O ESCRITOR
O ESCRITOR
CAPÍTULO I
O DESAPARECIMENTO.
Mário Meira trabalhara sua vida toda como bancário. Desde tenra idade, já estava no banco como “Office-boy” estafeta interno. Com muito esforço e dedicação galgara diversos postos de trabalho até chegar a gerente de unidade. Aos cinquenta e cinco anos, contava com trinta e cinco anos de trabalho, tempo suficiente para requerer aposentadoria, o que fez, sem vacilar, pois esperava esse momento para dedicar-se tão só e exclusivamente à carreira literária. Ele costumava escrever contos e romances, mais contos do que romances. Seus contos, até o momento, não haviam logrado êxito, nenhuma editora tinha se interessado na sua edição. Mas, como a esperança é a última que morre, ele continuava a escrever e escrever. Gostava de estar sozinho, por isso, passava os dias em um sítio que ficava a poucos quilômetros de sua residência. Ele sempre ia cedo, quando o dia clareava, e retornava no cair da noite.
Naquele dia ele retornou às sete horas da noite, como fazia sempre. Sua esposa, Eneida Flores Meira, notou alguma diferença em seu comportamento, parecia preocupado, e ela lhe falou:
- Que houve? Alguma coisa errada no sítio?
- Não, estou apenas cansado, tenho trabalhado muito, além de escrever, também estou consertando as cercas.
Ele mudara seu comportamento, a esposa sabia que havia algo de errado, mas quando lhe perguntava, ele sempre dava a mesma resposta: “estou cansado tenho trabalhado muito”. E permanecia com o olhar fixo em algum ponto, enquanto seus pensamentos fluíam, na concepção de novas etapas do livro que estava escrevendo.
A mudança de comportamento já durara mais de um mês, até que certo dia:
- Alô, filho, é a mãe. Estou preocupada, o pai não retornou ainda do sítio. Ele sempre chega ao cair da noite, já passam das vinte horas e ele ainda não veio.
- A senhora ligou para o celular dele?
- Sim, chamou até desligar.
- A senhora quer que eu a leve lá?
- É, eu acho que quero, sim.
A curta viagem, dado ao estado emocional, parecia não terminar nunca, até que eles chegaram ao sítio. Não havia sequer uma luz acesa, tudo estava escuro. O carro estava no estacionamento, sob o alpendre, a porta da casa estava aberta. Eles estacionaram o carro, desceram e se dirigiram a casa. Acenderam todas as luzes, inclusive as do pátio. Examinaram a casa e constataram que as roupas de ir e vir, estavam sobre uma poltrona, os tênis e as meias estavam ao lado da poltrona. Procuraram em todos os cômodos e nada, nem sinal dele.
Foram até o carro, que estava aberto, a chave estava na ignição, a carteira e todos os documentos estavam no porta-luvas.
Seu filho, Mário Meira Júnior, saiu a campo, chamando por ele, gritou:
- Pai, onde tu estás? – responde, por favor.
Mas os seus gritos não foram respondidos.
Eles permaneceram no sítio por mais de duas horas, esperando que ele aparecesse. Já passava das vinte e duas horas, quando eles deixaram o sítio, dispostos a comunicar o desaparecimento à polícia.
Já passavam das vinte e três horas, quando eles chegaram à delegacia de polícia. O polícial de plantão lavrou o BO (Boletim de Ocorrência), e informou que somente começariam a procura após vinte e quatro horas do desaparecimento, que, se ele retornasse, deveriam comunicar, suspendendo o BO.
Mãe e filho não dormiram a noite toda, ligavam para o celular de hora em hora, e nada. O dia ainda não tinha raiado e eles já estavam partindo para o sítio. No sítio, Júnior procurou pelas matas nas cercanias e nada encontrou, nem sinal de seu pai. Fizeram um minucioso levantamento de objetos e roupas, chegaram à conclusão de que todas as roupas e objetos estavam no sítio, nada faltava.
Passadas mais de vinte e quatro horas, a polícia fez o levantamento técnico do desaparecimento. E, como de costume interrogou os familiares para saber se tinha havido algum desentendimento anterior ao desaparecimento. Nada, o casal vivia bem, o filho bem comportado não causava qualquer preocupação ao casal.
Inspetor Silveira:
O caso foi parar nas mãos do inspetor Silvio Silveira, homem com grande experiência em investigações, com mais de vinte anos de trabalho, em diversas delegacias do estado. Silveirinha, como era chamado pelos amigos, era um aficionado pela sua profissão, jamais negligenciava ou procrastinava o seu trabalho. Homem alto, magro, usava cabelos compridos, sempre amarrados em forma de cola, um grande bigode, mais branco do que preto, habitualmente, a barba estava por fazer. Sua fala era calma e em tom baixo, apenas o suficiente para os ouvintes entendê-lo. Por isso ele era alcunhado de Fala Mansa. Usava roupas nada convencionais, calça de brim, suspensa por suspensórios listrados, camisa branca, com mangas compridas. Tinha como hábito colocar ambas as mãos segurando os suspensórios, com os polegares distendendo-os para a frente.
Naquele momento, o inspetor examinava o processo de investigação. Nele apenas havia o Boletim de Ocorrência, as declarações dos familiares e todos os dados pregressos do desaparecido. Ao terminar o exame, cofiou a barba, retirou os óculos, olhou-o contra a luz, puxou um lenço, limpou-os, enquanto pensava: “Esse homem pode estar morto no sítio, em algum poço, ou num mato. Ninguém desaparece dessa forma.”
Ele pegou o telefone e ligou.
- Alô! É o inspetor Silveira! Posso falar com o comandante?
- Comandante Gonçalves, as suas ordens.
- Inspetor Silveira, como vai?
- Bem e você?
- Comandante! Estou com um caso de desaparecimento em um sítio, e, pelo modo como ocorreu, eu posso inferir que o homem pode estar morto no sítio. Por isso, eu queria ver se o senhor pode me fornecer uns vinte homens, para fazer uma busca palmo a palmo no sítio.
- Perfeitamente, quando quer o efetivo.
- Pode ser para amanhã, às oito horas?
- Vou programar o ônibus para levar o pessoal.
- Muito obrigado, comandante. Fico lhe devendo essa.
No dia seguinte, às oito horas, o inspetor Silveira, já estava entrando no batalhão da Brigada Militar. Os vinte soldados estavam em forma e, naquele momento, sendo comandados pelo sargento Ramires.
- Bom-dia, sargento.
- Bom-dia, inspetor.
- Este é o pessoal que vai me ajudar nas buscas?
- Sim, este é o grupo que está a sua disposição.
O inspetor, dirigindo-se ao grupo, diz:
- Senhores! Houve um desaparecimento num sítio que tem dez hectares. Nós vamos fazer uma busca de forma tal que não fique um único metro quadrado sem que tenhamos colocado a vista. Eu preciso eliminar a hipótese de que o homem tenha morrido no sítio, e que o corpo esteja se decompondo.
A busca iniciou ao redor da casa, seguindo-se o pátio, as hortas, galpões e logo as cercanias da casa, e a milícia nada encontrou. Passaram a vasculhar o resto do sítio. Quando chegaram a uma cerca que estava sendo reformada, um dos militares parou e gritou aos demais:
- Venham! Vejam o que achei!
Os outros correram ao seu encalço para ver o achado. Um par de botas de PVC branca, um par de meias, calça, cueca, uma camiseta baixeira , uma camisa e uma jaqueta de nylon.
- Chamem o inspetor! - disse o sargento.
Logo o inspetor Silveira foi chamado e compareceu.
- Veja, inspetor, o que nós achamos. Parece que o homem se despiu e voou.
- É o que parece, mas nós, investigadores, temos que comprovar os fatos. Não mexam em nada, vou chamar o fotógrafo para registrar o achado.
Pegou o celular e ligou:
- Alô! Antônio Carlos? Silveirinha. Eu quero que tu venhas ao sítio do Senhor Mário Meira, fica no município de São José do Sul, logo no início, passando pelo posto de gasolina, à direita de quem vai para Salvador do Sul, quilômetro 2 da RS 140. Saindo da estrada, a menos de um quilômetro, estarás no sítio. Estou te esperando.
Tudo foi fotografado nos mínimos detalhes.
A busca durou toda a manhã. Já passavam das doze horas, quando deram por concluída, sem qualquer sinal do desaparecido, salvo o achado das roupas que, supostamente, estaria usando no momento do desaparecimento.
Eram dezesseis horas quando o inspetor chegou na residência da família Meira.
- Boa-tarde, dona! Eu sou o inspetor Silveira, Sílvio Silveira, estou encarregado da investigação do desaparecimento de seu Mário Meira. Eu sei que a senhora e o seu filho já prestaram todas as informações à polícia. Eu vim, entre outras coisas, devolver as chaves do sítio. Posso tranquilizá-los de que não os interrogarei. Apenas quero conversar com vocês.
- Esteja à vontade, inspetor, nós estaremos as suas ordens. Este é o meu filho, Júnior. Mas, sente-se, inspetor.
- Tenho muito prazer em conhecer vocês. Eu quero conhecer com maiores detalhes os usos e costumes do Senhor Mário.
- Ele andava estranho nos últimos dias, algo estava lhe preocupando, andava quieto, meditabundo, costumava levantar de madrugada, por ter perdido o sono. Quando eu perguntava o que estava havendo, ele respondia que só estava cansado.
- Aqui temos as fotos que foram tiradas do local onde encontramos as roupas que, supostamente, estaria usando no dia do desaparecimento, eu queria que vocês as identificassem.
Os familiares olharam as fotos com detida atenção e ao final foram unânimes em afirmar que se tratava de roupas do desaparecido.
O inspetor perguntou:
- Mas, o que ele fazia?
- Trabalhava no sítio, trabalho na terra, plantando hortaliças e escrevendo.
- Escrevendo, o quê?
- Ele era escritor de contos e romances, não conseguiu editar nenhum livro. Mas continuava a escrever.
- Posso ver o que ele escrevia?
Eneida se afastou e retornou, trazendo alguns livros, e alcançou ao inspetor.
- Não! Eu quero ver o que ele estava escrevendo atualmente.
Júnior, tomando a iniciativa, disse:
- É isso, não nos lembramos do computador dele, que está no sítio.
- Você vai lá comigo agora? – perguntou o inspetor Silveira.
- Vamos lá, inspetor. Mãe, onde está a chave da casa do sítio?
Em quinze minutos, eles estavam adentrando no sítio. O computador foi ligado. Júnior procurou no menu e lá viu uma pasta com o título dos livros. Abriu a pasta e lá estavam mais de dez títulos dos mais diversos, mas um chamava a atenção, em especial; “O que será isso?”
Abriu o arquivo e começou a lê-lo:
“O que será isso?”
Assim começa o livro:
Dia 25 de maio de 2008. Estava eu consertando a cerca na divisa com o Alfredo Chochenborger, que fica nos fundos do sítio. Tinha parado para descansar um pouco, pois o dia não estava nem quente nem frio, como é próprio do outono, mas, pelo esforço físico de cavar buracos e colocar mourões de concreto, eu chegava a estar ofegante. Sentado num cupinzeiro, olhava para um capão, onde haviam diversas árvores e arbustos, incluindo uma taquareira. De repente, pareceu-me que algo se movia entre os arbustos e árvores, mas nada via além dos vegetais. Firmei a vista e passei a fixar o olhar naquela direção, parecia um espectro, eu via algo, mas não distinguia o que era realmente. Resolvi aproximar-me. Quando estava a meio do caminho, vi com grande nitidez que o espectro se movimentara e se embrenhara na vegetação. Quando lá cheguei, nada vi, nem senti que algo ali estivesse. Procurei por mais de meia hora, em todos os cantos do capão, e nada encontrei. Tinha permanecido em minha lembrança, chegando a me confundir entre a realidade e a imaginação. Naquele dia, nada mais pude fazer. Retornei para a casa e escrevi até este ponto.
À noitinha, retornei para a casa, e lá permanecia em minha lembrança aquela aparição excepcional. Em meus pensamentos, eu revia aquela movimentação sem igual, parecia ondular, ao se esconder entre as árvores. Minha mulher, que é muito observadora, percebeu o meu estado de prostração e meditação e perguntou o que havia comigo, se algo tinha dado errado no sítio. Respondi que apenas estava cansado, pois havia trabalhado em demasia.
No dia seguinte, continuei o trabalho na cerca, mas, de quando em vez, olhava para o capão, na expectativa de ver novamente algo se movendo. Numa dessa olhada, vi que o espectro estava lá novamente, eu percebia a sua presença, mas não o podia ver, ele se confundia com a vegetação. Assim, como se fosse transparente. Mas o espectro estava lá. Comecei a conjeturar, o que ele quer? Ele sabe que estou lhe vendo, e que estou lhe observando, da mesma forma com que ele me observa. Ele está com medo de mim assim como estou com medo dele. Se quisesse me atacar, já o teria feito. Passamos a nos observar diariamente, ele nos arbustos e eu na cerca. Os dias se passaram, a cerca já estava concluída, mas mesmo assim, diariamente, eu passava algumas horas do dia observando aquele espectro. Cada vez que eu tentava uma aproximação, o espectro se evadia entre às árvores. À noite, após o sono do cansaço do dia, acordava e permanecia pensando como poderia fazer contato com aquele ser, sim, imaginava que fosse um ser, pois se movimentava, percebia que ali estava a observá-lo, se escondia quando eu tentava uma aproximação.
Naquela manhã, tudo estava calmo, eu estava observando atentamente o local onde a coisa costumava permanecer.
Entre mim e ele, havia uma distância de mais de cem metros, em grama rasteira. Ele se encontrava na frente do taquaral, sua imagem se confundia com as taquaras. Percebi que ele começava a se movimentar, lentamente, saindo das taquaras e indo para a grama. Sua cor passara de amarela, que era a cor das taquaras, para a cor esverdeada da grama. Sua imagem era rastejante, e se movimentava como uma onda fosse. Parou a uma distância de menos de cinquenta metros de onde eu estava e se ergueu. Devia ter mais de um metro e meio de altura, seu espectro ficou mais visível, quando erguido. Permanecemos por alguns instantes naquela distância, eu olhando para ele, possivelmente também era olhado. Alguns instantes se passaram, de pura indecisão de ambos os lados. Tomei uma atitude, levantei e comecei a caminhar em direção ao meu observador. Quando, mais ou menos, vinte metros nos separavam, parei. Pude observar com maior nitidez. A primeira impressão que tive foi de que estava diante de uma espécie de escultura em vidro transparente. Sua forma poderia ser a humana, mas também poderia ser a de um outro animal. Não visualizava bem, pois a aparição ondulava como fosse, isso, agora eu sabia, parecia ser de água, dadas as ondulações que apareciam. Indeciso se deveria ou não avançar mais permaneci parado, como que estivesse petrificado, ali, um observando o outro. A criatura, em dado momento, começou a se movimentar, avançando em minha direção.
Parou a uns dez metros de mim, meus olhos atentos, minhas pernas tremendo, mal suportavam o peso do meu corpo. Não sabia se corria ou me aproximava mais. Agora eu podia ver com maior detalhe o que estava a minha frente.
A impressão que tinha sobre o que via era que o ser estava atrás de uma cortina de água, ondulante. A observação mútua durou cerca de um ou dois minutos. Nesse interregno de tempo pensei: “Se quisesse me agredir, já o teria feito. Sou uma presa fácil, não possuo qualquer arma, e quando o persegui no capão, quando o vi pela primeira vez, poderia ter me surpreendido com a maior facilidade, pois naquele momento não sabia do que se tratava.”
Assim pensado, resolvi avançar mais alguns passos. Avancei uns dois passos e parei, ele avançou outro tanto, assim, avançamos até ficarmos frente a frente.
Procurei ver detalhes de sua forma física, mas a imagem ficava distorcida pela oscilação. Minha voz saiu embargada, pelo medo, mas mesmo assim consegui dizer algumas palavras, as quais, não recordo corretamente, mas acho que devo ter dito quem é você. A resposta que recebi foi como a de um eco de minha própria voz. Assim, o que eu dizia era repetido pela criatura. Por alguns instantes, tive vontade de tocar nela, mas receoso de ser ferido, recuei a mão que avançava em sua direção. Agora mais calmo, conseguia falar com maior naturalidade e perguntei:
- Quem é você? De onde vem? O quer de mim?
Com uma tonalidade de voz, que nada se parecia com a humana, a criatura apenas repetia as minhas interrogações, o que me levou a concluir que ela tinha facilidade de repetir o que eu dissesse, talvez para aprender a falar. Por isso, passei a falar, o que entendia que seria interessante para ela saber: Eu me chamo Mário Meira, sou proprietário, isto é, tenho a posse deste sítio. Sou o que se pode chamar de ser humano, do sexo masculino. A criatura repetiu mais uma vez tudo o que eu havia dito.
Ficamos frente a frente, eu dizendo tudo o que me vinha na cabeça, referindo-me a plantas, animais e tudo o que havia nas proximidades. O ser repetia tudo o que eu dizia, sem acrescentar ou esquecer de nada. Passei a falar sobre a humanidade, o que faziam os seres humanos, quantos povos existiam, em suma, fiquei por mais de trinta minutos, recitando tudo aquilo que conseguia pensar. Já estava cansado de falar e ser repetido pela criatura. Parei de falar e ela começou a repetir tudo o que eu havia falado até aquele momento, como que tivesse gravado tudo o que havia falado. O horário avançara, a tarde caia rapidamente, e eu tinha que ir para a casa. Por isso, disse a ele que tinha de ir, mas que no dia seguinte estaria lá para voltarmos a nos comunicar. Virei as costas e me afastei com vagar e cuidado. Após haver caminhado alguns metros, olhei para trás e a criatura já havia desaparecido, como se tivesse evaporado.
Naquele dia cheguei em casa seriamente preocupado, o que deveria fazer, contar a alguém, certamente diriam que era fruto da minha imaginação de escritor, ou me tachariam de louco. Arredia como é a criatura, ao se aproximarem pessoas, certamente não apareceria.
No dia seguinte, lá estava eu procurando aquele ser que tanta admiração me causara. Escorado na cerca, olhando para todos os lados, permaneci ali, até próximo das dez horas, quando algo começou a se movimentar nos arbustos que formavam o capão. De rastejo o ser se aproximava, quando próximo, ergueu-se e se aproximou o suficiente para que eu pudesse tocá-lo, parando. Um apêndice se projetou e tocou-me de leve nas roupas, outro apêndice se projetou e tocou-me no rosto, a sensação que tive era que o que me tocava era mais frio do que o meu corpo e que era muito liso. Levei a minha mão para tocá-lo, ela escorreu sobre o seu corpo, parecia que estava tocando em um vidro, com uma camada de óleo, pois minha mão deslizou com grande facilidade.
Momento em que o ser falou:
- Mário Meira, ser humano, inteligente, único ser inteligente no planeta Terra. Comunica-se por sons audíveis.
Fiquei admirado. Como o ser conseguia falar? No dia anterior apenas repetia o que eu dizia, certamente não sabia falar, principalmente a língua portuguesa,uma das mais difíceis, como pôde ele aprender em apenas vinte e quatro horas? O que me levou a perguntar:
- Quem é você? De onde veio? Que forma você tem, para mim parece que você é água?
Possivelmente, a criatura não me entendeu, pois não respondeu as minhas perguntas.
Cheguei à conclusão de que seu conhecimento era apenas aquilo que eu tinha dito no dia anterior. E passei o dia todo ensinando a criatura a se comunicar comigo. Comecei lhe explicando como se falava, eu, tu, ele, os verbos, os pronomes, e tudo o mais que seria necessário para que nos entendêssemos. O ser assimilava tudo. No final do dia já estávamos quase que nos entendendo. Mas a tarde caiu e eu tive que retornar a minha residência.
No dia seguinte, cedo já estávamos dialogando, com certas dificuldades, mas dialogávamos. Já devia ser perto das dezesseis horas,quando ele me disse:
- Estou com muita dificuldade de apreender dessa forma.
Perguntei:
- E há uma forma mais direta do que esta?
- Sim, mas eu teria que copiá-lo.
- Como assim?
- Passar para mim todos os seus conhecimentos.
- Mas isso não me afetaria?
- Não, de forma alguma.
- E como isso poderia ser realizado?
- Bastaria eu colocar um de meus apêndices sobre a sua cabeça e copiar os registros do seu cérebro.
- Você não fará isso?
- Não, só o farei se for autorizado por você.
Nesse momento, um de seus apêndices pegou da minha mão e começou a envolvê-la por uma fina camada de uma espécie de gelatina transparente, que ondulava sobre a pele de minha mão. Senti uma sensação de frescor que a envolvia. Apenas pensei em impedir o avanço e ela recuou e abandonou a minha mão.
- Não sei se isso dará certo, mas preciso pensar a respeito. Amanhã, talvez, possamos fazê-lo.
Retornei ao meu lar, rolei na cama a noite toda, indeciso se deveria ou não permitir a transferência de conhecimentos. Em certo momento, minha mulher acordou e disse:
- Não vais dormir hoje, o que está havendo, perdeste o sono novamente? O que esta te preocupando?
Respondi que estava com indisposição estomacal, que iria tomar um antiácido.
Pela manhã já havia tomado a decisão de permitir a transferência, pois dessa forma poderíamos nos entender com maior facilidade.
Quando estávamos próximos um do outro, a criatura distendeu um de seus apêndices e com ele cobriu a minha testa. A sensação que tive foi a mesma que tive quando ela cobriu a minha mão, um frescor seguido de uma sensação de alívio. A transferência levou perto de quinze minutos, quando ele retirou o seu apêndice de minha testa. Passou a relatar fatos da minha vida que sequer eu me lembrava, o som que pronunciava as palavras era um som gutural, pronunciado com grande rapidez e clareza de pronúncia.
Daí para a frente, o diálogo foi fácil, o que me levou a perguntar?
- Quem é você, de onde vem?
- Venho de uma dimensão paralela a sua, sou um ser angelical. O que você vê é apenas um invólucro do meu corpo físico. Como as vestes que você usa.
- Não posso vê-lo como é realmente?
- Sim, mas somente na minha dimensão, pois na sua eu tenho que estar protegido pelo invólucro.
- Como você pode ser chamado, assim como eu me chamo Mário?
- Sou uma entidade conhecida como Al Na’ir. Sou do sexo feminino.
Os dias se passaram, eu diariamente estive com Al Na’ir, o tempo todo, e ela se mostrou uma excelente companhia. Contou-me que vivia em outra dimensão, mais precisamente na quinta dimensão. Perguntei se poderia me explicar isso, ela disse:
-A dimensão a qual pertenço é paralela a esta dimensão em que agora me encontro, ou seja, a sua dimensão.
- Diga-me como é que você passou da sua dimensão para a minha?
Nossos cientistas inventaram e criaram um dispositivo capaz de abrir uma fenda entre as mais diversas dimensões que existem. Eu fui a escolhida para fazer a primeira translação. Como não sabiam os efeitos da atmosfera em nosso organismo, utilizamos um invólucro, que para você seria aquoso.
- E por que no meu sítio?
- Puro acaso. Afinal, em algum lugar do planeta eu teria que aparecer, ao atravessar a fenda.
- E se eu não tivesse aparecido, o que faria?
- Teria ido procurar o seu vizinho.
- Através do meu conhecimento, você conhece todo a minha dimensão, tá certo?
- Sim! Está certo.
- Eu posso saber como é a sua dimensão?
- Com certeza. A recíproca é verdadeira, eu posso lhe transmitir os meus conhecimentos.
- Como assim?
- Da mesma forma como eu recebi os seus conhecimentos, posso passar-lhe os meus conhecimentos.
- Mas isso não vai me causar algum mal?
- Se for muito rápido, você poderá entrar em colapso e ficar em estado catatônico. Mas não se preocupe, passarei apenas uma pequena parte dos meus conhecimentos. Dessa forma, não lhe causarão mal algum.
- Muito bem, estou pronto.
Al Na’ir projetou dois apêndices, um deles alcançou a minha testa, o outro contornou o meu pescoço e me segurou pela nuca. Fechei os olhos e comecei a ver a dimensão de onde viera Al Na’ir.
Bosques verdejantes, pomares com as mais diversas arvores frutíferas, rios e cascatas cortavam o bosque, a água límpida e pura deslizava sobre as pedras. Seres angelicais passeavam sobre as alamedas cobertas de flores. Nos campos, nas matas, no pomar, não se via nenhuma erva daninha, tudo o que ali estava era benéfico aos seres viventes. Não havia insetos ou qualquer espécie de animais nocivos. Tudo o que ali estava contribuía para harmonia do sistema. Para os seres angelicais saciarem a fome bastava apanhar um dos inúmeros frutos que se achava a sua disposição.
De repente, Al Na’ir cortou a transmissão, me deixando extasiado com tamanha beleza. E eu perguntei:
- Este é o teu mundo, essa é a tua dimensão?
- Sim, de lá é que eu vim.
No dia seguinte, ela me disse:
- Mário! Eu tenho que retornar ao meu espaço.
- Eu posso acompanhá-la! Se me prometer que eu posso retornar ao meu mundo ou a minha dimensão.
- Com certeza. Você poderá ficar no meu mundo o tempo que desejar e retornar ao seu hábitat.
- É isso, inspetor, nada mais, o que aconteceu no dia seguinte, que deve ter sido o do desaparecimento, só Deus sabe o que aconteceu.
- Eu acho muito estranho. Será que o desaparecimento tem alguma coisa a ver com o que estava escrevendo?
- Ora, inspetor, essa seria mais uma das estórias que ele escrevia, nada mais.
- Pelo sim, pelo não, vou levar a CPU para a delegacia, pode ser considerada como uma possível prova.
Acho aconselhável deixar as suas vestes, onde as encontramos, vá que ele necessite delas.
O retorno do sítio foi sem comentários, cada um pensando o que queria, sem externar ao outro.
No dia seguinte, o inspetor Silveira recebe a visita de um repórter investigativo.
- Entre e sente-se, por favo.
- Inspetor! Eu sou o repórter do Jornal Notícias da Região , meu nome é Juvêncio, mais conhecido como Ju. Eu tive uma informação de cocheira de que o senhor está investigando o caso de desaparecimento de um escritor?
- Sim, é verdade.
- Eu queria o seu auxílio para noticiar a ocorrência. Já peguei cópia do BO.
- Depende do que você queira noticiar?
- Apenas o que o senhor me puder informar.
- Vamos lá, pergunte?
- Em que circunstância houve o desaparecimento?
- O Senhor Meira costumava passar o dia no sítio, ia de manhã e retornava à noitinha. Um dia, não retornou, a família, preocupada, foi a sua procura, ele tinha desaparecido, suas roupas de trânsito, seus documentos, inclusive dinheiro, estavam na casa. Seu carro no estacionamento.
Eu fui designado para investigar o caso, após passadas vinte e quatro horas do desaparecimento. A primeira ação que fiz foi de fazer um pente fino no local, levando vinte soldados, vasculhamos tudo, apenas encontramos, junto a uma cerca, as roupas de trabalho, todas espalhadas pelo solo.
No dia seguinte, sai na primeira folha do jornal a seguinte manchete:
ESCRITOR DESAPARECE MISTERIOSAMENTE DE SEU SÍTIO.
Na reportagem, apenas o que havia sido relatado pelo inspetor Silveira.
Às nove horas:
- Bom-dia, inspetor!
- Bom-dia, repórter, em que lhe posso ser útil?
- Vim trazer uma cópia do nosso jornal, para o senhor ver a reportagem sobre a matéria do desaparecimento. A propósito, estive na casa da família do escritor Mário Meira, o seu filho me adiantou que o senhor recolheu a CPU, como uma possível prova, mas não quis me dizer nada a respeito, disse que eu deveria falar com o senhor.
- Sim, mas até o presente momento, não cheguei a uma decisão se devo ou não abrir o computador dele para a reportagem.
- Então há algo interessante no computador?
- Digamos que há algo estranho, talvez uma simples coincidência.
- Quando o senhor acha que poderá decidir por abrir para a imprensa?
- Tenho que submeter à promotoria pública, antes de tomar qualquer decisão, aliás o que farei hoje mesmo.
- Muito bem, amanhã posso lhe procurar novamente?
- Com certeza.
Horas mais tarde, no gabinete do promotor:
- Isso é tudo Senhor Promotor. O senhor acha que devo abrir para o repórter do nosso jornal?
- Vamos analisar o que irá acontecer, se esses fatos forem a público.
Pode haver uma corrida ao local, os familiares não terão mais sossego e assim por diante. Com certeza, a notícia atravessará as fronteiras da cidade, trazendo inúmeros repórteres, curiosos, místicos e sabe lá quanto mais. Mas, por outro lado, não podemos cercear as informações ao público, pois isso mais cedo ou mais tarde virá à tona.
Façamos o seguinte; vamos disponibilizar aos poucos as informações, extra-oficialmente. Digamos assim que o Senhor Mário Meira estava escrevendo uma estória, que poderia ter conotações com o seu desaparecimento. Diga apenas isso, o repórter que use sua criatividade para engordar a notícia.
No dia seguinte:
- Bom-dia senhor inspetor?
- Já tão cedo, jornalista.
- E como foi com o promotor.
- O senhor sabe que não podemos tolher a liberdade de imprensa. Digamos que o desaparecido estava escrevendo uma estória que poderia ter conotações com o seu desaparecimento.
- Mas que conotações seriam essas?
- Isto é tudo o que lhe posso informar, o resto será por sua conta e risco.
- Inspetor, o senhor sabe que eu sou um repórter investigativo. Não querendo me embrenhar em seara alheia, eu lhe pergunto? O senhor se importa se eu fizer algumas investigações a respeito.
- Não, absolutamente não, se descobrires algo de relevante, favor me informar em primeira mão.
- Tá certo.
Logo após, na residência da família Meira.
- É isso ai, Júnior. O inspetor não quis me informar mais nada, além disso. Eu tenho certeza de que você sabe o que é que havia no computador. Alías, eu acho que você deveria ter uma cópia de tudo o que há no computador de seu pai.
- Eu vou falar com o inspetor a respeito e copiar os arquivos, cópia de segurança.
- Ok! Voltaremos a conversar.
Na última edição do jornal, lia-se uma nova manchete:
“ENVOLTO EM MISTÉRIO O DESAPARECIMENTO DO ESCRITOR”
E a reportagem dizia: “Até o momento a polícia não permitiu o acesso da imprensa aos arquivos do escritor que desapareceu no último dia 15, em seu sítio, sem deixar vestígios. Houve o recolhimento do seu computador, que, possivelmente, servirá de prova policial. Seu desaparecimento teria relação com o que estava escrevendo naquela oportunidade? Essa é uma pergunta que a nossa reportagem busca responder. As investigações continuam, nossa reportagem foi autorizada pela polícia para ajudar nas investigações.”
Na edição seguinte, a manchete foi esta:
“NOVAS EVIDÊNCIAS DO DESAPARECIMENTO DO ESCRITOR MÁRIO MEIRA.”
Na reportagem: “A família do escritor desaparecido forneceu à imprensa fotos do local onde supostamente ocorreu desaparecimento do escritor Meira. Suas vestes estavam espalhadas pelo local, dando a entender que ele teria sido despojado de suas vestes e subido no espaço.” As referidas fotos podem ser vistas abaixo. Mas a pergunta que não quer calar, o que havia em seu computador de tão importante que a polícia não quer dar acesso à imprensa?
Vendo a última reportagem do jornal, o promotor chama o inspetor Silveira e lhe diz:
- Inspetor, acho que devemos abrir, se a família concordar, para imprensa, seja o que Deus quiser.
- Mas, promotor, isso pode levar a um caos, virão repórteres de todos os lados, fanáticos por aparições, ufólogos e todas as espécies de loucos que há por aí.
- Eu sei, mas, no nosso país, há liberdade de imprensa, o fato terá de ser noticiado, mais cedo ou mais tarde.
- Seja feita a sua vontade.
A família concordou com a abertura dos arquivos que o escritor Mário Meira estava escrevendo antes do seu desaparecimento. Mas a reportagem deveria deixar claro que ele era um escritor de fantasias e ficções, e que, possivelmente, o que estava escrevendo nada tinha a ver com o seu desaparecimento.
Ju, o repórter, de posse da autorização, não só escreveu a matéria em seu jornal, como também a enviou a outros tantos quanto quiseram pagar pela sua matéria.
Dois dias depois da publicação, a cidade estava infestada de repórteres, e aficionados pelo assunto. Três canais de televisão enviaram sua reportagem, para fazer uma matéria sobre o caso, que saiu nos principais noticiários. Havia inúmeras pessoas desejosas de entrevistar a família e querendo visitar o local do desaparecimento.
A família abriu as porteiras do sítio, permitindo a visitação pública do local do desaparecimento, varias excursões por dia foram organizadas pela hotelaria da cidade, a empresa de transporte colocou ônibus para levar os excursionistas até o sítio.
O alvoroço foi nos primeiros dias, e como tudo, foi diminuindo o interesse da mídia, o movimento foi minimizando, até que restavam alguns fanáticos, que resolveram acampar no local para ser se entravam em contato com a criatura.
Um fanático e sua mulher, acampados no local, onde supostamente teria o escritor desaparecido, ficaram alguns dias acampados, e informaram à imprensa que teriam visto, no local, a dita criatura. A descrição foi semelhante a que se podia ler nos jornais que noticiaram o caso. Mas a coisa foi esfriando, esfriando, até mesmo o casal, que disse haver visto a criatura, deixou o local. Ninguém mais falava do caso, a mídia não mais noticiava o caso. A família havia fechado o sítio colocando-o à venda. Júnior apenas teve o cuidado de conservar as roupas abandonadas no dia do desaparecimento, e o celular, carregado e desligado, tudo acondicionado em um saco plástico, e no mesmo local em que foram encontrados, na esperança de que o pai pudesse aparecer.
O retorno do escritor
Já havia passado oitenta e seis dias do desaparecimento, ninguém mais falava sobre o caso. Eram dezesseis horas, quando a família Meira recebe uma ligação telefônica. Júnior atende o telefone:
Uma voz débil fala ao telefone:
- Alô é da família Meira, Júnior falando.
- Alô filho, é o pai. Podes vir ao sítio me pegar?
- Pai?
Nesse momento, sua mãe pegou a extensão e disse:
- Velho! O que aconteceu, nos deixaste aflitos.
- Pai, eu já estou indo te buscar.
- Neida. Como vocês estão? Estou com muita saudade de vocês.
- Como estás querido?
- Estou mal, estou fraco, minhas forças se foram.
- Já estamos indo querido, fica calmo que já estamos chegando.
- Júnior, espera que eu vou junto. Querido, vou desligar já estamos indo.
Eles chegaram ao sítio, o escritor Mário Meira vestia as vestes que Júnior tinha colocado no saco plástico, as mesmas que haviam sido abandonadas no dia do desaparecimento. O celular utilizado para a ligação fora o mesmo que estava junto com as roupas.
Mário Meira estava caído no solo, aparentemente desfalecido. Seu filho pegou-o por debaixo dos braços e o ergueu, deixando-o sentado na grama.
- Pai, o que está havendo? Pai, responde!
Mário balbuciou algumas palavras sem nexo. Júnior disse:
- Mãe, fica com ele que eu vou trazer o carro até aqui.
Ele encostou o carro e, com o auxílio de sua mãe, colocaram-no no banco traseiro e se dirigiram para o hospital da cidade.
O médico de plantão o examinou e disse:
- Ele está fraco, parece que não come há vários dias, ou sua dieta foi insuficiente, está desidratado, por uma diarreia. Deverá ficar hospitalizado, vamos hidratá-lo e alimentá-lo com soro.
- Quantos dias o senhor prevê que ele fique hospitalizado?
- No máximo por dois dias e terá alta.
No dia seguinte, Mário já estava se recuperando. Recebeu o abraço carinhoso de sua mulher e de seu filho. Quando sua mulher perguntou:
- Querido! O que houve contigo, desapareceste por oitenta e seis dias. Tua barba está crescida, como não a tivesses cortado por todo este tempo. Seu cabelo também está crescido. O que houve?
- Calma, mãe! Vamos levar o pai para casa, depois ele nos contará o que aconteceu.
Como fora previsto pelo médico, Mário Meira obteve alta no segundo dia de hospitalização. Os três abraçados retornaram, Mário Meira visivelmente fraco, seguia abraçado à mulher que o amparava. Em casa, Eneida cortou-lhe o cabelo e a barba.
Eneida não resistiu ao silêncio e disse:
- Deves ter perdido no mínimo vinte quilos. Agora as coisas estão calmas, mas precisavas ver o sítio cheio de pessoas que queriam saber do teu desaparecimento. Jornalistas, televisão, curiosos e tantos outros. Por uns trinta dias não tivemos sossego, todo mundo queria saber o que tinha acontecido contigo.
Eneida, estava indócil para ouvir a narrativa de seu esposo. Júnior se mantinha na expectativa, quando Mário falou:
- Eu sei que vocês estão aflitos para saberem o que aconteceu. Mas, antes, quero saber nos mínimos detalhes, o que aconteceu na minha ausência?
Júnior, tomando a iniciativa, começou a narrativa, e, após haver relatado todos os acontecimentos nos mínimos detalhes, disse:
- Pai! Acho que agora o senhor deve nos contar o que aconteceu? Para onde você foi e permaneceu todo esse tempo?
- Meu filho, minha esposa: a única coisa que lhes posso dizer é que estive viajando. E que vou continuar a escrever os meus livros.
- Mas, pai, o senhor deve explicações à comunidade, à polícia, que o procurou por todo esse tempo. A repercussão dos acontecimentos foi de tal monta, que eu acho que o senhor deve dar uma coletiva e explicar tudo.
- Filho! Nada tenho a explicar.
- Diga apenas se o seu desaparecimento teve a ver com o que você estava escrevendo com o título de “O que será isso?”
- Não, filho, você sabe que eu escrevo ficção, coisas impossíveis de acontecerem, tudo fruto da minha imaginação de escritor.
- Se não tem nada a ver com o livro, diga onde esteve todo esse tempo e como desapareceu, deixando suas roupas; por acaso fez a viagem nu? Desculpe, não quero ser desrespeitoso, apenas estou curioso por uma resposta.
- Fiquem tranquilos, eu apenas estive viajando, nada mais. Isso é o que lhes posso adiantar.
Eneida, que até então estava calada, se pronunciou:
- Júnior! Deixa o teu pai em paz, se ele não quiser nos dizer onde esteve, nada podemos fazer. Porém, eu acho que devemos comunicar a polícia. O inspetor Silveira foi tão atencioso conosco, devemos ter considerações com ele. Quanto a nós, estamos muito felizes por estares aqui conosco.
- Amanhã falarei com esse policial. – disse Mário.
No dia seguinte, Júnior telefonou ao inspetor Silveira:
- Alô! Inspetor Silveira? É o Júnior, Mário Meira Júnior.
- Olá! Como você vai?
- Bem, obrigado. A propósito, o senhor está muito ocupado? Poderia dar uma chegada aqui em casa.
- O que houve? Alguma novidade sobre o caso?
- Imagine, inspetor, que o meu pai está aqui e nós queremos que o senhor seja o primeiro a falar com ele.
- Estou indo imediatamente.
Feitas as devidas apresentações, o inspetor Silveira, para quebrar o gelo, iniciou a conversa:
- Senhor Mário! Eu fui designado para investigar o seu desaparecimento, acho que os seus familiares já devem ter lhe informado tudo o que aconteceu, após o seu desaparecimento. Como houve envolvimento policial, o promotor certamente irá querer explicações sobre o que aconteceu. O que é que o senhor tem a dizer?
- Eu estive viajando.
- O seu desaparecimento tem algo a ver com o romance que estava escrevendo?
- Absolutamente não, eu já disse aos meus familiares que o que estava escrevendo era um conto ou romance de ficção. Uma estória fantástica, impossível de ser verdadeira. Tudo fruto da minha imaginação. Aliás, agora que retornei estou ansioso para continuar o livro de onde parei.
- Senhor Mário! É muito interessante o que o senhor está afirmando. Nós temos duas pessoas, um casal, que ficou acampado no local onde o senhor sumiu, eles afirmam terem visto a criatura que está nos seus escritos. O que o senhor tem a dizer a respeito?
- Certamente que são pessoas que querem obter alguma vantagem publicitária. E inventaram que viram o tal ser imaginário, criado por mim, em um dos livros que estou escrevendo.
- Mas, onde o senhor esteve nesse tempo todo?
Mário Meira, acanhado, baixou a cabeça, colocou ambas as mãos cobrindo o rosto, e assim permaneceu por alguns instantes. Logo após levantou a cabeça, encarou o inspetor e disse:
- Inspetor, sinto imensamente, mas não posso dizer onde estive, nem o que fiz. Meus familiares já me fizeram essa pergunta, infelizmente não posso nada dizer.
- Bem, se não posso saber o que lhe aconteceu, durante esse tempo, é um direito que lhe assiste. Mas estarei a sua disposição se resolver relatar o que sucedeu nesse interregno de tempo. Adianto-lhe que pode contar com a minha discrição.
Horas depois:
- Alô! É o Juvêncio? É o Júnior Meira.
- Oi! Que é que há, Júnior, alguma novidade?
- O pai apareceu, está aqui em casa.
- To indo já para aí.
- Pai, este é o Juvêncio, o repórter que fez a cobertura do teu desaparecimento.
- Como vai, Senhor Meira? Sabe que o senhor é um homem famoso, o que teve de colegas meus querendo saber o que lhe tinha acontecido.
- Bom-dia, rapaz! Agora estou de volta e terminarei o livro que deu tanto alvoroço. Mas, trata-se de pura ficção, como já expliquei ao Inspetor Silveira.
- Bem, eu quero fazer uma reportagem de arromba do seu aparecimento. O senhor pode me conceder uma entrevista jornalística?
- Sim. Apenas diga que estou aqui. Nada mais, não quero ser importunado por jornalistas e televisão. Estou disposto a dar uma coletiva única e nada mais.
- Mas a tal criatura?
- Isso é tudo, Senhor Juvêncio. Faça as perguntas na coletiva. Passar bem.
Na próxima edição do jornal lia-se:
“O escritor Mário Meira está de volta, após oitenta e seis dias de desaparecimento, envolto em mistérios”. Ele está disposto a dar uma coletiva nos próximos dias.
No dia seguinte, a manchete no jornal da cidade:
O escritor Mário Meira aparece nas mesmas condições que desapareceu, porém, teveque passar dois dias hospitalizado, pare se recuperar fisicamente.
O que terá acontecido com o Senhor Meira? Teria ele sido abduzido pela estranha criatura? Mas fiquem despreocupados, ele está disposto a dar uma coletiva.
Após a edição com a notícia, os telefonemas não pararam, canais de televisão, jornais e revistas se deslocaram para a cidade.
A coletiva foi marcada no melhor hotel da cidade, o anfiteatro do hotel estava lotado de jornalistas, representantes de editoras e revistas e três canais de televisão, sendo que um deles transmitiria a entrevista ao vivo.
Lá no fundo, sentado em uma das últimas cadeiras, estava o inspetor Silveira. Cofiava a barba e com toda a calma que lhe é peculiar, esperava o evento.
O senhor Mário Meira foi introduzido no recinto. Juvêncio, que era o organizador, tomou a palavra e disse:
- Senhoras e senhores, muito bom-dia. Ao meu lado, o escritor Senhor Mário Meira, que esteve desaparecido, por oitenta e seis dias, justamente quando estava escrevendo um livro sobre o aparecimento de uma criatura. Na época, suspeitou-se de que ele havia sido abduzido pela criatura, uma vez, que suas roupas ficaram espalhadas no sítio, e todos os seus pertences, inclusive documentos, dinheiro, nada tinha sido levado. Eu sei que vocês estão ávidos por fazerem perguntas ao escritor. Que o façam, porém antes devem se identificar, indicando a entidade a que pertencem ou representam. Com a palavra, o escritor Mário Meira.
- Bom-dia a todos.
- Eu sou Celestino, do Jornal A Hora. Onde o senhor esteve nesses oitenta e seis dias?
- Estive viajando. Outra pergunta.
- Cristiano, da Folha de S. Paulo. A criatura do romance ou conto que o senhor estava escrevendo, no momento da sua viagem, teve algo a ver com o seu desaparecimento?
- Conto ou romance, é de ficção, uma criatura inventada por mim, nada mais do que isso.
- Júlio, da revista Tempo de Agir. Mais duas pessoas também viram a criatura, o que o senhor diz disso?
- Como alguém pode ver uma criatura fictícia como a que me referia no meu livro?
- Altemar, da Gazeta do Vale. O senhor irá continuar a escrever o seu livro, justamente de onde parou?
- Com toda a certeza, pretendo, dentro de sessenta dias, estar com o livro totalmente escrito.
E, assim, a entrevista coletiva ocorreu, quando não mais havia perguntas a serem feitas, restaram, apenas, os três canais de televisão, que lhe propuseram que ele participasse de programas de entrevistas. No final, restou apenas o inspetor Silveira, que, no fundo do auditório, batia palmas. Levantou, e, continuando com as palmas, se aproximou de Mário Meira e disse:
- Quero cumprimentá-lo pelo desempenho na entrevista.
Nos próximos dias, Mário recusou qualquer tipo de entrevista, comparecimento a programas de televisão e tudo o mais que o assediava. Instalou-se novamente no sítio para continuar os seus escritos.
Fez um contrato de representação com um dos mais importantes agentes literários, que passou a representá-lo junto às editoras e, como todo o agente literário, manteve a lembrança do público sobre o livro que estava sendo escrito. O livro não tinha sido totalmente escrito e o agente já tinha feito diversos contratos para edição, dentro e fora do país.
A HISTÓRIA CONTINUA
Mário abre o computador e lê os últimos escritos:
- Eu posso acompanhá-la! Se me prometer o meu retorno incólume.
- Com certeza. Você poderá ficar no meu mundo o tempo que desejar e retornar ao seu.
- Mas como faremos isso?
-É simples, envolverei o seu corpo com meu invólucro, dessa forma, me dê a sua mão.
Mário estendeu a sua mão, Al Na’ir projetou um apêndice que encostou na mão de Mário. Uma fina camada de uma espécie de gelatina transparente foi cobrindo a mão de Mário. A camada cobriu até o seu pulso e foi recolhida. Mário disse:
- Por que parou?
Al Na’ir respondeu:
- Você terá que tirar seu invólucro para que eu possa cobri-lo com o meu.
Mário começou a tirar as vestes, primeiro descalçou as botas e as jogou para o lado, depois tirou o casaco, logo as calças, as meias e a cueca, ficando totalmente nu. Al Na’ir se aproximou dele, dois apêndices se projetaram, alcançaram suas mãos, e começando a envolvê-lo a partir delas, e logo os antebraços, braços, tronco, pernas e cabeça. Os corpos se uniram e desapareceram.
- Onde estou? - perguntou Mário.
- Estamos em Alnilan.
- O que é Alnilan?
- É a dimensão a qual pertenço.
- Posso sair do invólucro?
- Sim, com toda a certeza, mas ficará desprotegido, por isso eu sugiro que nos afastemos, para termos nossa individualidade, mas que permaneça com a proteção do invólucro.
- Al Na’ir! Onde fica este mundo maravilhoso que estou vendo?
- Fica na quinta dimensão. Esta dimensão conhecida pela teoria da imersão.
O nome é sugestivo, pois a idéia é que o seu universo fisicamente está imerso em um universo maior de muitas dimensões, com a existência de diferentes tempos cósmicos, onde se encontra a eternidade.
- Desculpe, mas não entendi nada.
- Eu explico: no seu mundo existem três dimensões, o comprimento, largura e altura. O seu mundo é um mundo celular. O tempo é a quarta dimensão; a quinta dimensão é a que estás vendo, há ainda a sexta dimensão, que, diga-se de passagem, é oposta a esta. Aqui há tudo de bom, nada que se assemelhe ao mal. Ao passo que na sexta dimensão, há apenas o que é malévolo.
- Assim como o céu e o inferno?
Passados os sessenta dias, o agente literário entregou cópias dos originais ao seu agente literário, que as encaminhou a diversas editoras, que iriam produzir e comercializar o livro. O agente literário. formou uma extensa agenda de entrevistas no rádio e na televisão. Revistas produziram matéria sobre o livro. Em todas as entrevistas, o escritor manteve a mesma linha de conduta, dizendo que seu livro era ficção, que nada daquilo era, nem poderia ser, verdadeiro. Na carona, seus livros anteriores, que tinham sido rejeitados por diversas editoras, foram impressos e distribuídos, por todo o mundo. O escritor Mário Meira era uma celebridade, seus livros estavam no topo da lista dos mais vendidos.
Não escrevia mais, apenas tinha tempo para atender a eventos literários, inclusive no estrangeiro, para o qual estava em constantes viagens.
Entre suas andanças pelo mundo, costumava passar alguns dias com a família na cidade onde nascera, pois mandara construir uma morada digna de um escritor de sucesso. Certo dia, estava ele na mansão, junto à piscina de sua residência, quando o mordomo veio lhe trazer um comunicado:
- Está aqui o inspetor Silveira, que deseja lhe falar.
- Faça-o entrar, por favor.
O inspetor Silveira, quando viu o escritor sentado à beira da piscina, em uma grande cama de tomar sol, aproximou-se batendo palmas, em sinal de aplauso. Mário fez menção de se levantar, o Inspetor parou de bater palmas e disse:
- Fique à vontade, escritor. Só quero dar uma palavrinha com o senhor, se permitir, é obvio?
- Pois não, inspetor, será um prazer.
- Talvez não seja.
- Mas o que o traz aqui? Sente aqui ao meu lado.
O inspetor sentou-se em uma cadeira ao lado do escritor, e disse:
- Bela mansão, digna de um escritor de sucesso.
- Obrigado! Mas o que o traz aqui, Inspetor?
- Eu acredito no senhor. Aliás, eu acho que sou o único que acredita no senhor.
Mário recostou-se para trás na cadeira e riu, dizendo:
- O senhor é bem humorado para um inspetor.
- A vida tem que ser vivida aos poucos, e nesses poucos, deve haver alegria de viver, estar de bem com a vida é uma arte, meu caro escritor. Estive fazendo minhas investigações, pois não abandonei o caso, quando o senhor apareceu, muito antes pelo contrário, intensifiquei minhas ações. O senhor é um homem muito inteligente.
- O que o faz concluir isso?
- Os resultados da minha investigação me levaram a assim considerar.
- E quando saberei o resultado de suas investigações, inspetor. Estou curioso pelo seu relato.
- Inicialmente, vou lhe contar o que aconteceu, durante o seu desaparecimento, depois lhe direi como cheguei a tais conclusões.
- Prometo não lhe interromper durante a narrativa.
- Sua esposa disse que o senhor andava meditabundo e que perdia o sono diariamente. Tinha certeza de que algo estava acontecendo. De fato, o senhor estava muito preocupado em como faria para editar os seus livros, já que os havia mandado a várias editoras e todas os recusaram. O senhor descobriu que a maioria, se não todas, sequer liam os seus livros e os desprezavam, como fazem costumeiramente com os autores novos. Pois, elas têm preferência a escritores já famosos. Consideram que o nome do escritor é que vende os livros, quer sejam bons ou maus. O senhor ficou decepcionado, mas tinha que fazer algo a respeito. O senhor achava seus livros bons, não se conformava com a idéia de não podê-los editar. Com a mente de escritor, que exige uma fértil imaginação, o senhor bolou o plano perfeito para atingir os seus objetivos. A primeira ação foi fazer uns documentos falsos. Foi à capital à procura de um falsário, e assim obteve uma carteira de identidade falsa. Depois, comprou roupas novas e as levou para o sítio, sem que ninguém soubesse. Retirou algumas economias do banco, levou-as para o sítio e juntou-as às roupas novas.
No dia do desaparecimento, o senhor apenas trocou de roupas, espalhou as roupas no local onde foram encontradas, e deixou tudo parecer que tinha partido nu, como tinha vindo ao mundo. Possivelmente tenha usado um disfarce qualquer para não ser conhecido, enquanto saía do sítio, pois poderia encontrar com algum conhecido. Assim, caminhando, pegou estradas vicinais, pouco movimentadas e chegou à capital, onde tomou um ônibus para fora do estado, permanecendo escondido até chegar o dia do seu retorno.
Mário Meira que, como havia prometido, não o interromperia, bateu palmas, e disse:
- Inspetor, o senhor dará um excelente autor. Meus parabéns pela farta imaginação. Agora prove que o que disse é verdade.
- Ainda não concluí, senhor. Mário. Ardilosamente, o senhor passou as duas últimas semanas, comeu apenas o suficiente para permanecer vivo, provocou uma diarreia para ficar debilitado. Chegou ao sítio da mesma forma como saiu, trocou as roupas, e as escondeu. Tinha certeza de que ninguém as iria procurar. Aparecendo para a sua família, desfigurado e doente, tinha a certeza de que seria recebido bem e causaria maior impacto à opinião pública, que pensaria que tivesse, como disse o seu livro, mais tarde, ido para uma outra dimensão. Fazia parte de seu plano negar qualquer relação entre o seu desaparecimento e o livro que estava escrevendo, pois não poderia ser acusado de crime ideológico. Pensassem outros o contrário, você sempre afirmaria haver uma total desvinculação entre um fato e outro.
- Muito bem, inspetor, o senhor já contou a sua estória, agora quero ver provar o que disse?
- Meu caro escritor! Como disse, após a narrativa, lhe diria como cheguei a essas conclusões: Iniciei minhas investigações, pelos bancos, para saber se, nos últimos seis meses, o senhor tinha feito alguma retirada substancial da sua conta. Claro que obtive uma autorização judicial para isso. O resultado foi de que o senhor tinha retirado do banco a quantia de cinco mil reais em espécie. Investiguei no comércio local, e descobri que o senhor fez compras de cuecas, camisetas, calças, meias, sapato, um chapéu de feltro, casaco, pulôver e uma gabardina. Quando me disseram que o senhor tinha retornado, o que eu já estava esperando acontecer, fui até o sítio e procurei exaustivamente suas roupas, e as encontrei, exatamente, o que a loja me havia dado na relação. Tudo acondicionado no mesmo saco plástico onde o seu filho tinha deixado as roupas de uso no sítio. Escondidos dentro de um buraco de tatu e coberto com areia.
- Digamos, inspetor, que tudo isso seja verdade, de que serei acusado? De retirar dinheiro da minha conta; de fazer compras em uma loja de roupas; de esconder as roupas em minha propriedade? Inspetor, o senhor não tem nada de que me possa acusar.
- Certamente, senhor Mário, eu já sabia disso antes de lhe falar. Apenas queria que o senhor soubesse de que pode enganar o povo, mas não engana a polícia. Mas, todavia, oferecerei as provas ao promotor. Ele saberá se pode ou não indiciá-lo por crime contra o povo.