FERNANDO, O CIGANO

FERNANDO, O CIGANO (parte I)

Duas da tarde, preparava a agenda e a pauta da semana.

Toca o celular:

– Alô...

– É o doutor?

– Sim, quem é?

– É o Argentino... Escuta, aconteceu um caso aqui e estão

querendo levar o veículo pra a delegacia e prender duas pessoas...

O senhor pode vir até aqui agora... É na Ponte do Piqueri...

O senhor vai receber...

– Ponte do Piqueri...O senhor está ligando para mim como?

Quem indicou?

– Me deram o seu cartão. O pai do menino que estão

querendo levar está aqui, quer falar com ele... Pode vir, a

gente paga.... É na Ponte do Piqueri, na Marginal do Tietê... Eu

espero o senhor ali perto da Polícia Federal, ao lado da banca de

jornal, estou de camisa marrom... O senhor pode vir agora, já

estão sendo levados, o senhor vem de carro, a gente paga o seu

serviço...

– Está bem, eu vou. Em meia hora estarei aí, vou em um

carro branco.

De onde estava, para chegar à Marginal do Tietê o melhor

caminho era pela Marginal do rio Pinheiros. Já na Tietê, sentido

Dutra, entrei na alça de acesso da Ponte do Piqueri. Vi o prédio

da PF do lado esquerdo e a banca de jornal. Tentava localizar o

homem de camisa marrom.

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Baixo Augusta, Praça Plínio Marcos, Jogos de Tênis e outras Crônicas

Ainda sobre a alça, do lado direito, um garoto com jeito

de assustado deu sinal da minha chegada. Apareceram o homem

de tez e camisa marrons e outro garoto, ambos loiros. Parei o carro

atrapalhando o fluxo, o homem veio falar comigo.

– Dr. obrigado por ter vindo. É do outro lado, meu filho

mais novo vai com o sr. lá.

– Mas a respeito dos honorários... eu cobro diligência

agora.

– A gente acerta, doutor... Vai lá com meu filho.... É do

outro lado, naquele descampado ao lado do retorno...

Não dava para ficar ali parado e nem discutindo valores,

o garoto entrou no carro e atravessamos a ponte sobre o rio Tietê.

Havia, no retorno da ponte, no descampado, entre algumas

árvores, estacionados na grama, quatro ou cinco veículos,

dois Guardas Civis Metropolitanos – GCMs – e duas mulheres,

com uma criança loira de quatro ou cinco anos de idade.

O automóvel que estavam querendo aprender era o GM/

Monza SLE, ano 1989, cor preta, quatro portas, placas ADF-4663*-

São Paulo. Os dois rapazes, em questão de meia hora, haviam sido

conduzidos ao DP.

No Estado Democrático de Direito, qualquer pessoa pode

ser presa somente em duas circunstâncias: em Flagrante Delito

ou por Ordem Judicial, isto é, um Mandado de Prisão expedido

por Juiz competente.

Conversei com as mulheres – uma muito clara, muito

loira, olhos bem azuis, nariz alongado, vestida com saias e blusa

bem colorida, a outra era robusta, tinha cerca de vinte anos e a

menina no colo. A história contada por elas era meio confusa: no

Monza preto quatro portas foram encontrados dois talonários de

cheque de origem ilícita e o veículo seria de uma pessoa de nome

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M. A. Silvente Pessoa

Pedro ou Fernando que havia emprestado o carro para os dois

rapazes irem trabalhar.

Fui falar com os GCMs. Após os cumprimentos de

praxe, disseram que a ponte é caminho de um dos Secretários

do Município que passou por ali e viu o acampamento,

telefonando ao comando da GCM para tomar providências,

além de não ser permitido um acampamento naquele local

e também pela política adotada em tais casos, em função da

Copa de 2014.

– Até concordo, mas não parece ser caso de flagrante. Existe algum

mandado?

– Pelo que verificamos daqui, a princípio, não tem nenhum

mandado, mas eles foram conduzidos à delegacia para averiguação.

O DP é a Seccional, o senhor sabe onde é?

– Mais ou menos, bem obrigado.

Avaliei o caso e fui falar novamente com as mulheres.

A princípio, parecia ser coisa simples, aparentemente não havia

flagrante e nem mandado de prisão expedido em desfavor dos

conduzidos. A lágrima ainda estava quente e falei que iria à delegacia

ver o caso, a moça com a criança sorriu e pude ver um de

seus dentes, que era de ouro. Um dos conduzidos era seu esposo

e o outro era primo de seu marido e filho do argentino.

Fomos então à Delegacia Seccional, isto é, a garota, sua

filha, Raquel, e o menino Diego. Entretanto, no meio do caminho,

na Avenida Engenheiro Caetano Álvares, após passar pela

sede do jornal O Estado de São Paulo e em frente ao Fórum de

Santana, lembrei-me da diligência e quis voltar atrás.

– Escuta, não vou para delegacias sem antes receber a

diligência...

– Doutor, o senhor vai receber, vamos até lá.

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Baixo Augusta, Praça Plínio Marcos, Jogos de Tênis e outras Crônicas

– Não, não vou. Eu libero os dois e depois vou receber de

quem e onde... Vocês são ciganos... Vamos voltar lá no acampamento,

recebo, e aí sim eu vou.

– Doutor, doutor, doutor, o senhor vai receber, nós temos

palavra e cumprimos, lá na delegacia o senhor recebe.

Deixei-os no carro e entrei nas dependências da Delegacia

Seccional, um Distrito Policial Central de Flagrantes, ou seja,

todos os flagrantes das delegacias da região eram encaminhados

para essa Central, onde ficavam quatro delegacias especializadas

em elaboração de flagrantes e os Delegados Seccionais.

(Continua... Por logística, por cautela e como dizia Jack,

“Fernando, o Cigano” será escrito em partes)

Marcos Pessoa
Enviado por Marcos Pessoa em 20/10/2019
Reeditado em 07/11/2019
Código do texto: T6774818
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