Coquetel Molotov

Meus olhos pesavam tanto entre a neblina congelante, respirava a exaustão de um soldado surrado pelo fatídico destino de estar à beirada do inferno, cruzando armas com um inimigo pouco diferente das hostes demoníacas de Lúcifer. Acanhado em trincheiras parcialmente soterradas pela neve finlandesa, não diferia do fantasma errante que minha vó narrara a mim nas conversas informais da infância. O fato engraçado de estar preso à floresta e enfurnado nos buracos que escavamos na véspera, remoía-me o estômago com dor tão forte quanto as dores das feridas de guerra. A mesma neve que caía sobre o terreno que entregávamos nossas vidas para proteger contra a invasão soviética era a neve que matava-nos de modos distintos. Enfim..., pensar no sentido da batalha enquanto há estilhaços de balas e tiros rasgando o ambiente ao redor não traz efeito positivo algum; mas isso dificilmente escapava de dançar em minha mente ao descansar o corpo para um cigarro ou uma refeição – Se é que me lembro a última que tive.

No frio - ironicamente infernal – sentia que o sangue havia congelado dentro das veias. O praça que dividia a trincheira comigo havia descoberto uma nova forma de afrontar os comunistas miseráveis que se amontoavam aos milhares na cidade além da floresta. Os vermelhos pareciam se multiplicar naquele cenário caótico e sangrento, morriam centenas e centenas e isso não trazia efeito algum a eles. Após algum tempo você se acostuma, sua única real preocupação passa a ser estar vivo, não morrer, não ser esquecido debaixo da neve espessa. Meu compatriota lia incessantemente a pequena bíblia que trouxera consigo, na verdade, devorava-a com os olhos, ainda com mais ferocidade agora que estávamos sem munição e incapazes de revidar qualquer ofensiva adversária. Não importava, pelo menos tinha um escape, o fio de esperança que o impedia de endoidar – coisa que sucederia comigo se este homem não houvesse lançado mão de sua bíblia por certo período e entregado ao comandante de nosso pelotão uma nova tática de represália. Ali na floresta não receberíamos apoio do comando central, nossa pátria gozava da disposição de material bélico quase mínimo; comparado à União Soviética éramos um gatinho trocando arranhões com um leão.

O que tínhamos eram garrafas de vodca, garrafas vazias de Vodca e caixas com garrafas de vodca. Markus, o cristão, havia feito de minha última alegria a matéria-prima para a tática redentora. A vodca serviria essencialmente como um mecanismo para atrasar os soviéticos em sua ofensiva, a convicção de meu superior era confrontá-los ao máximo por meio da ideia de Markus até a chegada de alternativas potencialmente melhores.

Lutamos por uma semana em Vyborg, defendendo a cidade de tropas soviéticas enviadas desde Leningrado. A intenção de Stalin era tomar toda a região da Carélia e anexá-la ao império soviético. Nem por fortuna incontável nós, finlandeses, iríamos dobrar nosso joelho diante dos genocidas comunistas, para que fizessem com nosso povo o que fizeram com o seu. Com esta máxima no coração guerreamos nas imediações da cidade e derrubamos tropas e mais tropas inimigas, infelizmente não foi o suficiente para fazê-los desistir porque continuavam a nos atacar ininterruptamente. Ao fim da primeira semana nossa munição acabou por completo, junto à escassez de recursos veio ao nosso encontro uma frota gigantesca de soldados guarnecidos por tanques KV-1, obrigando-nos a abandonar o posto em Vyborg para buscar refúgio nos bosques a Oeste.

Ao fim do segundo dia nas trincheiras o retorno de um batedor enviado a Vyborg trouxe-nos a confirmação do desfecho esperado, o gosto amargo da obrigação de defrontar comunistas anulava com imediatismo único o efeito do frio congelante naqueles bosques. A morte do entardecer enalteceu em meus ouvidos certo cântico apático que apartava de dentro qualquer calor restante em meu corpo; música esta que rodopiava entre as copas altas e singrava junto aos arbustos congelados, ecoava ao longe, dava meia-volta e tomava-me de novo. Enfim, melhor seria dizer o quão indescritível se tornou o sentimento presente no pelotão, homens predestinados a lutarem contra a fome, o frio e a precariedade militar, conforme divisavam o horizonte aguardando brotar da bruma as silhuetas demoníacas de inimigos incansáveis.

Agrupamos nosso pelotão na trincheira principal situada na área central do bosque, as caixas com garrafas de vodca empilhavam-se num canto afastado de onde ouvíamos as instruções finais do comandante, forçando a voz com o resto de vigor em seu sangue. - Se a União Soviética deslocava sua força com o intento de espoliar nossa pátria, que recebesse sob sua soberba comunista o fogo terrivelmente persistente de nossas frias mãos.

Fomos divididos em grupos de acordo com as instruções do comandante. Markus o auxiliara na designação das funções aos praças e deixou bem claro em um breve discurso a movimentação estratégica que teríamos de exercer. As garrafas de vodca haviam sido desencaixotadas, distribuídas em quantidades equivalentes e posicionadas nas trincheiras ao longo da floresta. As trincheiras ladeavam a via principal que cortava a Floresta desde Vyborg até o Oeste da Finlândia. Àquela altura a noite regava o firmamento, a última movimentação fora ajuntar pedaços de tecido – quaisquer que fossem -, panos velhos, retalhos de vestimenta secundária... Uma por uma, abríamos as garrafas e mergulhávamos os pedaços dentro da bebida, permitindo metade destes pender sempre para o lado de fora.

O ressoar fúnebre da noite calou sua fantasmagórica presença diante do primeiro par de lagartas que adentraram as proximidades de nossa posição: metal sobre metal, toneladas de aço e ferro rangendo através da névoa densa que ia adiante de todos.  KV-1, tanques modernos e de blindagem densa, um sozinho fazia debandar meia centena de soldados municiados.  Éramos trinta e dois soldados sem munição. Entre nossas fileiras desabrocharam das profundezas da noite tanques o suficiente para afugentar meio milhar de soldados.

Eis que de nossas frias mãos nasceu certo fogo persistente, fogo esse que queimou com persistência debaixo da soberba comunista até consumi-la inteiramente. Em meio ao ranger dos tanques ouviu-se certo finlandês bradar um último brado vigoroso: acendemos nossos panos embriagados em vodca e lançamos nossas garrafas flamejantes de encontro à morte, o tumulto imediato estendeu-se sem conhecer fim e, desde a bruma cerrada, viu-se a silhueta de tanques em chamas e labaredas esfomeadas consumindo sua guarnição armada.

Se a União Soviética deslocava sua força com o intento de espoliar nossa pátria, que recebesse sob sua soberba comunista o fogo terrivelmente persistente de nossos Coquetéis Molotov.

Filipe de Campos
Enviado por Filipe de Campos em 16/02/2019
Código do texto: T6576603
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