A ÚLTIMA VIAGEM


     A cidade de Nova York contava com 17 milhões de habitantes naquele ano de 1985, a "Grande Maçã" era dominada por cinco famílias da máfia italiana, os Colombo, os Genovese, os Gambino, os Bonanno e os Lucchese. Pouco havia mudado desde o entrevero Castellammarese nos anos vinte, quando Charlie "Lucky" Luciano havia matados os chefes, Salvatore Maranzano e Giuseppe "Joe The Boss" Masseria e criado a comissão, a távola redonda da máfia, na qual os chefes das facções ou "famílias" se entediam, acertavam contas, dividiam território, além de, naturalmente, autorizar assassinatos. Guerras eram comuns em meio ao crime organizado, aconteciam de vez em quando; soldados eram recrutados no velho país, como era chamada a Sicília, inimigos eram eliminados, famílias trocavam de chefes. Alguns caiam, outro ascendiam, era essa a realidade no submundo.

     Basicamente, uma família da Cosa Nostra é liderada pelo Don ou Chefe, auxiliado por um subchefe e aconselhado por um consiglieri, como uma espécie de mentor, particularmente importante em períodos de guerra, como aquele pelo qual as cinco famílias passavam. O estopim havia sido uma morte não sancionado de um Capo que encarregado da zono oeste do Bronx. A situação não era vista com bons olhos em decorrência da publicidade que vinha de carona com todas as mortes, que na maioria das vezes são públicas e brutais, chamadas de crisma. Seguidamente, no organograma de uma família mafiosa, haviam os caporegimes, que lideravam os soldados, o baixo escalão comumente utilizados em assassinatos e outras operações de força bruta.

     Os dois homens que se encontravam no Ford 1978 não eram nada próximos de um soldati, ou mesmo de um capo di tutti capi; Paulie “Olhos” Giancana e Pete “Caco de Vidro” Mancini, eram o que se chama de made men ou “homens feitos”, membros efetivos da máfia. Haviam passado pela cerimônia de iniciação, sendo Paulie o padrinho de Pete quando do juramento “queime minha carne como a imagem desse santo se eu os trair”, ritual de iniciação no qual se fazia a promessa de lealdade enquanto segurava-se uma imagem incandescente. Isto significava que tais homens eram intocáveis, ao menos quase isso. Para se matar um homem feito, um iniciado, era necessário uma razão justa e, por fim, autorização da família a qual este se achava servindo, caso contrário, seria o suficiente para uma desforra, e dependendo da importância do wiseguy dentro da organização, tal fato ou falta, poderia culminar em morte para os envolvidos.

- Quanto tempo até o maldito ferro-velho P, estou congelando minhas bolas aqui nessa banheira, merda de carro com a calefação igual a teta de uma puta – pragueja Pete, que constantemente se insurgia contra o frio, um dos poucos pontos fracos daquele que havia começado a construir seu nome executando rivais para os Irlandeses em Boston, até ser recrutado pela família Gambino, quando de sua chegada à terra da Estátua da Liberdade.

 - Mais alguns minutos, pare de ser uma velhota. Mickey nos encontrará lá e seguiremos para Coney Island, onde provavelmente encontraremos o rato. Sammy esteve falando com os federais pelo menos uma vez por semana durante os últimos quatro meses, possivelmente foi pego em algum esquema de apostas ou algo pior, e está vendendo alguém para ser inserido no programa de proteção á testemunha – diz Paulie, dando uma olhadela rápida por entre seus óculos de aro negro e grosso, motivação de seu apelido desde a adolescência.

     A alcunha de pete havia sido merecida após uma discussão em pleno Copacabana, uma das casas de espetáculo mais badaladas da cidade, quando ele havia arrancado um dos olhos de um espertinho que havia atribuído á sua mãe, um adjetivo não muito honroso. Teriam sido ambos os olhos, mas Pete deu um desconto pelo fato de o cara estar bêbado. Muito dinheiro havia mudado de mãos para o caso ser arquivado; hoje, ele havia aprendido a controlar seu temperamento, não por que havia conseguido operar uma mudança miraculosa, mas era ruim para os negócios. Afinal, o sentimento não obscurece a razão? E naquele negócio especificamente, erros não passavam impunemente.

- Com certeza proteção. Caso tivesse que cumprir pena, ele sabe que seria apagado na primeira semana no xadrez. Mickey  cresceu junto com ele não é?
- Pelo que eu sei sim. Por quê?
- Sei lá, acho que não conseguiria esfriar um amigo. Porra,  eu me senti  pensativo quando enterrei aquele garoto que engraxava meus sapatos, no ano passado. Não gostava dele nem nada, mas me parecia  um bom garoto.
- Não há nada a ser feito Petey. Você diria não para o Chefe? seria apenas o tempo de ele ordenar outra pessoa, que em vez de uma cova, cavaria duas.
- Claro que não, só estava pensando.
- Pois não pense demais. Pense a respeito de como desovaremos o corpo, o chefe disse que é para desaparecer. Não sabemos o quanto ele contou ao FBI, melhor não deixar rastros do que despertar mais atenção e pistas – Pondera Paulie, sempre o mais sensato e experiente dos dois, com suas quase sete décadas de vivência. Eles, de fato, formavam uma boa dupla. No início do século XX, com a quantidade menor de carros, era mais fácil desovar uma cara da ponte de Manhattan durante a madrugada. Atualmente, enterravam-se pobres diabos nos bosques e pântanos que circundavam a cidade, todavia, com a ampliação dos subúrbios, isso implicava um risco muito grande, pois você sempre poderia se deparar com um agente da lei tendente a declinar um gordo suborno, quando se está trafegando com um corpo no porta-malas. Mostrava-se como uma saída mais fácil esquartejar o presunto onde este fora esfriado ou enterrar fundo em um poço de cal, para acelerar os efeitos da decomposição.
- Paulie, você já viu muita coisa não é?
- O que você quer dizer? Nas ruas?
- Sim, nas ruas. Entre as famílias – Pergunta o homem mais jovem – o que você acha que vai acontecer durante essa guerra, será que existe mesmo um contrato pela cabeça do Chefão?
- Isso é balela, se existe ou não, ele não vai ficar em circulação tempo o suficiente para ver uma bala em sua direção antes de não ver nada, nunca mais.
- O que quer dizer? – indaga Mancini, franzindo o cenho, legitimamente surpreso.
- Dizem as más-línguas, que o chefe vai em cana. Benjamim é o segundo na cadeia de comando e até mesmo pode ser ele quem forneceu à justiça algumas informações-chave em troca de uma trégua. Estamos quase nos anos 90, ninguém quer derramamento de sangue, é ruim para as operações, e com as lei RICO, nunca se temeu tanto uma condenação criminal. Você ainda vai chegar lá, nada mais amedronta uma pedra de gelo do que a possibilidade de derreter na cadeia. Lembre-se disso, um homem é capaz de fazer qualquer coisa, inclusive matar algo que ele ama. É o que faria o chefe se no topo de sua paranoia conseguisse ver o óbvio.
Pete contempla as ruas quase desertas durante a madrugada naquele bairro tranquilo, nem parecia que estavam em Nova York. Dando um sorriso de esguelha, ele se virá para o amigo e diz:
- Ok, espertalhão, como estamos aqui agora sem nada para fazer em um passeio noturno, me diga uma coisa, se você é tão pica grossa, me conte uma história real, o tempo passará mais rápido.
Após, contemplar a via por alguns segundos, como que remetendo sua mente a um passado distante, Paulie finalmente responde.
- Sim, eu poderia Pete. Poderia mesmo, mas se você um dia repetir o que estou para lhe dizer, a uma viva alma, ambos correremos perigo. Eu não sei, já é um caso morto, mas...
- Jesus, tudo bem, mas me parece ser uma porra de história fodida que vem por aí. Para algum que conseguiu escapar ileso com o Chefe do fatídico encontro Apalachin, não imagino que tenha lhe restado alguma história interessante - diz Mancini, em tom Jocoso.
- Existiu um tempo em que uma homem estava se tornando um perigo aos nossos amigos. Nós havíamos ganhado muito dinheiro com ele e por conseguinte, ele também se valia da força de nosso envolvimento nos sindicatos. Era bom negócio para ambos os lados, ele liberava empréstimos pelo Fundo de Pensão dos Caminhoneiros, o Teamsters. Contudo, você sabe das histórias...
- Você não está me dizendo que...- começa Mancini, para ser interrompido com um tom de voz quase fuzilante.
- Cale a boca - Diz o homem mais velho, fitando-o por entre os óculos, o que fez com que o homem sentado ao carona estremecesse por um momento, enquanto fitava o descortinar da entrada do ferro-velho para o qual eles se dirigiam e Paulie estacionava o carro perto de uma vaga escura que dava vista para o Rio Hudson. O motorista se vira para o amigo e continua seu relato concentrado.
- Quando o chefe de Kansas City deu a ordem, não houve qualquer reunião da comissão, eles sabiam o que devia ser feito mas ninguém tinha bolas para dar o “vá em frente”,  então Don Anastácia me convocou junto com mais dois caras de cobertura. Existia receio por causa do calor que isso traria para os negócios. Mas ao final das contas, ainda que continue sendo um dos grandes malditos mistérios da América, aconteceu como um trabalho como outro qualquer. Nos encontramos no escritório de um contador, ele tentava manter um perfil discreto por causa da atenção que estava recebendo da mídia. Você sabe que ele sempre foi esquentado e canastrão, e eventualmente ele foderia com tudo e abriria a boca, tentando recuperar a influência no sindicato.

     Mancini abre a boca esboçando uma indagação, mas logo desiste voltando sua atenção completa para o relato que ouvia. Ele fixa o olhar em Paulie e pergunta-se o porquê daquela revelação repentina, e se o que ele ouvia era mesmo verdade.

- Após o encontro, supostamente para acertar um ataque a um rival na união, saímos para jantar, durante a conversa no carro, Frankie, o rapaz que viajava no banco de trás, disparou três tiros de 22 por entre o assento do carona. Ele levou a mão ao peito dizendo “Porra, estou tendo um ataque do coração”, perdendo os sentidos logo em seguida. Depois, nós escondemos o corpo no porta-malas até nos dirigirmos às docas onde o colocamos numa gaiola de tubarão. Não os acompanhei no barco, mas acredito que sei aonde eles o jogaram. Então meu caro, até os dias de hoje, Jimmy Hoffa* repousa no fundo do Oceano, bem aqui na costa de Nova York. Esqueça os rumores de que ele foi visto pela última vez em Michigan.

- Cara...- balbucia o homem conhecido como Caco de vidro, enquanto se vira para Paulie, indagando num contemplar concentrado – Mas por que você está me contando uma coisa dessas logo agora? Essa informação pode lhe colocar em perigo.

     Nesse momento uma sombra perpassa o olhar do experiente mafioso, pela primeira vez ele não consegue deixar de revelar seus pensamentos, como um jogador de pôquer profissional que se trai num átimo de emoção.
- Oh não...- diz o caco de vidro, ao se dar conta de seu destino e antes da bala 9mm disparada por um homem postado na parte de fora do carro, lhe trespassar o bulbo cerebral e se alojar no painel do carro em razão do desvio de trajetória do projétil. O corpo - quase que em justiça poética – agora sem um dos olhos, despenca vagarosamente pelo banco do carro, observado por um Paulie com o rosto manchado por uma lágrima esguia e o salpicos de sangue, que são removidos agilmente pelo lenço branco retirado do bolso do paletó cinza.

- Eu lhe disse garoto, sempre é o seu melhor amigo que faz o serviço, e não é uma ordem que pode ser negada. Se devia ser alguém, ao menos que tenha sido pelas minhas mãos. – Entoa o homem em voz baixa enquanto o executor caminha até seu lado do automóvel.
- Cara, o caco de vidro foi apagado. É verdade que ele estava cantando para os federais?
- Nós nunca saberemos ao certo Mickey. Se soubéssemos eu estaria morto também. Ele estava transando com uma secretária do maldito FBI. Nós não podíamos correr o risco. Droga, Pete – completa enquanto sai do automóvel e volta-se para o outro homem - aonde está o carro?
- Escondido perto das mangueiras
- Vá pegá-lo, essa será uma comunhão, o corpo jamais aparecerá. Os rapazes chegarão a qualquer momento, eles se encarregarão de destruírem o carro e o corpo na máquina, por isso escolhi este local. Depois descarregarão no rio.
- Ok Paulie – Diz o executor enquanto deixa o homem sozinho e se dirige ao oldsmobile estrategicamente estacionado na parte de trás do ferro-velho, próximo ao rio. Após alguns minutos, Mickey retorna com o carro e Pete lhe diz.
- Deixe a arma, Mickey, eles se encarregarão disso também, vamos até o Ginno`s comer um ravióli, estou morrendo de fome, o que acha?
- Claro, estou nessa.

     E era assim tão fácil para um cara ser morto, as contribuições de Pete para a organização era consideráveis, e foram inúmeros os jantares e reuniões na casa do Don, regados a vinho e boa companhia. No entanto, quando um membro da família os colocava em perigo, a resposta era rápida e brutal, bem ao estilo da clássica frase do filme "O Poderoso Chefão, “não era pessoal, apenas negócios”. O voto de silêncio da máfia, a Omertá, não deveria ser quebrado. Essa era a única regra inviolável em meio a um cenário de violação às regras. Sim, era assim tão fácil para um cara ser morto...

 
















*Líder Sindical Norte-Americano desaparecido em julho de 1975, supostamente assassinado pela Máfia.
Marcus Hemerly
Enviado por Marcus Hemerly em 11/04/2019
Código do texto: T6620833
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