UM HOMEM DE CORAGEM
UM HOMEM DE CORAGEM
Conto
De Roberto C. Cardozo
Havia uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, que vizinhava com outra de igual tamanho e importância. A rivalidade entre estas duas cidades era coisa de fazer cair o cachimbo da boca de qualquer Sherlock Holmes. Os rapazes de uma delas, sempre tentavam namorar as moças da outra. Uma delas, na entrada, tinha um pórtico em pedra basalto, guardado por sete anões de gesso. Certo dia, os rapazes da cidade rival, na calada da noite, roubaram os sete anões e os colocaram na entrada da cidade deles. E, colocaram uma inscrição dizendo: FUGIMOS DE GIUTIS. Os prefeitos chegaram a intervir no caso. Obviamente, as estátuas foram devolvidas aos seus respectivos locais.
A distância entre as duas cidades, considerando a RS que as ligava, era de quinze quilômetros. A economia predominantemente de Giutis sempre fora a industrialização de móveis e vinhos. A de Sambra, a outra cidade, predominava a indústria metal mecânica e vinhos. Uma particularidade desta cidade, que era motivo de galhofa dos habitantes da cidade rival, se devia ao fato de que havia uma bacia de captação de águas pluviais, que alimentava uma represa, que, por sua vez, suportava o consumo da cidade, quando não havia seca. E quando isso acontecia, ela tinha de se socorrer do rio que passava nas cercanias de Giutis. Por isso os giutissenses diziam que sem Giutis, Sambra morreria de sede.
Afora a rivalidade, que até certo ponto era salutar para o progresso das duas cidades, todos viviam em harmonia e com muito progresso.
Naquela manhã do dia 12 de setembro, o delegado de Sambra chega à delegacia. Na portaria, apanha a correspondência e dirige-se ao seu escritório. Entre as cartas havia uma que lhe causou espécie. Era dirigida a ele, como delegado de Sambra. No subscrito lia-se: Um homem de coragem.
Pega a espátula, introduz, rasgando a lateral da carta, retira do interior uma folha de papel e lê:
“- Vou explodir o depósito de Álcool da distribuidora”. Isso ocorrerá no dia 25 de setembro às 10 horas e 30 minutos. Assinado: Um homem de Coragem.
- Que idiota acha que vou dar importância a essas ameaças, quer me fazer de bobo?
Rasga a carta e a joga no lixo. Alguns momentos depois, o telefone toca. O delegado atende:
- Alô, é Florisbelo Gonçalves, delegado de policia de Sambra.
- Bom-dia, Delegado, é o prefeito falando. Acabo de receber uma carta, que me causou alguma preocupação. Um louco ameaça explodir um deposito de álcool da distribuidora de combustível.
- Eu acabo de receber a mesma ameaça, joguei-a no lixo. Isso é obra de algum desocupado que quer nos passar um trote.
- Eu também acho, mas como há louco para tudo, quero que nesse dia e horário o senhor esteja preparado, para coibir qualquer ação que tente cumprir as ameaças.
- Tomarei todas as providências que se fizerem necessárias. Esteja certo disso, Senhor Prefeito!
- Não esqueças de que faltam apenas treze dias para a data apontada pelo maluco.
- Não esquecerei!
Nos treze dias que antecederem à data fatídica, o delegado tomou as seguintes providências: determinou que ninguém devia entrar na área da distribuidora, sem ser identificado, e todos os empregados seriam revistados ao entrarem para o trabalho.
Os carregamentos dos veículos de transporte de combustíveis seriam revistados antes de entrarem na área, e todos os motoristas identificados, pela carteira profissional.
No dia 25, um grande contingente de policiais disfarçados de motoristas e de funcionários guardava a área. Ninguém poderia se aproximar do local sem ser identificado.
Às 10 horas e 26 minutos, um aeromodelo de carga mergulha sobre o deposito de álcool e despeja um tubo com nitroglicerina. A explosão move a tampa flutuante do tanque, deixando o álcool cobri-la e uma explosão maior desloca a tampa definitivamente. As labaredas que se sucederam, elevavam-se a mais de 30 metros de altura. O corpo de bombeiros foi chamado e chegando ao local quinze minutos depois, começou o resfriamento dos depósitos adjacentes. Mais de seis horas as chamas levaram para consumir os vinte milhões de litros de álcool.
O rebuliço na cidade foi grande. Os vereadores acusaram o prefeito, que deveria ter se socorrido da polícia da capital. O corpo de bombeiros alegou que foi solicitado apenas para combater o fogo. O delegado, por sua vez, disse que fizera mais do que o necessário, porém fora surpreendido por algo inesperado.
No dia seguinte, o delegado, mal-humorado, dado a noite de insônia que passara, chega à delegacia, como de costume, apanha a correspondência na portaria, coloca um maço de cartas debaixo do braço e se dirige ao escritório. Lá chegando, senta sobre a mesa com apenas uma perna, joga o maço de cartas sobre a mesa. Olha o maço que ali se espalha. E, com susto, lê o subscrito de uma das cartas: Um homem de coragem.
Um calor lhe sobe do tronco, rumo à face que se ruboriza. Um nó na garganta lhe sufoca. A mão direita, trêmula, alcança a carta, os dedos polegar e indicador pinçam a carta, o braço faz um movimento e alcança a carta, a mão esquerda a segura, enquanto a mão direita apanha o estilete para abri-la. O estilete rasga a carta de qualquer jeito. As mãos trêmulas desentranham a folha de papel do interior do envelope. A única folha de papel, dobrada em três partes, é aberta com violência. Os olhos, arregalados, quase fugindo das covas, lêem:
“- Vou envenenar a água da represa. Isso ocorrerá no dia 8 de outubro, às 17 horas e 30 minutos, pouco antes da noite chegar” Assinado: Um homem de coragem. ”
O telefone do prefeito toca:
- Alô! É a secretária do prefeito de Sambra, as suas ordens!
- Delegado Gonçalves, quero falar com o Senhor Prefeito imediatamente!
- Um momento! Vou passar a ligação.
- Bom-dia, Delegado! Alguma novidade?
- Acabo de receber uma carta do louco. Diz que irá envenenar toda a água da represa.
- Um momento, aqui está! Também recebi uma correspondência dele. Deixe-me ver!
O prefeito rasga uma das laterais do envelope, do interior tira uma folha e lê:
“- Vou envenenar a água da represa”. “Isso ocorrerá no dia 8 de outubro às 17 horas e 30 minutos, pouco antes da noite chegar” Assinado: Um homem de coragem.”
- Isto é muito grave! Desta feita não tomaremos a responsabilidade só para nós. Vamos reunir os vereadores, a defesa civil, os comandantes da Brigada Militar e comunicarei ao governador.
Os dias passavam as forças da cidade de Sambra, e até mesmo do estado, foram movimentadas. O plano fora concebido por especialistas em defesa estratégica. As hipóteses seriam de que ele novamente utilizasse um aeromodelo. A área de acumulação de água consistia em uma represa de pedras e concreto, fechando um vale. A área alagada tinha mais de dois quilômetros quadrados, nas margens havia vegetações aquáticas, como juncos e macegas. Por isso, resolveram montar um cordão humano, a mil metros, para cercar a área. A cada vinte metros estaria um atirador, com potentes armas, com pesadas cargas de chumbo, o suficiente para impedir a passagem de qualquer aeromodelo. Ou até mesmo a aproximação de qualquer objeto por terra. Além disso, uma operação com radares, com capacidade de detectar a aproximação de qualquer objeto por ar, quando este estivesse a cinco quilômetros do local.
O fatídico dia chegara. Tudo pronto, já passavam das 18 horas e nada tinha acontecido. Nos radares, nenhum objeto tinha sido identificado, salvo um bando de marrecas piadeiras, que nessa época do ano costumam a chegar à região.
Às 18 horas e 10 minutos o telefone celular do delegado toca.
- Alô! É o delegado Gonçalves!
- Aqui é um HOMEM DE CORAGEM. Eu só quero dizer que a água da barragem está contaminada por mercúrio. Como anunciei, às 17 horas e30 minutos, um bando de marrecas piadeiras, levando, cada uma, pequena bolsa de papel, contendo 25 gramas de mercúrio metálico, pousou nas águas da represa. O papel, em contato com a água, se dissolveu, lançando a carga. Até o próximo contato.
O delegado bate com a mão na mesa:
- Merda, filho de uma puta, corno. Parem a captação imediatamente, as águas foram contaminadas.
Dali para frente, a comoção social foi um desastre, uns querendo colocar a culpa nos outros. As providências que foram tomadas, imediatamente, foi a de socorrer-se com água de Giutis, como sempre fizeram nos tempos de seca. Daí para frente, o caso passou a ser avaliado pela SEMA. (Secretaria do Meio Ambiente).
No dia seguinte, na delegacia de polícia, o delegado Florisbelo Gonçalves, sentado à frente de sua mesa de trabalho, tamborilando com os nós dos dedos sobre a mesa, ato este que faz sempre que está nervoso e preocupado, pensa:
- Por que ele faz isso? Que foi que ele lucrou, com tais atos de vandalismo? Utilizou um telefone público para falar comigo. Na verdade ele não quer machucar, ou envenenar ninguém! Se não, não teria se dado ao trabalho de telefonar, para que eu cortasse a captação de água para o tratamento. O prejuízo será enorme, levarão meses até que todo o mercúrio seja retirado e a captação restabelecida. A despesa do município será enorme, as águas serão transportadas de carreta, dia e noite, como nos tempo de seca.
- Dá licença, Senhor Delegado?
- Entre, cabo.
- Aqui está a correspondência!
- Muito obrigado.
Ele pega o maço de cartas, folheia os envelopes, um a um, até encontrar o que estava procurando. Pega o envelope.
- Aqui está, o que será desta vez?
Olha o subscrito: Um homem de coragem. Um calor lhe sobe, partindo do estômago. Suas faces se ruborizam. O suor irrompe dos poros e, correndo testa abaixo, contorna os olhos e corre face abaixo. O torpor toma conta de todo o seu corpo. Num ato selvagem, rasga o envelope ao meio, retirando do interior das partes do envelope, duas metades de uma folha de papel, junta-as e lê:
“- No dia 28 de outubro, às 16 horas e 30 minutos, vou assaltar o Banco do Brasil”. Você irá providenciar uma sacola contendo 100 kg de ouro, em barras de 100 gramas. Você irá me entregar o ouro pessoalmente. Um homem de coragem.
- Filho de uma prostituta, corno, maldito. Eu sabia que havia um interesse pessoal nisso.
Florisbelo dá um murro sobre a mesa. Amassa os papéis. Pega o telefone e liga para o prefeito.
- Já recebi delegado. Agora é um caso de policia. O senhor tem o meu consentimento para chamar até a guarda real da rainha da Inglaterra e o sétimo de cavalaria, se for necessário. Boa sorte, não se esqueça de que desta vez temos apenas vinte e um dias para agirmos:
O caso envolveu todos os policiais locais e também a polícia da capital. O delegado Gonçalves, foi assessorado por renomados policiais, peritos e psicólogos. Nos planos de ação, todas as estradas, até mesmo as secundárias, estariam com barreiras. Se o assaltante conseguisse fugir, não poderia ir longe.
Todos ficaram atônitos. Nunca, em momento algum, se viu falar de que em determinado instante, houvesse tantos policiais e armamento, cercando o prédio do Banco do Brasil.
Uma hora antes do momento marcado, os clientes e funcionários foram retirados do local, permanecendo apenas a policia, o gerente e o subgerente do banco.
Cinco minutos para a hora marcada, ele apareceu. Estacionou o carro, com os vidros com insulfilm, desceu, vestindo um traje preto, camisa branca e gravata preta. No rosto, uma mascara com um longo nariz tipo Scaramuch, uma peruca vermelha, com cabelos caracolados. Mais de cem armas lhe foram apontadas. Ele levantou as mãos, esperou que o delegado se aproximasse. Quando este estava a cinco metros, ele disse:
- Pare! Não se aproxime mais. E, ouça com muita atenção, pois vou falar apenas uma vez. Neste momento, há, em determinado local, um grupo de cem crianças que, dentro de trinta minutos, morrerão queimadas. Eu vou fazer uma retirada anunciada, de 100 kg de ouro em barras de 100 gramas. Espero que tudo esteja preparado.
Após eu haver retirado o ouro e estar longe, e, em segurança, eu ligo dizendo o local onde haverá o incêndio. Estejam preparados, pois terão pouco tempo para evacuar o local, e tudo queimará.
O delegado trouxe uma grande sacola com os 100 kg de ouro, sobre um carinho para carregar malas.
Ele abriu a sacola, tirou um saco de lona, que trazia na cintura, e começou a transferir as barras da sacola para o saco. Quando contou cinqüenta barras, pegou outro saco igual e começou a transferir o restante. Quando terminou, colocou o conteúdo no carro, entrou, e saiu com toda a calma do mundo.
Cinco minutos depois, o delegado recebe uma ligação.
- Alô! Delegado Gonçalves falando!
- Preste atenção, o local é a escola municipal Duque de Caxias, onde, nesse momento, está sendo realizada uma festa para arrecadar fundos para a sala de informática. Boa sorte, delegado!
O salão de festa, se é que se pode chamar de salão, era uma cobertura unindo dois prédios em forma de telheiro. Em uma das extremidades, havia um tablado, e na frente deste, mais de cento e cinqüenta cadeiras. Para esconder o telhado, que não possuía forro, foi colocada uma grande quantidade de balões, das mais diversas cores. O palco era formado por paredes de balões, aparecendo apenas a parte frontal que dava para a platéia.
No momento em que o delegado e um grande contingente de policiais chegaram à festa já havia começado há mais de uma hora. As cadeiras estavam praticamente todas ocupadas por alunos e por pais de alunos e professores.
O delegado olhou para o relógio e disse que teriam apenas três minutos para evacuar o salão. Era preciso agir com cautela, mas com rapidez. O portão frontal que dava para o salão foi aberto em sua plenitude, e o pessoal foi todo retirado, e aconselhado, para que se afastasse o máximo possível do local.
No momento marcado, ouve-se uma enorme explosão. A cobertura do salão levantou e foi jogada no pátio do colégio, a uma distância de dez metros. As labaredas atingiram uma altura de mais de vinte metros. Tudo queimou em poucos minutos.
Em seguida, as atenções se voltaram ao assaltante. Quem tomou nota da placa do carro, para que lado ele seguiu, etc. Logo vieram as notícias, a placa do carro era clonada, o carro fora roubado a alguns dias de um estacionamento de supermercado. O carro tinha sido abandonado no interior de um mato, nas cercanias da cidade. Mas o cerco tinha funcionado, o assaltante permanecia na cidade, pois todas as estradas estavam com barreira, tudo o que passava pelas barreiras era examinado minuciosamente. Seria apenas uma questão de tempo para que o caso fosse resolvido.
O laudo da polícia técnica constatou que foram utilizados dois gases para encher os balões, uma parte continha o gás acetileno e os outros receberam oxigênio. Ou seja, um combustível e um comburente e junto a um dos balões, fora colocada, uma pequena bomba-relógio.
As investigações levaram o delegado a interrogar as pessoas que organizaram a festa. Uma empresa patrocinou os arranjos com balões. Um dos funcionários disse que, pela manhã, um homem, com macacão azul, cabelos compridos, e com um boné na cabeça, chegou em um carro com vidros escuros. Disse ao funcionário que tinha vindo completar os balões que haviam faltado, tirou do porta-malas dois cilindros de gás, encheu os balões, ajeitou tudo, e foi embora.
O envenenamento das águas da represa levaram a uma investigação por técnicos e peritos, que concluíram que: as aves migratórias haviam chegado à área da represa há vários dias. Foram capturadas e levadas para local próximo, onde foram carregadas com o mercúrio. Possivelmente, as aves foram sedadas com a ingestão de pequenos peixes, contendo os sedativos.
Dois anos antes: em Sambra.
Aos sessenta anos, resolvera se aposentar, após haver trabalhado por trinta e oito anos na cutelaria. Iniciou como supervisor de forjaria. Após cinco anos, trabalhando de dia e estudando à noite, colou grau como Bacharel em Engenharia Mecânica. Um ano depois, passou a gerente de fabricação. E, nessa função, trabalhou até o dia de sua aposentadoria.
Agora iria realizar os sonhos que acalentara, durante longos anos de trabalho. Comprar um sítio e morar nele, cuidando de galinhas, porcos, ovelhas e vacas. Sua esposa não compartilhava dos seus sonhos, preferia continuar na cidade, mas se propunha a passar no sítio, nos finais de semana. Há mais de um ano procurara o sítio ideal para os seus planos. Finalmente encontrara. Foi amor à primeira vista. A casa, embora modesta, fora bem construída, com tijolos deitados, viga de baldrame, laje pré-moldada no teto, piso em cerâmica esmaltada. Três quartos, cozinha, sala de estar e banheiro. Ao redor da casa, um alpendre, com 2,5 metros de largura, cobrindo a parte frontal e as duas laterais. “As janelas eram do tipo venezianas, todas com grades de ferro de 5/8” de polegada, engastadas nas paredes, na única porta frontal, com um portão de ferro, que respaldava porta em madeira. Três cadeados guardavam a guarnição de ferro. Quatro hectares de boa terra, o suficiente para os animais que pretendia ter. Um pequeno açude, alimentado por um córrego, teria água suficiente para prover os animais. A mais de cem metros da casa principal, havia uma casa menor, em madeira, que servia como casa do caseiro. Como não iria tê-lo, ela seria reformada para servir de estrebaria.
A escritura havia sido lavrada, a energia fora restabelecida, o poço artesiano funcionara a contento. Apenas uma coisa preocupava o velho engenheiro. A existência de uma vila perto do sítio, onde passava os trilhos da Rede Ferroviária Federal. Quando os trilhos foram retirados, as famílias de posseiros tomaram conta do local. Foram construídas casas por mais de três quilômetros, casas e barracos de todos os tipos. Para se chegar ao sítio, além de passar pela vila Trilhos, adentrava-se num corredor de acesso, que tinha mais de um quilômetro até chegar à entrada do sítio. A casa já tinha sido arrombada, por várias vezes, fato este que, possivelmente, levara o antigo proprietário a se desfazer do imóvel.
Sessenta dias da posse, o lugar não parecia mais o mesmo, árvores foram plantadas, animais foram adquiridos e lá colocados. O gramado fora revitalizado com aplicação de fertilizantes e estercos. O jardim estava florido, uma horta fora construída, onde se podiam achar verduras e legumes de diversas espécies.
Numa manhã, Xandico, ao tratar as ovelhas, nota a falta de uma, olha em todas as direções a sua procura, quando vê, ao longe, algo branco, parecendo-lhe um pelego. Aproxima-se e logo fica surpreso. Vê os restos da ovelha, pelego, patas, buchada e a cabeça. Um abigeato havia acontecido.
Dias mais tarde, ele se ausentara do sítio para cumprir alguns compromissos. Ao retornar, notou que alguém havia estado no local. Procurou algumas evidências, e deu falta do compressor de ar do poço artesiano. No dia seguinte, retornou à cidade para comprar um novo compressor de ar. Quando o carro passou pela vila Trilhos, um garoto prestou atenção ao vê-lo passar, e depois saiu correndo. Chegando à esquina, onde havia três homens, ele se aproximou e disse:
- O velho passou para a cidade.
Um dos homens disse ao garoto:
- Vá para casa.
Eles se entreolharam e seguiram a passos lentos, rumo ao mato. Em poucos instantes, eles adentravam no sítio. Com uma serra para ferro, começaram a cortar as grades, até desprenderem os cadeados. Logo um pé de cabra foi introduzido na porta de madeira e ela foi arrombada. Os três elementos roubaram tudo o que havia de valor na casa, incluindo as roupas do dono.
Por volta do meio dia, Xandico chega ao sítio e vê o lamentável quadro do arrombamento. Olhou ao redor, sacudiu a cabeça, indicando contrariedade. Tratou de arrumar a bagunça e contabilizar os prejuízos.
Foi à cidade e voltou com um serralheiro, que consertou todas as partes metálicas, com a utilização de solda. A porta de madeira foi consertada pelo próprio Xandico.
Quando foi levar o serralheiro de volta à cidade, o velho Xandico foi à delegacia de polícia, para registrar a queixa. O inspetor atendente o fez esperar por mais de vinte minutos, enquanto lia o jornal. Quando o atendeu, disse que tinha que ler o jornal para conferir a coluna policial. Xandico disse:
- Eu sou Alexandre Fragoso Machado, engenheiro aposentado. Será possível eu falar com o Senhor Delegado.
- Um momento, por favor!
O inspetor se afastou indo ao gabinete do delegado.
Logo em seguida chega o delegado.
- Bom-dia, Senhor Delegado! Eu sou Alexandre Fragoso Machado. Sou engenheiro aposentado. Eu gostaria de falar com o senhor!
- Sim! Qual é o assunto?
- Eu tenho um pequeno sítio, perto da vila Trilhos, na verdade, fica a uns dois quilômetros da vila. Entre o sítio e a vila há um mato de eucalipto e outro de acácia. Alguns dos moradores da vila podem ter me assaltado, por três vezes. Na primeira, eles mataram uma ovelha e levaram a carne. Depois me roubaram um compressor do poço artesiano e, finalmente, arrombaram a casa e levaram tudo o que havia de valor, incluindo roupas minhas.
- O Senhor sabe quem são as pessoas que lhe assaltaram?
- Não senhor, eu não sei.
- Nós aqui temos muitos casos para solucionar, se o senhor souber de alguma informação que nos possa levar aos assaltantes, pode retornar. Por enquanto, registre a queixa.
- Mas, senhor delegado, eu havia pensado que o senhor pudesse dar uma batida na vila, junto comigo, só para dar respeito.
- Nem pensar, o Senhor acha que estamos aqui para servir os seus interesses. Quem mandou o senhor comprar um sítio perto da vila Trilhos. Dê a queixa.
- Não será necessário, Senhor Delegado.
Xandico saiu desolado e retornou ao sítio. Lá permaneceu por diversos dias, sem se afastar. Nos finais de semana, apenas ia à cidade para trazer a sua esposa, para passar com ele o final de semana.
Num certo domingo, ele chega a casa, vindo do curral, e diz à esposa:
- Marcela! Vou ter que ir à cidade buscar um remédio para a Chiquita (Chiquita é a vaca de leite). Ela está com mamite. Já liguei para o veterinário e ele está me esperando.
- Tio, o velho passou para a cidade! - disse o garoto.
- Vamos lá, pessoal! Já deve ter mais coisas para nós, lá no sítio do velho.
Quinze minutos depois:
- Tu não devias ter matado a velha!
- “Merdas!” Ela nos viu, e ia nos denunciar à polícia.
- Quando Xandico chegou com o medicamento para a vaca, logo viu que algo estava errado. Adentrou na casa e viu o corpo de Marcela.
- Eles a estrangularam com uma corrente.
O enterro aconteceu sem nenhum registro policial, por parte de Xandico. Alguns amigos que foram chamados tomaram todas as providências. Xandico ficou taciturno, olhar fixo em um ponto qualquer, parecia que nem estava ali. No enterro, não derramou nenhuma lágrima, apenas permanecia com os olhos parados, olhando um ponto qualquer.
Dois meses depois da morte de Marcela, Xandico, cedo da manhã, foi à cidade, retornando logo em seguida com o mecânico, que iria levar o seu carro para fazer a revisão. Às oito horas o mecânico passa pela vila Trilhos, indo para a cidade. O garoto vê e sai correndo para contar ao tio.
Xandico está na estrebaria, à porta da casa estava apenas encostada. Os três homens chegam ao sítio, vindo pelo mato de eucalipto. Xandico os vê e fica a espreita. Eles adentram em casa. Ele se aproxima cautelosamente entre as árvores. Chega à frente da casa, corre, fecha a sobreposta de ferro, passa o cadeado. E se afasta. Os meliantes, ao ouvirem o barulho do fechar a porta com cadeado, correm e constatam que estão encerrados. Xandico, de longe, exibe a arma de caça, com dois canos, e carga de chumbo. A única porta de serventia da casa estava cadeado. Tentam as janelas, todas com grades de ferro, sem qualquer chance de saída. A água do reservatório tinha sido cortada para o interior da casa. Comida havia, mas tinha que ser preparada e, sem água, nada poderiam fazer.
As horas passam, os larápios começam a se acusar entre si. Um deles disse:
- Foi o Juvêncio quem matou a velha, nois até ficamos bravos com ele. Ele sim é que merece morrer de sede e fome.
O velho se aproxima e diz:
- Todos vocês são culpados, todos vinham ao meu sítio roubar e matar meus animais. Não interessa quem fez o ato maligno, qualquer um de vocês poderia tê-lo feito. Temos todo o tempo do mundo, vocês somente sairão daí quando alguém vir procurá-los. Caso contrário, todos morrerão de sede. Mas, não se esqueçam que ainda tem água no vaso sanitário; com um copo poderão tirar uma boa quantia, que poderá matar a sede por algumas horas.
Os meliantes gritaram, sapatearam, bateram contra as paredes, empurraram a grade da porta. Tudo em vão, os materiais resistiram aos impactos.
Quatro dias depois, um grande buraco foi aberto no solo, no lado esquerdo da casa. A quatro metros de profundidade, os corpos nus dos três malfeitores foram colocados um sobre os outros. Uma pequena fogueira queimava as roupas dos enterrados. A terra foi lançada sobre os corpos, o solo foi batido. E, no local, um retângulo, com um metro por dois, foi formado com pedras de alicerce. O construtor, solitário, se retira, indo até uma pequena estrebaria. De lá retorna com um carrinho de mão carregado com pequenas barras de ouro. Ao chegar à construção, o artífice começa a colocar as pequenas barras no piso como fossem peças de cerâmica. Ao cabo, coloca uma fina camada de concreto sobre as barras. E, começa a erguer as paredes, com tijolos. Após dois dias de trabalho, o pedreiro conclui a sua obra, colocando sobre o sepulcro uma estátua de Nossa Senhora Aparecida. Santa a qual sua finada esposa era devota.
Uma semana depois, o velho Xandico vai até o cemitério assistir a exumação do corpo de sua finada esposa. Leva consigo uma urna em madeira de lei, onde deposita os ossos exumados. E retorna ao sítio. Lá chegando, coloca a urna dentro do sepulcro.
Alguns dias depois, chega ao sítio o Delegado Florisbelo. Pára o carro de polícia na frente da casa, desce, bate à porta. O velho Xandico estava na estrebaria. Ao ver o carro de polícia, se aproxima. Cumprimenta o delegado, dizendo:
- Bom-dia. Senhor Delegado, a que devo a honra?
- Bom-dia. Como tem passado Senhor?
- Alexandre Machado, para os amigos, Xandico.
- Pois bem, Senhor Xandico. O que me traz aqui é o desaparecimento de três moradores da vila. Há mais ou menos, uns vinte dias atrás. Só agora um moleque disse que eles tinham vindo para cá para assaltar a casa. E nunca mais foram vistos.
- A propósito, Senhor Delegado, como vão às investigações sobre o assassinato de minha esposa?
- É isso, achamos que os desaparecidos tenham sido os mesmos que estavam lhe roubando.
- Possivelmente, fugiram ao saberem que o Senhor estava investigando-os. Venha Senhor Delegado, quero lhe mostrar o mausoléu que fiz para a minha esposa.
- Muito bem feito, Senhor Xandico. Fique com Deus.
O delegado chega à delegacia. O inspetor disse-lhe:
- Chefia, o novo prefeito quer falar com o senhor.
- Pois é, Senhor delegado, não queremos um delegado que não consiga resolver um caso importante como o do “Um homem de coragem”. Pedimos ao governador que lhe remova, para outra localidade. E que seja nomeado um novo delegado, que tenha maior comprometimento com a cidade.
- Mas, Senhor Prefeito! Eu sou nativo de Sambra, além do mais sou delegado há mais de quinze anos desta cidade. O Senhor não pode fazer isso comigo.
- Já está feito delegado. Passar bem.