Oh ! Pedaço de Mim...

Oh ! Pedaço de Mim...

Conto de Luciano D’Medheyros

Dona Nilza Mendes, no alto dos seus 60 anos de idade, cabelos ralos e brancos; ela acima do peso, naquela noite de 1981, estava sentada na cama do quarto que pertencia ao seu falecido filho: Ludinho Mendes.

O armário do quarto estava ainda com todas as roupas do rapaz, que foi assassinado num sequestro em 1978, realizado por funcionários da família Mendes – todos os envolvidos ou presos ou mortos, a mando da família de poderosos pecuaristas daquelas cercanias.

O banheiro da suíte do quarto de Ludinho ainda continha o sabonete e os cosméticos já desgastados pelo tempo, mas ali presentes como uma espécie de culto que alimentava a dor da saudade de Dona Nilza.

O rádio de pilha e a radiola ainda estavam lá, com discos de Roberto Carlos e todos os das novelas da Rede Globo – além de dezenas de fitas K7.

O cheiro que vinha das roupas fazia com que dona Nilza chorasse copiosamente, abraçada com a camisa do filho, que foi enterrado no Cemitério Santo Amaro, num imponente túmulo ornado com mármore.

Ela buscava com as narinas o último odor de suor do tão amado varão da família.

Moravam, Dona Nilza e Lúdio Mendes, ainda na mansão da Avenida Afonso Pena, onde está o atual shopping campo-grandense. A mansão era uma das atrações turísticas da cidade, pois além de muito bela arquitetonicamente, no seu jardim circulavam animais silvestres, como emas, veados e capivaras – bem à frente, ao lado da garagem com dezenas de carros, caminhonetes e motos do patrimônio familiar.

O sentimento que ela tem é muito bem descrito na música Pedaço de Mim, de Chico Buarque de Holanda, quando cita: “...a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu...”

E era realmente isso o que tinha acontecido, como contaremos...

(...)

Ludinho era o filho adotivo do casal Nilza e Lúdio Mendes, família de políticos tradicionais do estado de Mato Grosso do Sul. Fora adotado de uma família de funcionários de uma de suas fazendas, no Pantanal, pois seu pai havia sido assassinado numa briga numa comitiva de gado. A mãe, pobre, com 10 filhos, não podia mais arcar com um filho a mais, de 3 anos, o qual Dona Nilza, já na menopausa, sensibiliza-se em adotar.

Os advogados da família Mendes providenciam os papéis e Ludinho, como foi apelidado, passa a ser um dos herdeiros de uma das maiores fortunas do Centro-Oeste do Brasil: uma quantidade de terras do tamanho do estado de Alagoas e vários imóveis, frigoríficos e casas comerciais.

Eram os Mendes grandes proprietários de casas de luxo, apartamentos em Campo Grande e Cuiabá, além de empresas frigoríficas na cidade de Campo Grande, promovida a capital do estado no fim dos anos 70.

Ludinho era aluno de uma escola tradicional da cidade, a MACE, na qual, aos 16 anos de idade, já ia ou com uma moto de 700 cilindradas ou um carro esportivo de 6 cilindros, com roncos ensurdecedores, que atraiam olhares de inveja e cobiça de várias pessoas.

Não havia uma jovem na cidade que não sonhasse em ser sua namorada. As que conseguiam tornavam-se tão populares que saiam até nas colunas sociais dos jornais locais.

Nunca foi um aluno aplicado, além de viver metido em arruaças e brigas – abafadas nas delegacias de polícia pela influência da família.

Arrogante por causa da fortuna do pai adotivo, sabendo que não precisaria trabalhar por décadas, era implacável com aqueles que ele não gostava.

Certa vez mandou atear fogo numa carro de lanches, cujo dono o tratara mal.

Porém, com remorso, diante do sofrimento da família do proprietário, que procurou a rádio da cidade para reclamar do jovem mimado, mandou dar a ele um restaurante, o que acabou virando lenda urbana em toda cidade.

Ludinho era atração em qualquer festa nas mansões ou sítios campo-grandenses, vestindo-se com um John Travolta da cidade provinciana, conforme os colunistas sociais o chamavam nos jornais diários da cidade. Era convidado para todos os acontecimentos da elite da cidade, na segunda metade dos anos 70, como nos clubes com suas luxuosas festas de debutantes, noivados e casamentos.

Certo dia, os funcionários de uma das empresas dos Mendes: Pedro e Maria começaram a traçar uma forma de extorquir os Mendes. Com a colaboração de dois policiais militares: João e Luiz, realizam os atos preparatórios da emboscada. Copiariam os métodos realizados pelos terroristas que estavam sequestrando embaixadores para trocar por presos políticos, muito comum naqueles anos de chumbo da ditadura.

Em agosto de 1978, ao chegar de madrugada, alcoolizado de uma de suas noitadas, Ludinho é arrastado com arma para dentro de uma Kombi. Ali estavam os policiais militares.

Ludinho passou 3 semanas amarrado num sítio a 90 km de Campo Grande, na cidade de Rochedinho. Era alimentado com todos os procedimentos para que não olhasse os algozes.

Ali, por meio de orelhões e muitas fichas, os funcionários dos Mendes mantinham contato com Lúdio, então senador pelo Mato Grosso do Sul, abafando a voz com lenço, pedindo resgate de mais de 10 milhões de cruzeiros (uma fortuna, a época).

Porém, num dia em que tiram o véu do rosto de Ludinho, para que ele pudesse almoçar, ele vê os dois funcionários da família e os cita pelo nome, xingando e ameaçando ambos, enfurecidamente.

Os policiais militares decidem então pelo seu assassinato, pois sabiam que as investigações estavam sendo conduzidas pelo então Delegado Flores, do DOPS de São Paulo. O temido delegado, que auxiliava os militares a encontrarem terroristas, foi pago por uma fortuna pelo senador Lúdio para investigar o sequestro, e foi o que fez: isso a base de torturas e compra de pistas.

O corpo de Ludinho é encontrado no córrego Prosa, nas cercanias de Campo Grande, com dois tiros na nuca.

O delegado Flores, por meio de suas investigações, chega nos dois policiais militares, os quais são barbaramente torturados e contam todo o plano. Os dois são enterrados ainda vivos, pela equipe de Flores.

Os funcionários dos Mendes são presos e julgados.

Porém, quando saem no indulto de Natal de 1981, são assassinados na frente da cadeia.

LUCIANO DI MEDHEYROS
Enviado por LUCIANO DI MEDHEYROS em 23/06/2018
Reeditado em 05/03/2019
Código do texto: T6371916
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