A Linguagem do Caos
I
A detetive Tânia observou a cena do crime friamente. Suas emoções a tinham deixado, diluindo-se num passado de insônias, de porres homéricos e solitários, no constante esgotamento físico e mental decorrente de tudo isso.
Tinha 35 anos e já era considerada uma especialista, reconhecida pelo alto índice de sucesso nos casos intrincados em que atuava.
Era de poucas palavras, poucos amigos e impaciente. Acreditava que suas deduções eram obviedades e não entendia porque viam alguma excepcionalidade nelas, embora por vezes chegasse a pensar:
— “Se vocês tivessem vivido o que vivi, veriam também a vida pela mesma perspectiva que eu. Não me educaram, me treinaram para a guerra.”
Esse provavelmente era o quinto homicídio do mesmo assassino. Fora designada para ajudar somente agora, pois a equipe estava num beco sem saída e tanto a imprensa como a população cobravam soluções. Ainda não estudara os quatro crimes anteriores.
Apesar da compaixão pela vítima, Tânia sentiu um impacto diante do tormento interior que pressentiu no assassino desconhecido.
Conseguiu perceber a explosão emocional que o levara a praticar os crimes, sua dor, frustração, complexo de inferioridade doentio, impotência e muita raiva, essa, disfarçada na limpeza do cena.
A vítima fora surpreendida em seu apartamento, onde vivia sozinha. Fora estrangulada e seu corpo jazia graciosamente sobre a cama. Uma cortina diáfana, aparentemente arrancada no momento do crime, cobria-lhe parcialmente a face, deixando à mostra os belos lábios entreabertos. Vestia um magnífico robe de seda em estilo oriental. O cinto do mesmo, mais do que uma arma letal usada para estrangulá-la, parecia um enfeite em seu pescoço.
Havia pouco sinal de luta e somente no quarto. Nada fora revirado, provavelmente não houve roubo.
II
Embora os detetives do departamento fossem um tanto lentos nas deduções, na investigação dos elementos envolvidos eram reconhecidamente bons. Dirigindo-se ao detetive Tomé que chefiava a equipe, Tânia perguntou:
— Quantas pessoas já foram investigadas desde o primeiro crime?
— Em torno de duzentas — respondeu Tomé.
— Pois concentrem-se nelas minuciosamente. Vocês já devem conhecê-lo, só não perceberam ainda — orientou Tânia.
— O que a leva a pensar assim? — questionou Tomé.
— Vocês provavelmente checaram todos os conhecidos possíveis e o véu sobre o rosto da vítima indica que é um conhecido. Não indica intimidade, mas certamente chegaram a conversar antes do crime — explicou Tânia.
— Pode ser... Não levaram nada, então, a intenção não era roubar — disse Tomé.
— Não houve roubo, mas ele levou algo. Provavelmente fotografou ou gravou. Este cenário foi todo pensado e montado — Tânia afirmava.
— Se ele criou um cenário foi bem sutil.. Como você pode saber? — perguntou-lhe Tomé.
— Entre outras coisas, há a questão da fotografia. Se você não conhece a espiral de Fibonacci, dê uma pesquisada e volte a estudar a cena no quarto — disse-lhe Tânia.
— Sem abuso sexual ou uso de muita força física, como você pode saber que foi um homem? — Tomé tentava entender.
— Sim. Um homem que passa despercebido, que despreza o ato sexual como ele é na realidade, mas que o idealiza, buscando dar-lhe uma beleza que ele julga faltar e, paradoxalmente, imortalizando-o... Diga-me Tomé, por menor que seja, existe algum fator comum aos cinco casos? — Tânia perguntou.
— Nem as vítimas, nem seus amigos se conheciam... — respondeu Tomé.
— Refiro-me às cenas, você esteve em todas... — insistiu Tânia.
— Mulheres relativamente bonitas vestindo belas lingeries, ou belos robes, uma envolta parcialmente numa toalha de banho, aliás, bonita e de grife cara. Eram solitárias e foram atacadas perto da hora das refeições. Nas cozinhas, indícios de que iam cozinhar... — Tomé falava quando foi bruscamente interrompido por Tânia.
— E vocês não viram conexão nisso?! — Tânia estava boquiaberta.
— Bom, todo mundo tem que comer, geralmente três vezes ao dia, então é um fato comum — justificava Tomé.
— Ok... — Tânia tentava ser paciente.
Diga-me, entre os ingredientes na cozinha e pela área, o que era comum a todos os casos?
— Sal e açucar... — Tomé percebendo que Tânia estava ficando mais irritada, puxou pela memória com mais afinco.
Havia um pouco de óleo sujando alguns móveis, e havia um pouco de farinha de trigo também.
— Pois peça ao laboratório para checar origem desses ingredientes. Não se surpreenda se o “DNA” de alguns deles indicar que vieram do mesmo saco ou fabricante — apesar de impaciente, Tânia estava se animando, afinal, uma prova material podia estar surgindo.
— Mas mesmo que... — Tomé não pode concluir, pois Tânia o interrompeu.
— Tomé, vou soletrar, ou melhor, desenhar para você. Sinto, mas um assassino em série está para fazer a sexta vítima, então, não há tempo para melindres. Primeiro, “nenhuma” mulher solitária cozinha só para si, no máximo, esquenta comida congelada no microondas. Ou ela esperava alguém ou esse cenário foi criado. Segundo, “nenhuma” mulher veste suas melhores peças de roupas, muito menos fica nua para cozinhar. De novo, indicação de cenário criado para despistar, porquê? Será que algum ingrediente culinário teria a função de se misturar a alguma partícula que porventura fosse trazida para dentro do apartamento no corpo do assassino? Só checando isso saberemos.
Procure na sua lista por um homem com idade entre 25 e 35 anos de idade, solitário, magro e de aparência frágil, trabalhador de indústria alimentícia com turnos estafantes, desenhista ou fotógrafo amador , ou ainda, que estuda artes. Sofreu maus tratos, tortura e muita violência, inclusive sexual, de quem deveria protegê-lo na infância. Como sofreu risco de vida, deve ter sido registrada alguma ocorrência policial. Posso estar errada num ou noutro ponto, mas o que te passei já é o suficiente para vocês encontrarem um suspeito. Verifique isso urgente. Corram! Fui... — assim dizendo, ela deixou o local.
III
Tânia sentia a cabeça latejar. Passava da hora de tomar suas doses diárias do Lexotan receitado há anos por seu psiquiatra, e das primeiras doses de vodka que se receitava, intercalando na semana com o dia do vinho, do rum, e os de cerveja ou coquetéis mais festivos, esses para quando se sentia de bom humor, o que era raro.
Fora criada sem afeto, debaixo de violência física, que afinal, era menor que a violência psicológica que a aleijara emocionalmente.
Estava preparada para caçar loucos, pois fora criada por loucos e sobrevivera. Reconhecia os sinais, conhecia a linguagem muitas vezes não falada, mas mesmo assim, tão ferina.
Como era difícil relaxar sem um cigarro entre os dedos, mas o médico fora taxativo:
— Faça seu testamento, despeça-se de familiares e amigos, ou, pare de fumar, e esforce-se para viver mais uns dez anos.
Surpreendera-se consigo mesma ao deixar de fumar. Escolhera a vida, mas para quê, perguntava-se. Para ver mais misérias humanas?
Talvez falte pouco... Uns cinquenta anos no máximo e todo o sistema moedor de almas humanas estará sucumbido — Tânia refletia com a mente já embotada pelo álcool.
Mas isso será bom? Um mundo sem regras morais, sociais e sem convenção alguma ditando o modo correto de se viver e obrigando a seguí-lo?
Quando todas as drogas forem legalizadas, a pedofilia e o aborto deixarem de ser crimes e tabus como o incesto deixarem a clandestinidade, quando todo mundo puder portar uma arma e atirar para matar à menor provocação, quando não houver mais união estável, mas parceiros múltiplos sem qualquer obrigação legal, quando crianças vivendo em ambientes abusivos nem se darem conta disso, afinal, tudo estará correto aos olhos da sociedade totalmente permissiva. Não havendo vitimização ou vergonha, ainda assim haveria sofrimento psicológico?
Sabemos se somos felizes ou infelizes mediante aferição por parâmetros criados por um sistema social?
Quando ruir o último tabu ou regra haverá paz?
Quando até o vocábulo “amor” cair no esquecimento, ainda haverá ciúmes de proprietário, ou cobrança dos filhos aos pais que antes tinham a obrigação de dá-lo?
Creio que sem as regras atuais a anarquia geral se instalará e isso será pior do que lidar com meia dúzia de sociopatas altamente periculosos, aparentemente, vítimas sociais das vítimas do sistema, mas estarei errada?
Cinquenta anos à frente... Nunca saberei. Minha alma atormentada já terá ido dessa para melhor — Tânia não conseguia mais pensar, o sono a dominava. Ouvia o sonido do celular ao longe, certamente seria Tomé avisando que efetuara prisão de um suspeito — sorriu quase roncando.
Ainda bem que descalçara as botas — pensou apagando em seguida. Sem banhar-se ou despir-se, vestindo ainda o pesado casaco, dormia encolhida. Sentia frio sem o aquecimento a gás, cortado por falta de pagamento pela segunda vez. De novo esquecera de pagar a conta...
FIM