Restos Mortais

Eu sou o Detetive Meirelles, muito prazer. Faço investigações criminais trabalhando para a Polícia Civil do meu Estado. Há alguns dias, peguei o caso mais complicado da minha vida. Como eu moro em uma pacífica cidadezinha de interior, coisas assim são quase impossíveis de acontecer. Mas vamos aos fatos:

Dia 07 de Setembro. Manhã.

Enquanto a maioria da população estava no centro da cidade assistindo aos desfiles das Escolas Municipais e Estaduais, alguns vendedores ambulantes vendiam brinquedinhos, pipoca e doces caseiros. A Polícia Militar, sempre presente nestas festividades, tinha uma viatura a cada dois metros da extensa Avenida Principal, que por atravessar a cidade toda literalmente sem curvas, tinha o carinhoso apelido de “Reta”. Aquele dia tinha tudo pra ser mais um ‘Sete de Setembro’ como outro qualquer, mas uma notícia ao cair da noite mudou tudo.

Dia 07 de Setembro. Tarde.

Depois do glamoroso desfile, uma menina de 9 anos de idade chega em casa trajando o seu uniforme escolar. Patrícia estudava em uma das poucas dezenas de escolas municipais da minha cidade. Aquela menina ao chegar em casa cumprimentou a mãe, que a criava sozinha pois o pai biológico morava em outra cidade e não estava nem aí para a filha. Ao ver que a mãe não respondia, a criança olhou em todos os cômodos da casa e ao ver que estava sozinha em casa, pensou: “Minha mãe ainda não voltou do trabalho.” Kátia, a mãe de Patrícia, trabalhava como manicure em um salão de beleza e dava o maior duro pra criar sozinha aquela menina. Como Kátia era muito jovem e bonita, quando a situação financeira apertava pra valer, ela fazia programas como prostituta sem a filha ou a família dela saber. Kátia morria de vergonha de sua profissão alternativa, mas não via outra saída quando a situação ficava ‘apertada’. Patrícia ficou na sala assistindo à TV e quando começou a primeira novela, a menina começou a ficar temerosa, pensando: “A minha mãe já deveria ter chegado há muito tempo! O que será que aconteceu?” Então, a criança começou a fechar as janelas da casa e começou a temer o pior. Assustada, quando começou a segunda novela, ela começou a chorar pensando: “Meu Deus! O que aconteceu com a minha mãe?”

Meia noite. Desesperada a criança pegou o telefone fixo de sua casa e aos prantos digitou 190:

- Polícia Militar.

- Alô, minha mãe sumiu!

- Como assim, ‘sumiu’?

- Ela devia ter voltado pra casa, por volta das seis da tarde, mas não voltou até agora!

- Qual é o endereço?

- É na Rua Filomena, número quarenta e três, perto do depósito de gás.

- Vamos enviar uma viatura para a investigação.

- Obrigada, moça.

Sem conseguir parar de chorar, a estudante ficou na sala com a TV ligada olhando para a janela. Ao ver as luzes da viatura, ela sorriu aliviada e desceu as escadas indo de encontro aos policiais. Ao ver o policial pela janela do veículo, ela foi logo dizendo:

- Oi! Fui eu quem chamei vocês.

O policial que dirigia a viatura estacionou o veículo e eu, que estava no banco de trás, ao ver aquela criança chorando, fui logo me apresentando:

- Eu sou o Detetive Meirelles. Temos que investigar a tua casa.

- Claro! Vem comigo!

Sem cerimônias a criança abriu a porta da cozinha e nos deixou entrar. Procuramos pela casa toda por algum bilhete ou algum vestígio que indicasse a possibilidade de um assalto seguido de homicídio ou mesmo de algum seqüestro. Nada de anormal foi encontrado. Conversei com a menina pra ver se encontraria alguma pista:

- Me diz uma coisa: A tua mãe por acaso tinha algum inimigo ou inimiga? Ou alguém que de vez em quando discutia com ela na vizinhança ou no local de trabalho dela?

- Não. Na vizinhança ela nunca teve inimigos. No local de trabalho às vezes a chefe e ela discutiam, porque muitas vezes a minha mãe comprava material de trabalho do bolso e quando ela cobrava isso da chefe ela não gostava nem um pouco. Fora isso, ninguém que eu saiba.

- E o teu pai?

- Eu só vi ele duas vezes, uma quando eu tinha dois anos de idade e outra quando eu tinha cinco. Aqui em casa é só eu e minha mãe. Ela trabalha pra me sustentar sozinha.

- Você não tem padrasto?

- Não. Eu vi a minha mãe beijar um cara no ano passado, era o dono da papelaria que fica na entrada do bairro, Seu Gusmão. Mas ele é casado e minha mãe disse pra eu esquecer isso, porque foi só um beijo e ela disse que se eu contasse pra alguém e a esposa dele descobrisse ia dar um problema gigante. Mas eu nunca tive padrasto. Já conversei isso com ela uma vez, mas ela disse que ‘homem só serve pra namorar e quando a barriga da mulher cresce o homem sai correndo e some’ igual o meu pai.

Nesse ponto da conversa, o Sargento Josias me interrompeu e disse:

- Detetive, vem ver uma coisa.

Pedi para a menina esperar dentro da casa, mas discretamente, sem eu perceber, ela me seguiu. Sargento Josias então abriu a tampa de uma caçamba de lixo e mostrou uma mulher aparentando ter entre 25 e 30 anos de idade morta, com o braço direito faltando, com o tórax aberto e faltando alguns órgãos internos. A vítima de homicídio tinha forte semelhança facial com a menina, que por trás de mim deu um grito que me deu um baita susto!

- IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIHH!

Virei assustado para a criança e ela me abraçou dizendo aos prantos:

- Meu Deus! Me diz que ela ta viva! Pelo amor de Deus! Me diz que ela ta só desmaiada! Me diz! Pelo amor de Deus! Me diz!

Ao ver o desespero daquela criança, eu acariciei a cabeça dela e erroneamente eu disse dando-lhe falsas esperanças:

- Nós vamos encaminhar para o Instituto Medico Legal pra verificar, ok?

Aquela criaturinha indefesa com seus olhinhos verdes avermelhados pelas lágrimas, me olhou nos olhos e disse em tom de desespero:

- Vocês vão fazer tudo pra recuperá-la. Não vão? Fala que sim, por favor! Pelo amor de Deus!

Condolescido com a dor da menina, eu respondi:

- Vamos fazer o possível.

Ela me abraçou mais forte e chorando mais ainda, disse com o rosto encostado na minha barriga:

- Meu Deus! Quem fez essa covardia com a minha mãezinha? Quem?

- Nós vamos investigar e descobrir, minha querida. Agora temos que ir embora.

Os tios da menina (o irmão da mãe e a esposa dele) moravam numa casa logo acima da casa dela. Deixei a criança sob os cuidados dos tios e fomos embora. Até agora tínhamos dois suspeitos: A chefa dela e o dono da papelaria.

8 de Setembro. Manhã.

Fui ao salão de beleza onde a vítima trabalhava, o Espaço Maria Zilda. O lugar era meio ‘apertadinho’, mas bem freqüentado. Logo de manhã estava cheio de clientes! Esperei a clientela diminuir um pouco e perguntei a um dos funcionários:

- A Dona Maria Zilda está?

- Quem gostaria?

- Detetive Meirelles. Eu gostaria de fazer umas perguntas.

Uma bela mulher aparentando ter entre 50 e 60 anos de idade maquiada ao extremo, um pouco acima do peso, trajando bermuda jeans, blusa azul decotada e sapatos femininos sem salto veio até a porta e disse rapidamente:

- Olha aqui, menino. Eu tô A-TO-LA-DA agora. Volta aqui às 18:00h que eu te dou entrevista, ta legal?

Fiz um ‘joinha’ com a mão direita e fui embora.

8 de Setembro. Tarde.

Voltei no horário combinado e a vi conversando com um funcionário dizendo:

- Se aquele detetive não me aparecer em dez minutos...

Interrompi a fala dela e disse:

- Já estou aqui.

Sorridente, ela respondeu:

- Que bom! Agora vamos rápido com isso, gatinho. Porque essa noite eu vou ferver.

- É sobre a tua funcionária Kátia...

Sem me deixar terminar a frase, ela disse:

- IIhh, meu amor! Aquela só me dá trabalho! Faltou ontem, faltou hoje e de vez em quando resolve encrespar comigo só porque compra umas coisinhas do bolso.

- Mas a Senhora...

- Me chama só de Maria, gatinho. A Senhora ta no céu.

- Tá bom, Maria, mas você chegou a brigar feio com ela nos últimos dias?

- Não. Aliás, a gente nunca brigooouu de verdade não. Só de vez em quando umas discussõezinhas de nada. Acaba tudo na boa no fim do dia.

- Fora isso, ninguém discutiu com ela nestas últimas semanas?

- Teve um dia na semana passada que uma professora de capoeira rodou o pé na cara dela porque não gostou do resultado da unha. Eu achei aquilo o cúmulo do absurdo e até me ofereci de testemunha pra ‘Katinha’ entrar na justiça contra ela. Cheguei a indicar o meu advogado.

- E quem é esse advogado?

- Doutor Samuel Delgado. Muito gente boa. Vou te dar um cartão, peraí que eu vou pegar lá dentro.

A mulher entrou no salão e voltou em menos de um minuto com um cartão de visitas na mão esquerda. Guardei o cartão na carteira, me despedi e fui embora. Ao chegar em casa, examinei o cartão. Na frente o nome e os números telefone do escritório e do celular do advogado. Do outro estava escrito à caneta por Maria Zilda: [ Gostei de ti, gatinho. Vamos no encontrar pra trocar uns beijos. Mariazinha. ] E o número do celular dela.

Há muitos anos eu não levava uma cantada, mas embora eu tivesse me simpatizado com ela, na minha profissão eu não posso me envolver com os suspeitos de um homicídio.

9 de Setembro. Manhã.

Liguei para o escritório do tal advogado. Uma secretária me atendeu:

- Escritório de Advocacia.

- Eu gostaria de falar com o Doutor Samuel Delgado.

- Quem gostaria?

- Detetive Meirelles. Preciso fazer umas perguntas à ele.

Visivelmente assustada, a moça perguntou:

- Perguntas... sobre o quê?

- Sobre uma cliente dele chamada Kátia Gonçalves.

- Ai meu Deus!

E desligou. Aquilo foi muito estranho e no mínimo muito suspeito. A partir deste ponto, eu tive quase certeza de que o assassino seria o tal advogado. Em uma segunda hipótese, a vítima poderia ter se armado de algum jeito para ‘dar o troco’ na professora de capoeira e se deu mal. De qualquer forma, fui pessoalmente ao tal escritório de advocacia. Chegando no local, uma loirinha linda com jeitos e trejeitos de adolescente me atendeu. Quando perguntei pelo Dr. Delgado a moça respondeu:

- Da parte de quem?

- Eu sou o Detetive Meirelles. Liguei pra cá há minutos atrás, mas parece que a ligação caiu.

Ela arregalou os olhos e disse:

- Ele não se encontra.

- Sabe me informar, por favor, a hora em que ele vai voltar?

- Ele não volta hoje!

Desci as escadarias do prédio e vi um homem de terno e gravata, que desceu pelo elevador, saindo do prédio e entrando em um carro luxuoso. Automaticamente eu pensei: “Será que é ele?”. Como todos os vidros do meu carro são fumê, fiquei no meu carro desligado observando. Minutos depois, a secretária dele saiu do prédio e entrou no carro dele. Pensei: “Achei! Então ele é o assassino!” Esperei ele ligar o carro dele e virar a primeira curva. Segui-os discretamente e acabei indo à rua onde a vítima morava. O carro do advogado subiu a rua, indo parar duas ruas depois da rua onde ficava a casa da vítima. Estacionei no posto de gasolina que ficava mais ou menos perto dali e vi a secretária descer do carro e entrar em uma casa. Saí do carro e fui beber um café na loja de conveniências do posto pra disfarçar e dar tempo de ele ir embora. Pensei: “O canalha deve estar pressionando ela pra esconder ele da polícia! Ela deve estar com medo de perder o emprego ou talvez de alguma coisa pior.”

Quando cheguei perto da casa dela, um forte cheiro de carne cozida se fazia presente. Como ainda era 11:00h da manhã, pensei: “Ela deve estar preparando o almoço.” Mas quando cheguei perto da porta da casa dela, vi pela janela vasculhante da cozinha um coração humano inteirinho dentro de uma panela! O órgão estava banhado em sangue e outras panelas estavam no fogão, contendo pedaços de pulmão humano em uma e um fígado humano em outra. A me ver de dentro da cozinha, ela arregalou os olhos e correu pra dentro da casa. Chamei pelo celular os policiais que sempre me acompanham nestas investigações. Em poucos minutos, a viatura chegou, nós adentramos a casa, encontramos ela toda encolhida no banheiro e levamos até a Delegacia. Então, com ela algemada em uma sala privada, comecei a interrogá-la:

- Então foi o teu chefe que matou a Kátia, certo?

- Errado! Ele não faria mal à uma mosca! EU matei aquela vagabunda e mataria de novo!

- Mas por que!?

- Porque o Samuel é o MEU homem! O MEU! Aquela desgraçada não tinha o direito de fazer amor com ele no banheiro do escritório! Eu descobri por um acaso. Meu deu a maior vontade de urinar e quando entrei no banheiro, ela estava de quatro com ele atrás pegando ela. Aquela vadia tinha que sangrar!

- Mas como você conseguiu matar ela a esconder o corpo na lixeira tão fácil?

- Eu fui na casa dela tirar satisfação depois que descobri que a casa dela ficava perto da minha. Quando comecei a falar do meu homem, ela me de um tapão na cara. Dominei ela e a ‘apaguei’ com um mata-leão. Cortei o braço direito dela com um cutelo, cozinhei e comi pelo tapão que ela me deu na cara. Depois, aproveitando que naquela manhã estava todo mundo na Reta assistindo ao desfile do ‘Sete de Setembro’, eu abri a barriga dela, peguei o coração, os pulmões e o fígado e guardei no freezer da minha casa. O resto do corpo daquela safada eu joguei na lixeira na frente da casa dela pra deixar de exemplo de que NINGUÉM, ABSOLUTAMENTE NINGUÉM MEXE COM O MEU HOMEM! Aí, eu esperei alguns dias pra a poeira baixar um pouco. E se você, seu abelhudo, não tivesse me interrompido eu ia dar os órgãos cozidos dela pros meus cachorros!

- Já que você confessou o crime, você está presa por homicídio doloso premeditado, mutilação, ocultação de cadáver e canibalismo.

Caso encerrado.

FIM

Eduard de Bruyn
Enviado por Eduard de Bruyn em 29/10/2019
Código do texto: T6782230
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