O LEITOR (Bressoni, investigaçao 6)

Ela era destemida e por isso flertava com o desconhecido. Queria viver boas histórias, aventurar-se pela vida em busca de algum sentido e de felicidade. “Ela era intensa”. Assim amigos e familiares descreveram Klaudiane para a mídia, logo que desapareceu e enquanto o assunto era o auge dos jornais sensacionalistas. Na época alguns programas de TV regionais chegaram a apresentar a filha dela segurando um caderno de desenhos e chorando em frente as câmeras pedindo que a mamãe voltasse para que visse os desenhos que fez de ambas. Era um caderno cheio de desenhos infantis de arco-íris e mãe e filha passeando ao redor de uma casinha. A comoção na cidade durou pouco, afinal pobre desaparecido não é noticia. Algumas pessoas especulavam se ela não tinha fugido com um homem qualquer, afinal se era mãe solteira só pode ser isso diziam entre cochichos numa tentativa racista e misógina de desonrar a imagem da mulher. A policia pouco fazia. Diziam que 60% das pessoas desaparecidas reaparecem. “Mas e os 40% restantes?” - a família questionava sem obter respostas e vivendo um luto sem fim que trazia consequências físicas e psicológicas para todos eles. Mas estou adiantando-me aos fatos. O que vou narrar é o como e porque a mulher desapareceu e os motivos que a fizeram se encontrar naquela fatídica noite com o criminoso que ficou conhecido como “O Leitor”

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Quando a ultima mensagem surgiu na tela do seu celular “Vamos nos encontrar?” Klaudiane ponderou pouco, afinal a curiosidade é sempre conselheira das mulheres. Pensou nas suas obrigações de mãe. Teria que pedir a irmã para que cuidasse de sua filha por algumas horas assim que o transporte escolar deixasse Aninha na porta de casa. Era um favor, não costumava recorrer a esses artifícios, embora soubesse que sempre poderia contar com a ajuda da mãe e da irmã em relação à filha. Decidiu em poucos minutos e respondeu: “Onde?” “Na biblioteca“ o mensageiro respondeu. “OK, eu vou”. Finalmente conheceria o misterioso e encantador homem.

Decisões tomadas num impulso era uma característica dela. Como foi dito era essencialmente destemida e politicamente incorreta. Desafiava–se a correr riscos calculados pensando “vive-se a cada segundo, morrer só se morre uma vez”. Guiada pelo temperamento audacioso, por seu coração e coragem trocou no passado um emprego promissor numa empresa pelo empreendedorismo, valendo-se do talento nato na arte da confeitaria. Outro de seus desejos, á maternidade, também foi uma decisão corajosa, pois desde o inicio optou por uma reprodução independente, sem cobranças a nenhum homem para que assumisse responsabilidades que, num mundo ideal, sequer deveriam ser cobradas. Assim vivia: intensa nos seus desejos e disposta a realiza-los. Sua disposição a impulsionava a conhecer alguns homens pela internet para uma paquera ou algo mais sério; algumas vezes com sorte, noutras nem tanto. Não tinha ilusões de encontrar um príncipe encantado. Em seus recentes 32 anos já era madura o suficiente para saber que príncipes não existem, porém permitia-se beijar os sapos aleatórios alternando-se ora como princesa, ora como bruxa; até que encontrasse o sapo definitivo, como costumava dizer.

Naquele mesmo dia, algumas horas depois da troca de mensagens ela adentrava no estacionamento da biblioteca publica, vestida num vestido preto simples com bolsos frontais e sapatos baixos. Sentia-se desconfortável nesses trajes, preferia uma calça e camiseta, mas achou que a ocasião merecia uma roupa mais interessante e que a valorizasse como mulher. No rosto apenas uma base, batom e um pó compacto para dar um tom dourado a pele negra. Estava insegura, mas sempre era assim num primeiro encontro. A insegurança acompanha as mulheres, todas, independentes da silhueta que apresentam. Ajeitou com as mãos meio tremulas o vestido ao corpo numa tentativa fracassada de disfarçar seus volumes. Era bonita, disto sabia. Mesmo não tendo o físico do passado, dos tempos em que praticava esportes, sabia de seus predicados, porém o nervosismo e ansiedade eram conselheiros traiçoeiros pra sua autoestima.

O local estava mais cheio do que de costume. Diversos senhores e senhoras, na maioria idosos, caminhavam de uma lado a outro no saguão principal com suas roupas de meia estação e carregando livros ou revistas. Lembrou-se de ter visto num cartaz que aquele era dia de algum evento, uma palestra sobre um assunto qualquer. Embora parecesse um local inusitado para um primeiro encontro era nesse caso propicio e seguro, especialmente porque o paquera era um homem de 33 anos que se identificava apenas como “O Leitor” no site de relacionamentos e para manter um irresistível mistério nunca revelou a ela o seu verdadeiro nome. Por varias semanas trocaram mensagens, primeiro pelo site de relacionamentos e depois através de um aplicativo de mensagens. Era um local seguro por dois motivos: o primeiro por ser publico e o segundo, caso não houvesse química entre eles, ela poderia se distrair olhando as estantes e talvez escolher mais um livro para levar pra casa e amenizar sua solidão noturna. Preferia romances açucarados com doses de erotismo e ele dizia gostar de literatura policial, mas curiosamente já tinha lido vários dos livros que ela leu ou estava lendo até ao mesmo tempo que ela. Eram afinidades. As conversas se desenvolviam dessa forma, falavam de suas vidas, planos futuros, sexo e quase sempre livros. A verdade é que Klaudiane já estava encantada e ansiosa pelo encontro quando optou por ir conhecê-lo pessoalmente. Três meses de conversa, quando a maioria dos homens nem espera uma semana por uma tentativa de levar as mulheres logo pro motel. O “Leitor” certamente era paciente e não o tipo de homem que fica se gabando de seus bens e viagens ou que nas primeiras conversas já pede fotos seminuas. É patético o quanto algumas pessoas se sujeitam para impressionar outras, sentirem que fazem parte de algo e serem aceitas mais pelo o que possuem do que pelo que são. O Leitor certamente não era assim. Ele parecia ser um homem intimamente interessado em enxergar e não simplesmente ver. Uma diferença que o destacava entre os demais.

Olhou de um lado a outro atravessando primeiro com os olhos e depois com o corpo o aglomerado de pessoas. Estava num corredor próximo a prateleira de livros quando ouviu a voz atrás de si:

_Klaudiane?

Ela se virou e deu de cara com um rapaz bonito, vestido com uniforme de serviço. Ele parecia familiar pessoalmente e mais bonito do que nas fotos que via pela telinha do seu celular.

_Oi. Tudo bem? Estou atrasada?

_Imagina - ele falou com um sorriso. Primeiro quero me desculpar pelo uniforme. Não tive tempo de passar em casa antes. Uma reunião de ultima hora no trabalho. Vim direto pra não te deixar esperando.

_Tudo bem. Eu sei como é isso, disse reparando como o uniforme esculpia sutilmente a boa forma do rapaz. “deve viver na academia”, pensou. Nossa, como esta cheio aqui hoje, não é?

_Verdade – ele insinuou mais um sorriso. E ai, já escolheu seu próximo livro?

_ Não. Ainda estou lendo aquele que comentei com você.

_ Nossa, Klau! Você é muito mais ...

-- Gorda?

_Não! Eu ia dizer mais bonita pessoalmente.

_Ai, desculpa. Estou sendo boba. Estou nervosa e fico na defensiva. É difícil pra uma mulher como eu... Esses sites de relacionamentos costumam ser cruéis com aqueles que não têm boa forma.

_Relaxa! “A beleza das coisas existe no espirito de quem as contempla” já dizia David Hume.

_Legal. Também leio filosofia às vezes. Mas me diz logo que eu estou louca pra saber: Qual é mesmo o seu verdadeiro nome?

_Estou pensando: está mesmo muito cheio aqui e estou com fome. Não tive tempo nem de jantar. Você aceita tomar um café e um lanche comigo. Prometo que no caminho conto tudo. Meu carro está ali na esquina, o estacionamento estava cheio. Depois trago você de volta. Você veio de carro?

_Não. Optei por um taxi. Eu contei que não dirijo, lembra? _Tudo bem. Eu te acompanho.

Seguiram até a esquina mal iluminada. Os planos do homem eram sadicos e cruéis. Diante do carro a lua e as estrelas foram as testemunhas da ação. O homem retirou um garrote do bolso e iniciou um estrangulamento. Pega desprevinida e sem acreditar no que estava acontecendo a jovem tentou gritar, se desvencilhar e embora fosse uma mulher encorpada, sucumbiu a força e agilidade do rapaz sem chance de escapar. Minutos depois abriu a porta do automóvel e posicionou o corpo desacordado sobre o banco traseiro. Saiu em disparada pela rua iluminando com os faróis a escura noite e o obscuro caminho de sua maldade.

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Passaram-se três meses sem nenhuma noticia do paradeiro da mulher. Não era mais prioridade da policia. Centenas de pessoas desaparecem no Brasil diariamente, um alarmante número de oito por hora, embora não exista um cadastro nacional que unifique esses dados.

Numa tarde um grupo de adolescentes jogava bola na quadra perto de um lago. Era um parque publico. Num chute mais forte a bola avançou pelo alambrado e caiu nas aguas.

_ Ô Leandro, seu idiota! Viu o que você fez? Como é que vamos pegar a bola agora?

O responsável pelo chute não se abateu:

_Vigia aí que eu vou entrar na agua. Se o segurança do parque aparecer você me grita.

_Toma cuidado.

Jorge e os outros rapazes ficaram observando o amigo correr pra beira do lago. A bola caiu longe e Leandro precisava nadar até ela. Não era a primeira vez que uma bola caia no lago, mas geralmente os garotos esperavam que a brisa noturna a trouxesse para a margem. Leandro tirou a camiseta e mergulhou de bermudão nas aguas paradas. Puxou um galho do fundo para que a bola viesse para mais perto dele. Era arriscado a partir dali. Alguns patos e gansos nadavam tranquilamente sem se incomodarem com a agitação causada pelo rapaz. Fez o resgate da bola rápido, pois o segurança que fazia a ronda diurna no parque podia aparecer a qualquer momento. Nadou de volta. Quando o rapaz chegou na beira do lago Jorge e os amigos viram submergir das aguas o que parecia ser um corpo. Gritaram assustados e pouco tempo depois havia viaturas de policia cercando a área do parque e dispersando curiosos. O corpo que boiava era o de uma mulher. O caso já não era o de um simples desaparecimento. Era uma investigação para à delegacia de homicídios. Klaudiane finalmente foi encontrada. Ela estava morta.

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O investigador Luis Guilherme Bressoni foi designado para o caso. Embora o corpo apresentasse um deprorável estado de putrefação a identificação foi facilitada, pois a mulher tinha uma carteirinha de biblioteca plastificada num dos bolsos do vestido. Os legistas da medicina forense explicaram que o normal naquela situação era que as bactérias presentes no intestino da vitima criassem gases e que esses fariam o corpo assumir um tom azulado-esverdeado e boiar depois de um tempo, mas aparentemente o homicida tinha se precavido disso prendendo a vitima no galho quando se livrou do corpo. Concluíram a causa da morte por inanição severa. Um corpo pode ficar até cerca de 50 dias sem alimento, mas resiste pouco mais de uma semana se privado de agua, que constitui 60% do organismo. Talvez a moça tivesse ficado em cativeiro e como que numa tortura o seu algoz a tivesse privado de alimentos e por ultimo de líquidos. De fato a aparência do corpo era bem diferente das fotos que haviam circulado na mídia. A mulher estava muito magra e o tempo de morte foi cogitado em duas semanas ou talvez três, era difícil afirmar, pois a temperatura da água pode ter ajudado inicialmente na conservação do corpo.

A conclusão do caso foi rápida. Bressoni era um investigador experiente e até por isso era visto como o braço direito do delegado Otaviano Guerra. Iniciou a investigação pelo provável ultimo lugar onde a vitima foi vista com vida: a Biblioteca Municipal. Segundo o depoimento da irmã da vítima a principal possibilidade de investigação era de que a moça tivesse marcado um encontro pela internet com o assassino, porém não haviam encontrado o aparelho celular para ser rastreado e por sua experiência investigativa Bressoni sabia que possivelmente o criminoso usava um programa de bloqueio de numero IP do computador e um número de celular clonado. No depoimento Regina explicou que Klaudiane já tinha se encontrado no passado com alguns homens que conhecia através de aplicativos de conversas e que ela estava bem entusiasmada com um moço inteligente com quem conversava semanas antes do sumiço. Por ingenuidade quando a irmã revelou isso para a imprensa não imaginou o tipo de especulações infundadas que geraria. A de que a irmã desaparecida tinha fugido com um homem e abandonado a filha de 7 anos. Só os que a conheciam sabia que isso jamais aconteceria. Aninha era a vida dela. Regina jamais afirmou se no dia do desaparecimento Klaudiane tinha um desses encontros. Só sabia que no dia que a irmã precisou sair e incumbiu ela e a mãe de olharem a sua filha por algumas horas. O alvoroço causado pela mídia novamente interessada no caso já estava feito, qualquer declaração como essa era reinterpretada e esmiuçada a exaustão sem qualquer respeito pelos familiares, numa empreitada desumana para vender jornal.

Na biblioteca tudo o que Bressoni conseguiu foi a lista de livros que a moça tinha lido nos últimos meses. Nada de câmeras de monitoramento funcionando, estavam instaladas, mas não gravavam nada, pois um edital precisava sair para a concessão dos direitos de uma empresa de segurança operar o sistema. A burocracia impedindo o progresso e a investigação mais uma vez. Lugui Bressoni constatou que a jovem era uma leitora voraz, finalizava em média um livro por semana. Depois disso, apenas para eliminar hipóteses o investigador pediu a atendente que verificasse se mais alguém tinha pego os mesmos livros naquele período. Era um golpe de sorte, mas foi certeiro. Bingo! Um rapaz chamado Hélio Carneiro tinha emprestado os mesmos livros. De um total de 16 livros lidos por Klaudiane nos últimos meses de vida, ao menos 10 também tinham sido lidos por esse homem de 33 anos em dias ou na semana posterior ao empréstimo dela. Alguns dos livros eram exemplar único na biblioteca. Essa era uma informação relevante demais pra ser considerada mera coincidência.

O investigador Bressoni resolveu ir á casa do rapaz. Precisavam conversar.

Foi recebido pela mãe do rapaz, uma mulher magra e autoritária que parecia sentir total desprezo pelo filho. Depois de algumas queixas deixou que o filho e o investigador conversassem a sós. Bressoni precisou pressionar pouco para que Hélio começasse uma confissão de culpa. Ele era um rapaz inteligente, introvertido, sem qualquer equilíbrio emocional e visivelmente dependente da mãe superprotetora, mas cruel com o filho que nunca estava a altura do patamar por ela estabelecido.

O criminoso revelou que já conhecia Klaudiane do passado. Tinha estudado com ela o ensino fundamental e era apaixonado, mas por ser gordo foi preterido por ela. Bressoni ouviu também que Hélio era constante vítima de bullying nessa época. Reagindo com violência a um episódio e flagrado com uma arma na mochila foi compulsoriamente transferido para outra escola. Mudou-se de bairro e como consequência os pais se separaram, ele perdeu contato com o amor platônico da juventude e também não viu mais o pai desde então. Quando adulto, rejeitado por muitas mulheres e humilhado por conta do excesso de peso fez regimes e academia para emagrecer e um curso de leitura dinâmica, pois sabia que lendo muitos livros teria assunto para abordar qualquer mulher. O rapaz disse ainda que jamais esqueceu as humilhações pelas quais passou no inicio da adolescência e que encontrou Klaudiane no aplicativo por acaso, a reconhecendo imediatamente, mesmo ela sendo magra quando nova. Sentir-se traído por ela. Como ela pôde engordar tanto naqueles anos? Ele odiava todas as mulheres gordas. Via a elas como preguiçosas e negligentes. Pessoas sem força de vontade e entregues aos pecados da gula que sequer mereciam viver. A partir do encontro online desenvolveu uma obsessão por Kkaudiane e para conquista-la passou a ler todos os livros que ela lia. Resolveu que precisava puni-la pela dupla traição. Primeiro por não tê-lo amado quando mais nova e também por ter se tornado uma obesa repugnante. Com algumas economias alugou com documentos falsos, conseguidos facilmente pela internet, um sitio próximo ao parque. Pagou em dinheiro meses adiantado. Marcou o encontro e foi vestido com um falso uniforme de uma fabrica, para despistar. Raptou a moça, Deixando na sequência ela presa no sitio, sem agua ou comida com o intuito de que emagrecesse e ele pudesse voltar a ama-la. Assim fez até o dia em que chegou no cativeiro e percebeu que ela estava morta. Por estar próximo do parque sabia que nele não tinha vigilantes noturnos e por isso não teve dificuldades para quebrar as correntes do portão e invadir o parque durante uma madrugada para deixar o corpo no lago.

Com a confissão Bressoni constatou o quanto as agressões por bullying na infância e adolescência deixam marcas na personalidade por toda a vida. Depois de detido as analises psicológicas de Hélio diagnosticaram sinais de psicopatia além de outros transtornos psicológicos. O jovem foi encaminhado para cumprimento de pena no manicômio judiciário. Ele poderia, por ser instável representar riscos para presos comuns. Ficará em prisão perpétua. Caso encerrado.(FIM)

* Está é uma obra de ficção feita como homenagem para a amiga Klaudiane. Todos os fatos apresentados na história são exclusivamente frutos da imaginaçao do autor e não tem ligaçao com a realidade.

**Agradeço as leituras,comentários e compartilhamento de meus textos e sugiro que leiam as demais histórias do investigador Bressoni presentes aqui no Recanto. Abraço!!!