriga. Ela estava grávida de sete meses."
"Hahahahahahaha! Deus é justo! Aquela piranha finalmente teve aquilo o que merecia. Nossa! Como eu queria estar lá para ver essa cena! Eu daria tudo nesse mundo para ver ela sendo espatifada. Uma pena que até ontem eu estava no Palace hotel de Poços de Caldas. Cheguei hoje e já comecei a trabalhar aqui na pizzaria. Pode checar."
"Pode deixar que eu vou fazer. Você foi sozinho?"
"Fui eu e meu irmão. Nossa mãe morreu faz três meses, tem sido difícil, a gente achou que merecia essa semana de férias."
"Entendi. Espera só um pouco eu atender o telefone". Se afastou do sujeito:"Fala Valmir. A moto foi alugada com uma identidade falsa. Daquelas que os nóias e sem teto vendem na Cracolândia e o pessoal revende na Sé. Certo. Pagamento adiantado em dinheiro, mas deram um cartão válido no nome falso. Entendi. Valeu Valmir"
"Se não tem mais perguntas eu preciso voltar a trabalhar seu investigador"
"Você será intimado a depor. Não se incomoda se eu der uma olhada no estabelecimento, não é?"
"De jeito algum, não atrapalhando o serviço."
Passeou por entre as cadeiras da pizzaria e olhou suas paredes. Ficou surpreso com o número de fotos que ele tinha com atores, atrizes e diretores de cinema e tv. Em destaque um troféu com a inscrição: Prêmio de Melhor Maquiagem/Festival de Brasília.
A mente do investigador fez um clique. Poucas profissões podem oferecer este incrível sentimento. Aquele momento em que tudo se torna claro, em que todas as peças do quebra cabeças se juntam e formam uma imagem clara. Este indivíduo trama a morte dela desde que foi preso. Deve ter imaginado de todos os meios e maneiras possíveis. Talvez até ter estudado maquiagem no tempo de reclusão tenha relação com seu mórbido intento. Mas antes estava na cadeia e depois provavelmente devia estar preso pelo fato da mãe viver e ele sabia que ela não suportaria vê-lo passar por tudo de novo. Talvez ela mesmo tivesse implorado para que ele deixasse tudo para lá. Mas depois que ela morreu o sonho se tornou possível. Comprou provavelmente mais de uma identidade no Centro. Há algum tempo já. Maquiou o irmão para que se parecesse com ele quando fosse necessário e voou para o endereço dela. Tinha quase certeza que as diligências no hotel dariam como se o irmão tivesse ficado no hotel enquanto ele fora em algum passeio onde fosse visto por muitos. Na verdade o irmão estaria nesse passeio e ele voando até a casa dela e vendo aquele lindo rosto se despedaçando diante dele. Os pedaços de cérebro se esmagando em sua boca e ele os degustando como se fossem manjar. E o colete de motoqueiro onde todas estas provas estavam queimadas junto da moto. Olhou para ele por um longo tempo e se aproximou do caixa:
"Nós sabemos que você nunca vai ser pego. Amanhã outro imbecil vai matar a mulher ou a ex e os jornais vão te esquecer. Até porque era só uma moça tentando reconstruir a vida, não era ninguém. E nós simplesmente não vamos alocar recursos suficientes para provar o que você fez. Entre homens, valeu a pena?"
"Se você estiver gravando quero dizer em alto e bom som que: EU NÃO A MATEI. Mas se eu tivesse feito tudo o que você disse, teria valido cada segundo. Cada delicioso segundo."
"Deus tenha pena da sua alma, meu chapa". Entrou na viatura e aproveitando que estava sozinho, deixou as lágrimas encharcarem seu rosto. Entendia o ódio dele e não o recriminava. O Senhor o perdoasse, mas teria feito o mesmo, de coração. Mas o tiro na barriga, uma vida inocente. Talvez o bebê sobrevivesse. Ele fez questão de isso não acontecesse. E isso fazia que sentisse um ódio profundo por saber que ele sairia impune. Parou em um posto, comprou um chip e pôs no celular:"Aí Irmão. Sim, é o cara da grávida. Não vai dar para a gente resolver não. O cara é bom, fez o troço direito. Esse é o nome e o endereço. Valeu."