Jingle Bells Envenenado - Parte 1
— Tripulação completa! – disse o dono do barco e quem me convidou para o cruzeiro natalino. Aceitei prontamente o convite de Donat, para passar o feriadão de Natal em alto-mar.
O barco Netuno já partia, quando Ross e Cora chegaram, surpresos ao me ver. Ela não parecia à vontade com minha presença.
A tripulação era formada por Ross e Cora, Donat e a namorada Belisa, uma moça chamada Lucy Merril; e eu, Barney Gallax.
Anoiteceu e já estávamos longe da terra firme. Jingle Bells tocava alta e os convidados andavam alegremente pelo convés.
Ross veio até mim, me servindo uísque.
— Vou no seu consultório na sexta, Barney – disse-me — Seus remédios para gastrite, são fracos…
— Receitarei algo mais forte! – bebi um gole de uísque — Cora não falou comigo… Não falou que eu viria?
— Brigamos muito e ela não queria vir… Me inferniza para vender a casa e comprar um apartamento! Mas é impossível! Tenho meu laboratório fotográfico no porão, onde revelo os negativos, como um artesão… Só eu entro lá, e tenho tudo que preciso para meu trabalho.
— Aquela moça, Lucy…– prosseguiu Ross — É assessora de Conway, o político que tentou me subornar, para vender os negativos com as provas, no processo de corrupção. Sinto medo de acontecer algo comigo… Por isso, fiz recentemente um seguro de vida, para Cora. Não quero desampará-la!
Cora e Belisa enfeitavam a árvore de Natal, com guirlandas, luzes pisca-pisca e bolinhas coloridas.
Donat chegou nesse momento.
— Logo a ceia será servida! – disse —Tudo escolhido com muito bom gosto. Há presentes também, apesar de o Papai Noel não vir pela chaminé.
Um trovão ecoou no horizonte.
Caminhei até a proa, onde ondas verdes e espumantes, beijavam o barco.
Choveria em pouco tempo, estragando nosso passeio. Isso aumentaria meus enjoos e medo de navegar.
Donat escondeu algo, no bolso do casaco, assim que me viu.
— Querido! Desculpe, não ter falado com você… - falou Cora, enquanto eu olhava para Donat.
— Ainda teremos muito tempo!
Donat colocou presentes, vestido de Papai Noel, sob a árvore de Natal.
Ross fotografava a celebração. Havia acabado de tomar meu remédio para enjoos, quando me procurou.
— Vem chuva pela frente – ele tirou um frasco do bolso, com cápsulas de gelatina, metade amarela e vermelha — Espero não ser uma tempestade. Ah! Essa maldita gastrite – e ingeriu duas cápsulas.
— Apenas uma antes das refeições! — relembrei.
A chuva começou quase meia-noite.
Meu estômago estava embrulhado. Odiava passeios de barco.
— Feliz Natal! – bradou Donat, batendo um sino.
Nos abraçamos e desejamos votos de realizações e felicidades.
Mas qual a possibilidade, de todos aqueles desejos serem sinceros?
Jingle Bells ecoava no barco, e Belisa cantava com sua voz desafinada.
Cora e Ross se beijaram. Pareciam ter se entendido.
O cardápio era delicioso. Todos elogiaram o pernil assado com mel e maçãs, o peru com tâmaras e o arroz com uva-passa (que deixei de lado no prato).
Belisa se distanciou e voltou minutos depois, trazendo o bolo de nozes. Lucy abria uma garrafa de vinho com o saca-rolhas, para servir a tripulação.
Ross continuava preocupado. Mas alegrou-se quando comeu o bolo. Belisa sorriu ao vê-lo mastigar e empurrou a cobertura do bolo para o lado do prato.
Lucy devolveu o seu prato à bandeja. Desculpou-se, dizendo que tinha alergia a nozes. Donat ia para segunda fatia, e Cora parecia não gostar do que comia. Quando comecei a comer, os gemidos de Ross me alarmaram.
— Não estou me sentindo bem! – falou baixinho – Meu coração disparou!
— Ele também tem alergia a nozes? – perguntou Belisa.
— De algo para beber, pode estar engasgado! – gritou Donat.
Lucy pegou a garrafa de vinho.
— Uísque, por favor! – gemeu Ross, e Donat entregou seu próprio copo.
Ross bebeu e ficou em pé. Fazia força para respirar, cambaleando, como se tivesse vertigens.
Lucy trazia outro copo, mas ele não teve tempo de beber. Ross perdeu o equilíbrio, caindo sobre árvore de Natal. Convulsionava rolando sobre ela, cortando-se com os enfeites de vidro, no meio da sala.
— Ele está tendo um ataque! – gritou Cora.
— Acudam! – bradou Donat.
— Barney, faça algo! Você é medico! – falou Belisa.
Recuperado do meu espanto, saltei sobre ele, enrolado nos galhos da árvore e nos fios das luzes pisca-pisca. Em seus espasmos incontroláveis, expelia uma baba pela boca, arqueando o corpo para os lados. Tentei segurá-lo, mas foi inútil. Ross faleceu diante dos nossos olhos.
A tripulação olhava horrorizada, o cadáver enrolado na árvore natalina, como um presente macabro. Uma cena que me enojava.
Donat foi tirando lentamente sua barba branca postiça e a roupa de Papai Noel. Lucy Merril estava nervosa, tremia sem controle. Belisa consolava Cora, desesperada no sofá.
Meia hora depois, eu estava sentado na popa do barco. Netuno já retornava para terra firme. A chuva gelada batia no meu corpo. Ouvia o som do vento e das ondas fortes que o empurravam.
Não há nada mais inquietante, que uma ideia insignificante, que vai se agigantando conforme pensamos nela.
Ross era saudável, sofria apenas de uma gastrite. Um ataque cardíaco não era aceitável.
Entrei no convés e todos estavam em choque. Donat ajudou a retirar o corpo do meio da árvore destroçada. Os farelos dos enfeites, lhe deixaram cortes nos braços e rosto. O levamos para um dos quartos e o cobrimos com um lençol. Procedi um rápido exame. Segurei suas mãos e olhei atentamente os cortes. O sangue era vermelho vivo. Havia baba no canto da boca, e um leve odor de amêndoas amargas, quase imperceptível. A pele levemente azulada.
— Não permito que seja feita uma necrópsia! – disse Cora, no quarto, logo depois – Ele não será retalhado, como um porco num abatedouro! Entenda, ele não estava bem há dias, reclamava de dores no peito… Discutimos ontem, e ele passou mal! – ela abraçou-se ao corpo do morto.
— Cora, eu era o médico dele…
— Médicos também se enganam! Brigamos ontem, ele passou mal… Se eu imaginasse que isso aconteceria, parecia intuição, não querer vir ao cruzeiro…