FERNANDO, O CIGANO, parte III e final

As declarações dos averiguados seriam reduzidas a termo. Antes da oitiva, que seria conduzida pela escrivã, pois já haviam sido interrogados pela delegada, peguei os autos e vi o que constava nos termos de declarações dos guardas municipais.

O condutor gcm De Carvalho declarou que, em patrulhamento de rotina, avistaram o acampamento cigano montado no acesso à ponte do Piqueri, fizeram a abordagem e que, ao se aproximarem, um dos indivíduos, Fabiano Santos, entrou no veículo e sentou-se no banco de trás. O outro, Ivo Santos, permaneceu do lado de fora. Diante disso, efetuaram revistas pessoais e nada de ilícito foi encontrado. Indagados sobre o veículo, Fabiano apontou Ivo como responsável pelo carro e Ivo confirmou.

Entretanto, segundo constava, o interior do veículo também foi revistado, mas quando começou a revista na porta traseira Ivo disse que não tinha nada a ver com o Monza que era de propriedade de um rapaz que emprestou para irem trabalhar e que esse rapaz era um primo seu de nome Fernando Santos.

Nesse instante, o gcm De Carvalho encontrou, escondido no forro lateral da porta traseira esquerda do Monza preto quatro portas, dois talões de cheque usados, um do banco do Brasil e outro do Haspa, em nome de terceiros. Ivo e Fabiano disseram desconhecer que tais talões estivessem no interior do veículo, bem como desconheciam seus proprietários. Após verificarem que os talões de cheque eram produtos de furto e roubo, Ivo e Fabiano foram conduzidos à central de flagrantes. As declarações do outro gcm eram convergentes, acrescentando que um dos talonários, já velho e gasto, continha cinco folhas de cheque e o outro, antigo também, três.

No cartório da delegacia, contíguo à sala da Belª, os increpados foram reinquiridos e mantiveram a versão apresentada, ou seja, o veículo era do primo Fernando Santos, que havia emprestado o Monza para irem trabalhar porque o carro de Fabiano quebrou na rodovia.

Tentava-se apurar quem era responsável pelo veículo.

-Então é Fernando Santos o dono do carro e ele também é seu primo?

- Não sei se o nome verdadeiro dele é Fernando mas é Santos.

- Como você não sabe? Você disse que era esse o nome do seu primo. Está dizendo agora que não sabe o nome de seu primo.

- Digo que Fernando pode ser apelido, cada cigano tem um apelido e às vezes nunca se fica sabendo o nome verdadeiro de um cigano. Eu, por exemplo, jamais sabem meu nome, se perguntar pelo cigano Fabiano ninguém vai saber, mas o cigano Magal todo mundo conhece. A gente é trabalhador, nosso primo Fernando comprou o Monza preto quatro portas ontem na feira do rolo.

- E essas tatuagens, onde você conseguiu?

- Todo cigano tem tatuagem, esta aqui...e apontava na pele clara um desenho colorido. – Esta outra aqui...mostrava a tatuagem de um índia. - Minha mulher também porta tatuagens.

- Então você está dizendo agora que carro é de Fernando Santos,seu primo, e que ele o comprou ontem, domingo, na feira do rolo, mas você não sabe se Fernando é nome verídico do seu próprio primo e que pode ser um apelido, um vulgo, mas que Santos sim é sobrenome verdadeiro, inclusive é igual ao seu?

- É isso mesmo, todo cigano tem sobrenome Santos, é de família única. Todo cigano tem o mesmo sobrenome. Todos os ciganos são Santos.

“- E eu, palhaça.” disse a doutora de sua sala.

As declarações de Fabiano foram reduzidas a termo:

“Indagado pela autoridade policial, Fabiano Santos disse que o carro é de seu primo Fernando Santos, que acredita que o prenome Fernando seja verdadeiro mas não pode afirmar com certeza e que Santos sim é o sobrenome do responsável pelo veículo e que o mesmo foi comprado ontem na feira do rolo do Piqueri e lhe foi emprestado hoje pela manhã para que pudessem trabalhar em razão de seu carro, um kadett, estar quebrado na rodovia Índio Tibiriça, município de Santo André. Fabiano relatou ainda que não havia saído com o veículo em momento algum e que não sabia da existência dos talões de cheque que estavam escondidos no interior dele.”

As declarações do outro investigado também foram colhidas no termo de interrogatório:

“Ivo Santos também oitivado pela autoridade policial disse que são ciganos e trabalham como vendedores de ferramentas compradas na rua Florêncio de Abreu; e que, na data de hoje, seu primo Fernando Santos emprestou o Monza preto quatro portas que havia comprado ontem na feira do rolo do Piqueri para irem trabalhar, já que o carro de Fabiano estava quebrado. Declarou ainda que iriam sair com o veículo pela primeira vez e que nada sabia sobre os talões de cheque encontrados na revista do mesmo.”

Fabiano e Ivo continuaram sentados no mesmo corredor em frente a 4ª delegacia de polícia especializada em flagrantes. As ocorrências começavam a aumentar. Chegou um caso de roubo de caminhão no qual os policiais militares lograram êxito em prender em flagrante os roubadores. Um caso de Lei Maria da Penha e outro de tráfico de drogas, cerca de dois quilos de substâncias entorpecentes ilícitas apreendidas e divididas entre duas grandes pedras de crack cor de porcelana amarelada e cocaína, embaladas em sacos plásticos e dinheiro do comércio. As outras três delegacias também estavam muito movimentadas.

Fabiano e Ivo permaneciam sentados na longarina em frente a nossa 4ª especializada. Fabiano mexia as pernas, impaciente, nervoso. Ivo só fazia deixar suas taquaras esticadas languidamente. Vestia botas curtas, calça bege e camisa branca larga de punhos amarrados. Tinha o rosto moreno marcado por brigas de rua e suas pernas longas eram agilmente, a todo instante, recolhidas à passagem dos policiais militares, investigadores, escrivães, cartorários, delegados, um ou outro advogado e os seccionais.

No centro do pátio, cadeiras pretas formavam filas e ficaram ocupadas durante o transcorrer da tarde. As salas dos seccionais localizavam-se no andar de cima. No fundo do prédio, atrás da grande porta, algumas celas e a cela correcional, uma pequena jaula, para onde os presos em flagrante eram levados, entrando-se pela porta lateral do pátio externo da companhia da PM ao lado, local onde estava o Monza apreendido.

A delegada, que até então trabalhava e saia pouco de sua sala, começou a aparecer perigosamente no vestíbulo da delegacia. Os seccionais começavam a chegar. Um deles, um delegado de polícia volumoso, de terno marrom, cerca de 60 anos, atravessou pesadamente o pátio da delegacia a passos largos e respiração ofegante, e subiu a escada de acesso ao corredor de sua sala, escoltado por seu filho, sua réplica 30 anos mais novo, usando roupas pretas da polícia civil e portando ostensivamente uma submetralhadora Uzi, em calibre 9mm.

Depois apareceu o seccional de nossa delegada e ouvi quando ele perguntou a ela se havia ainda material para exame prévio das substâncias ilícitas aprendidas, conforme constava na portaria de procedimentos.

A doutora saiu mais uma vez de sua sala e olhou para um dos increpados. Ela estava considerando seriamente a possibilidade de prender o cigano Ivo Santos.

Em consultas realizadas sobre o veículo, foi verificado que o mesmo possuía bloqueio judicial por óbito registrado pelo instituto nacional da previdência social-inss.

- Doutor tira a gente daqui, eu pago 20 mil reais, vai conversar com a delegada. falou Fabiano

- Não precisa, é só pagar o restante que me devem e tudo bem, não tem o que ficar conversando.

Perguntei novamente para Ivo se ele já teve passagem pela polícia ou alguma condenação anterior. Ele continuava negando e dizia que apenas tivera algumas brigas e que não devia nada. Mas quando ele falava eu percebia que sua língua travava como que numa impossibilidade natural de dizer a verdade, o que era um erro gravíssimo, mormente diante as circunstâncias.

A autoridade policial saiu de seu gabinete e dessa vez parou em frente ao investigado Ivo Santos perguntando-lhe se já havia sido preso anteriormente. Ele respondeu que não.

A lei é dura com o reincidente. Precisava de tempo para pensar. A delegada voltou para sua sala, olhei para o espaço, que estava ficando lotado, e a toda hora chegavam e saiam várias guarnições da polícia militar. Os milicianos cumprimentavam-se, tiravam fotos das armas e da "res furtiva" apreendidas e conversavam. Estavam todos lá, o jovem oficial e o soldado jovem, o bravo, o garboso, o cavalgadura, o nervoso, o bêbado, o airoso, o implacável, o pusilânime, o pobre calçado de coturno e farda que gostava de prender outro pobre sem coturno e farda, o bom pai de família, o conquistador barato e o galanteador. Tratavam-se de acordo com a escola militar a que pertenciam e também com amizade e jovialidade: “fala steve”, “oh negrão, leva essa apreensão lá prá dentro”, “vamos ter que zerar”, “ei mike”, “e a família como vai?” “as crianças estão indo bem na escola?”, “qual a novidade?”, “sem novi”

Chegou uma policial feminina motociclista da rocam, cabelos compridos anelados presos precariamente no alto da cabeça por dois elásticos da mesma cor, usando botas pretas altas e uniforme cinza militar que ficava-lhe colado ao corpo modelado por um cinturão de couro apertado na cintura forte, onde carregava algemas, projéteis, algibeiras, caneta, batom vermelho e arma de fogo automática calibre 0.40, fechado por fivela de metal na forma e cores da bandeira de São Paulo.

Despedidas, incontinências, duas fileiras em ordem unida. As pessoas sentadas no adro olhavam e assistiam à grande tela emoldurada no alto da delegacia de polícia.

- Ou você fala a verdade agora ou vai ficar preso, já tem passagem pela polícia ou não?

- Ele tem sim doutor, já foi preso e cumpriu pena. disse Fabiano

- Mas eu paguei e não devo nada. falou Ivo

Entrei no cartório da delegacia, os policias me olhavam, o gcm De Carvalho perguntou para mim se os ciganos seriam presos.

- Só com mandado ou prisão em flagrante. Escuta, Nathália, o Ivo já teve uma condenação.

- Sim, eu vi doutor, ele já cumpriu a sentença, mas o senhor sabe qual foi a condenação dele, doutor? Ele foi condenado pelo artigo 180, receptação e aquele Monza tem irregularidade, ele está com bloqueio judicial.

- Se há dúvida quanto à propriedade do veículo, ela tem que ser remetida ao juízo civil. O veículo não tem nenhum ilícito penal.

FERNANDO, O CIGANO (parte IV)

TERMO DE DECLARAÇÕES DE TESTEMUNHA

SANDRA REGIA MADALENA DOS SANTOS – presente ao plantão: Sim – RG n.º: ********-SSP/MG –

Nome do pai: Zildo dos Santos – Nome da mãe: Wanderlea Madalena – Natural de: Borda da Mata-MG – Nacionalidade: Brasileira – Sexo: Feminino – Estado civil: Convivente – Profissão: do lar – Instrução: Analfabeto – CPF:***.***.***-** - Endereço residencial: Rua Orozimbato Magalhães Costa, 327 – Centro – Ibiturana de Minas-MG

“ A esposa de Fabiano, SANDRA REGIA MADALENA DOS SANTOS também compareceu nesta unidade policial e antes que tivesse contato com o marido foi indagada pela autoridade policial e confirmou que o primo de Fabiano tinha emprestado o carro que havia comprado ontem e que o veículo deles havia quebrado em uma rodovia e que chegaram em São Paulo de carona em um caminhão.”

Assim:

“A autoridade policial, ciente do ocorrido e levando em consideração que afirmaram que o carro é de um primo chamado Santos, Fernando, e considerando que Sandra Regia não teve nenhum contato com Fabiano ou Ivo e que quando indagada confirmou a versão apresentada por eles, deliberou pelo registro dos fatos com a formalização da oitiva dos envolvidos e determinou que o veículo fosse apreendido e encaminhado ao juízo competente, bem como seu certificado de registro e licenciamento. Há que se ressaltar ainda que Fabiano declarou que é proprietário de um gm/kadett e apresentou documentos do referido veículo.”

Entreguei aos conduzidos suas células de identidade e eles imediatamente mudaram de lugar, ficando sentados nas cadeiras da repartição de frente à televisão. Fabiano deu dinheiro para Diego comprar guaraná e ficamos aguardando o fim das formalidades.

Fui levá-los ao acampamento chamado por eles de número um. Fabiano, sentado no banco de passageiro, ria, brincava, falava pela janela com as pessoas nas ruas e avenidas largas, contava passagens do ocorrido. A criança, sentada no colo da mãe no banco de trás, dormia. Diego olhava com curiosidade os travestis seminus daquela parte da avenida. Fabiano e a mulher também e brincava: “Oi, vem passear com o Magal”, “Olha que corpo...e que cabelo...são ricos...”concluiu Magal.

- De quem é o carro? perguntei.

- O Monza preto quatro portas é do Argentino, pai do Ivo, que deu pra ele de presente. disse Sandra Regia

- Qual o nome do Argentino?

- Argentino Santos.

Com efeito, era o que constava na cédula de identidade de Ivo. Fernando era um nome inventado na hora por Ivo e não existia o cigano Fernando.

- Mas por que você falou o sobrenome Santos, que é o mesmo sobrenome seu.

- Eu não lembrava de outro.

Ivo também se lamuriava e imprecava contra o responsável pela condução coercitiva; “Eles vão embora debaixo de chuva, estão de moto, aquele careca...Podia ter liberado a gente, o outro até queria, ser preso por uns talões de cheque velhos daqueles..." E ficava repetindo: “Mais um dia triste, mais um dia de sofrimento.” “A surra tá prometida pra aquele moleque e vai ser de cinta” “Vou embora pra Bahia”.

Perguntei quem ia pagar o que faltava dos honorários, mas disseram que não tinham mais dinheiro.

- O Argentino então vai ter que pagar lá no acampamento.

- Ele não paga doutor, ele não está nem aí, aquele lá só quer saber do bom e do melhor. Mais um dia de sofrimento, mais um dia triste.

Deixei-os no acampamento. Começava uma chuvarada. A moça foi até uma das barracas, entrou. Ivo também. Abri o guarda-chuva e fiquei conversando com Fabiano e despedindo-me de Raquel, que acabara de acordar. Sandra Regia voltou dizendo que Argentino não estava. Ivo falou para me darem um cheque. Perguntei se acessavam algum sítio, disseram que não. Despedi-me, sob os olhos atentos de Fabiano, ou melhor, Magal, de Sandra Regia e beijei o rosto da criança. Ele agradeceu. A mulher colocou em minhas mãos um pequeno pedaço de pano azul-petróleo. Não quis aceitar, devolvi, disse que já havia sido pago e aquilo eram economias e deveria ser gasto com a filha Raquel, mas a mulher insistiu e deixaram no banco do veículo a pequena pedra preciosa.

Fim

Marcos Pessoa
Enviado por Marcos Pessoa em 22/10/2019
Reeditado em 09/11/2019
Código do texto: T6776574
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