Vigilantes

A PROFESSORA PASSA MAIS dois slides da aula de Arquitetura da Informação, mas não consigo me concentrar. Há sangue na minha boca e tenho que engolir. Minha cara está inchada, um olho está roxo e isso chama atenção chama atenção das minhas colegas ao lado. O pior nem dá para ver. Estou com uma ferida enorme nas costas, ela tem o formato de garras. Acho que, quando cicatrizar, vou exibir por aí, dizer que saí na mão com um urso.

Mas claro que não foi isso. Aliás, a história é mais bizarra.

Não sei quanto tempo aguentarei engolir o sangue que sai da ferida com pontos dentro da bochecha. Não sei quanto tempo aguentarei até vomitar tudo na sala de aula. Caso aconteça, não sentirei vergonha.

Afinal, sou um herói.

Falando nisso, amanhã tem mais "vigilância".

Durante a aula, a professora percebe que meus lábios estão avermelhados e, quando se aproxima, percebe o olho roxo.

- Que diabos houve com seu rosto?

Quando você se envolve em atividades criminosas como lutar e matar um maníaco que atacava pessoas com garras (ele achava que era Wolverine), - e se fode bastante no processo - melhor ficar quieto.

Digo a ela que tomei uma queda.

Ela não botou fé. No fim da aula, questionou mais.

- Onde você anda se metendo? Toda semana você aparece com uma parte do corpo machucada.

Minto. Digo que minha namorada do Macapá veio até Salvador, me espancou e voltou.

Ela não acreditou, mas e daí?

Ando pelos corredores da universidade e nas telas informativas há a notícia de que o "maníaco das garras" foi encontrado morto, boiando em um rio.

Dou aquele sorriso de satisfação quando vejo gente se sentir aliviada. O curioso é que a satisfação está em outras direções. Aquele rapaz, por exemplo, todo desastrado e que as minas da universidade riem dele. Aqui ele é piada, mas ninguém sabe que há duas noites ele cortou a garganta de um estuprador, depois de tê-lo espancado.

Você não diz nada porque o que acontece na noite fica na noite.

Veja também o garoto do curso de enfermagem na escada. Olhando para ele, você diz "almofadinha". Mas não imagina que ele esmagou a cabeça de um assaltante com um bloco de cimento.

Sempre quando os vejo, me dá vontade de agradecê-los por ajudar a limpar as ruas, mas não posso.

O pacto que fizemos foi: o que acontece na noite, fica na noite. Inclusive nossa personalidade. Nos unimos, colocamos máscaras e saímos para a caça. A partir daquele momento somos outros. Por isso, se eu elogiar o cara da enfermagem ou o Mr. Bean tupiniquim, não estarei falando com os mesmos homens.

Durante o dia, sou um estudante de publicidade, ativista de direitos humanos, pacifista. A noite, sou um vigilante sedento por justiça. Hipocrisia? Claro, mas e daí?

Tudo começou com eu e Cláudio. Ele me levou até uma casa, onde queimou três traficantes vivos. Fiquei chocado e vomitei. Ele disse: - Problemas violentos exigem soluções violentas.

Fiquei traumatizado e dias sem sair de casa. Mas Cláudio era bom de conversa e logo me convenceu a assistir outras "ações vigilantes" suas.

Ele esfaqueou um pedófilo 223 vezes.

De novo, fiquei chocado. Porém, dessa vez algo me impressionou. Cláudio demonstrou profundos conhecimentos em táticas militares de combate. Foi assim que ele pegou o abusador de crianças.

Ele parecia um franco-atirador profissional. Tinha até uma carabina. Não sei como ele conseguiu. De qualquer maneira, ele poderia ter explodido a cabeça do sujeito de uma distância de 35 m - que era a distância entre um prédio e outro. Em vez disso, atirou nas duas pernas. O pedófilo tentou ligar para a emergência, sem sucesso, pois Cláudio cortou a linha telefônica. Os gritos de socorro não poderia ser ouvidos porque ele era o único inquilino naquele chiqueiro que chamam de "apartamento".

Cláudio só precisou de uma faca para terminar o serviço. No começo das facadas, fiquei do lado de fora. Entrei depois e aguentei ver até o fim.

Cláudio também era bom em açougue. Desmembrava corpos como ninguém.

Também era bom com potentes explosivos caseiros.

Ele pegou uma medida de vapor de ácido nítrico concentrado a 98% e adicionou mais três medidas de ácido sulfúrico. Tudo isso em uma banheira de gelo. Depois ele adicionou glicerina com um conta-gotas. O resultado de mistura foi nitroglicerina.

Por fim, ele misturou o nitro com serragem, e assim conseguiu explosivo plástico.

Depois disso, bastou encher prédio em construção com esse tipo de explosivo. Não se trata de explosão aleatória. Uma dupla de assaltantes aterroriza estudantes da faculdade onde estudo, roubando-os. Em seguida usa o prédio em construção como rota de fuga. Só que dessa vez, Cláudio os esperava.

Bastou um aperto de botão para a explosão jogar toneladas de concreto sobre os criminosos. E dar prejuízo de milhões para uma empresa de telefonia.

Cláudio começou a me ensinar a ser um vigilante.

Em uma noite, ele me levou ao alto de um prédio, onde começamos a assassinar trombadinhas com flechadas. No começo, senti uma grande culpa. Fiquei sem comer, dormir, por ter acabado com três vidas. Mas depois aceitei. Resolvi ajudar Cláudio em sua cruzada vigilante. É da minha natureza e, como ele diz, a moral só faz reprimir meus instintos.

Antes, eu andava pela cidade me borrando de medo.

Medo de ser assaltado na rua ou ônibus.

Medo de levar tiro.

Medo de ser extorquido pelo tráfico.

Depois de fundar a escola de vigilantes com Cláudio, isso acabou. Se estou no ônibus, eu agora fico torcendo para que entre algum bandido e eu possa acabar com ele.

Eu ou outro aluno.

A escola de vigilantes cresceu em pouco tempo.

Já havia 25 pessoas aprendendo luta pessoal, tática de guerra, tiro com carabina e a criar explosivos caseiros com Cláudio.

Seis meses depois e já havia 104 pessoas.

256 criminosos foram mortos pelos vigilantes, mas isso não reduziu a taxa de criminalidade.

Cláudio sabia desta informação e afirmou que o importante é que nossa parte estava sendo feita. Ele incentivava os alunos a descobrirem suas frustrações do dia a dia nos bandidos. O resultado era assassinatos brutais.

Mas nem tudo era bem sucedido.

Nesses seis meses de vigilância, perdemos 43 companheiros, tanto para criminosos, quanto para a própria polícia que ficou no nosso encalce.

Na caça a um pedófilo, por exemplo, eu quase morri. Tentei estrangulá-lo com um fio de náilon, mas o cara era imenso e conseguiu resistir. Depois ele me quebrou e ficou batendo minha cabeça no chão até arrebentar os dentes do lado direito do meu rosto e meu olho começar a sangrar.

Certeza que ele ia me matar, mas outro aluno interviu, dando-lhe um tiro na cabeça.

Na volta ao espaço onde a escola fica - no subterrâneo da casa de Cláudio - os alunos prestam assistência entre si.

Um colega, que estuda na mesma universidade que eu, enfaixa meu rosto.

Cláudio sobe em uma das mesas e começa a discursar.

- Já escutaram a música "A Cidade é Nossa", de Facção Central? Ela diz que a bandidagem tomou as ruas. Isso é fato. A rua é dos bandidos, mas vamos recuperar. Só que não iremos conseguir sozinhos. Precisamos de mais alunos. Antes eu disse para não contar a ninguém sobre a escola de vigilantes, mas agora quero que vocês consigam o máximo de alunos que puderem. Tenham em mente que a mensagem da escola deve ser para aqueles que sentem-se sem segurança e que não acreditam mais nas autoridades.

Depois desse recado de Cláudio, o número de alunos triplicou. Da faculdade onde estudo, entrou bastante gente a ponto de eu sempre topar com um aluno no elevador, corredor e até sala de aula.

Na segunda-feira, vou à aula de Arquitetura da Informação. A professora entra na sala, olha para mim e vê meu rosto inchado. Dessa vez ela não diz nada e sorri, vejo que a bochecha dela está inchada e dois dentes estão quebrados.