ADRENALINA
Carlos Valente olhou para o infinito e ouviu o som da chuva e o tumulto no céu com raios e trovões. Limpou o rosto e seguiu caminhando no meio daquele temporal. Não podia parar, nunca, tinha que chegar rapidamente a um lugar mais seguro do que aquele descampado escuro. Não adiantaria parar, pensar outras alternativas, não havia outras alternativas, a decisão era única, caminhar, correr, para algum outro lugar. O gado estava escondido no meio do mato, naquela escuridão interrompida pelos relâmpagos que clareavam a terra. Valente enfrentava os pingos pesados e frios da chuva intensa, mastigava a água que caía sobre seu rosto vindo dos cabelos encharcados. Não desistia, aumentava os passos, corria um pouco, e quando cansava, parava e sentava no chão para respirar. Não havia fome, apenas pressa. Tinha que chegar a algum lugar. Tinha que voltar para a cidade, precisava ver as luzes das casas e prédios e ruas, precisava encontrar pessoas... Não podia desmaiar, levantava, sacudia os braços e a cabeça, mexia os ombros, arregalava e piscava os olhos, movimentava as pernas e reagia a musculatura do corpo ensopado para seguir adiante. Haveria de encontrar um abrigo provisório, acreditava, enquanto caminhava apressado na escuridão da pampa. Nenhum cavalo por perto para pegar o animal e sair galopando, nenhum carro abandonado para se proteger até o amanhecer, nenhum galpão caindo aos pedaços no caminho sem fim. Caminho sem fim. Caminho sem fim. Isso. Caminho sem fim a vida de Carlos, uma vida provisória, sem fim para as angústias, para as inquietações da mente, não do coração, Carlos não acreditava nesta metáfora do coração, para ele tudo era mente, carne, osso, músculos, órgãos, veias, células, átomos, o tremor do corpo molhado, o arrepio na espinha, o frio, a cegueira... O corpo em movimento constante para sobreviver... Sobreviver para quê? Viver para quê? martelava a pergunta na mente de Carlos ensopado, claro, uma sopa, sopa de legumes, com frango, com pedaços de carne, com triguinho, bem quente para esquentar o corpo gelado, imaginava Carlos em seus passos sem fim, passos sem fim, passos sem fim os da humanidade, os humanos desceram das árvores e caminham há mais de 3 bilhões de anos na terra, girando o planeta, inventando coisas, caminhada sem fim, eterna, da humanidade, de Carlos Valente, batendo dente, de frio, congelando na madrugada... madrugada sem fim...
O sol bateu nos olhos de Carlos, deitado na relva molhada. Acordou lentamente, com dor por todo o corpo, dor na cabeça... e uma incrível dor nas pernas. Tentou se levantar mas não conseguiu. Faltou força. Fechou e abriu os olhos. Deitado olhou a estrada embarrada, as coxilhas ao longe, ao longe os montes verdes e as matas verdes, as ovelhas e vacas, pastando, lentamente. Sede. A boca estava seca. Muito seca. Se arrastou até uma poça de água da chuva e bebeu com desespero. Água embarrada. Bebeu até se satisfazer.
Como estará a mulher distante? Como estará a filha de sete anos? Como estará o filho de 12 anos? Como estará o pai doente? E a mãe que tanto lhe cuidara na infância e adolescência? E o irmão, sobreviveu? Lembrava das contas do fim de mês para pagar, aluguel, luz, água, internet, cartão, prestação do carro... tudo em nome da mulher, a esposa parceira de todas as horas, amiga, companheira, amante, mãe dos seus filhos, cúmplice da existência... Como estarão os companheiros de trabalho? Como chegaria até seu povo? A chuva persistia e anunciava grande enchente na região. Carlos, caído, molhado, reunia forças para levantar o corpo, lembrava da última ação de trabalho para conquistar o dinheiro para entregar para a mulher, mais uma operação perigosa... Carlos impulsionou o corpo para cima, uma dor total nos ossos úmidos e enfim a caminhada sem rumo definido. Passos lentos. Passos lentos. Passos lentos.
Tiros, sirene, polícia correndo, carros fugindo, ação rápida. Carlos sai de dentro do prédio do banco da pequena cidade do interior com uma mochila. Entra em um carro e foge em alta velocidade para a saída da cidade. Perseguido por um carro da polícia consegue tomar certa distância. O motorista, o irmão, tomado de adrenalina, acelera muito e cuida no retrovisor a distância dos perseguidores que atiram contra eles. Carlos examina a mochila, cola no corpo e vê seu irmão perdendo o controle do carro em uma curva, rodopiando no asfalto, capotando várias vezes, seu corpo sem a proteção do cinto salta pela janela, tudo muito rápido, em segundos, voando, caindo no barranco, a mochila grudada no corpo... rolando pela relva, caindo em uma pequena lagoa de beira de estrada. Depois do estrondo e barulho de ferros arrastando no asfalto, veio o silêncio total que foi quebrado pelo som da sirene da polícia. Carlos Valente mergulhou. Mergulhou, mergulhou, mergulhou centenas de vezes naquela tarde, até o anoitecer. Quando voltava à superfície, ouvia as vozes dos policiais que cercaram o carro capotado. Ficou escondido na água todo o tempo em que os policiais procuravam pelos assaltantes que haviam atacado o banco cooperativo da pequena comunidade. Um pegaram dentro do carro. Outros foram presos horas depois em uns matos próximos da cidade, em outro carro. Faltava um. As testemunhas disseram que eram quatro homens, em dois carros.
Quando anoiteceu e o movimento cessou, Carlos saiu da água, quando começou a chuvarada, quando começou sua caminhada, com o corpo doendo, com pouca roupa, molhada, e com a mochila nas costas. Não desistiria. Tinha que levar adiante sua salvação. Precisava sobreviver. Caminhara na escuridão, no meio da chuva, até desmaiar, até ver seus olhos cegados pelo sol da manhã. Precisava continuar fugindo, pelo meio do campo, atravessando cercas, até um abrigo provisório. Encontrou uma tapera, uma casa velha, abandonada, com algumas paredes caídas, com um teto de zinco enferrujado, ao lado de umas laranjeiras. Antes de deitar e tentar se aquecer com uns sacos de estopas atirados em um canto, Carlos catou umas laranjas que devorou com os dentes. Ficou deitado. Encolhido. Enrolado nos sacos, por horas. A mulher, distante, aflita. A filha, crescendo, cada vez mais bonita. E o filho, um rapazinho, esperto. Bom de matemática. Queria ser engenheiro. Diziam que um engenheiro, em São Paulo, pode ganhar mais de 20 mil por mês. O pai, idoso, na luta contra um tumor maligno no pulmão. O velho fumou a vida toda, enquanto vendia sua força de trabalho no cais do porto da capital. Aposentou-se por idade, com um salário mínimo. Dependia exclusivamente do atendimento médico público, enfrentava a burocracia e a demora do tratamento, estava morrendo, ao lado da velha guerreira que criou oito filhos num barraco na vila. Todos trabalhadores. Garçons, mecânicos, torneiros, secretárias, cozinheiras... Uns viraram bandidos. Assaltavam bancos. Mas só bancos, dizia Carlos para a mulher que administrava o orçamento familiar. Explodiam caixas eletrônicos. Entravam nas agências do interior, onde o policiamento era mais fraco. Mostravam as armas para amedrontar. Carlos salientava que nunca atirou em ninguém. Nunca foi preciso. Já vi colegas atirando em guardinhas, contava para a esposa. Argumentava que dinheiro dos bancos tinha seguro, era uma mutreta entre os grandes, não prejudicava o povo, que era até revolucionário, tipo Robin Hood, tirar dos ricos para distribuir para os pobres, os pobres dele, do Carlos Valente, a mulher pobre, os filhos pobres, os pais pobres, os irmãos pobres, as amantes pobres, os pobres donos de mini-mercados e botecos na vila onde viviam, pobres. Pobres, mas trabalhadores! Tinham este orgulho. Trabalhadores. Escravos de um sistema que gerava a desigualdade constantemente. Era um profissional do crime, do enfrentamento contra o estado e a burguesia dominante, profissional do desvio de conduta, sobrevivente da desigualdade social e econômica. Um mutante na selva de pedra ou solto no campo, fugindo no campo, molhado, quebrado, vulnerável, deitado numa tapera, casa velha caindo aos pedaços de tempo.
“Acorda, homem!”
“Acorda, cara!”
“Tu não tá morto, tá?”
Carlos Valente abriu um olho e agarrou num golpe só, certeiro, o rapazinho magro que o abordava. Mesmo com os ossos doídos, teve energia para se defender de um imaginário perigo. Não queria ser preso. Não queria voltar para as celas dos presídios imundos do Brasil. Esteve preso, por roubo a bancos. Trabalho arriscado. Passou dois anos na cadeia. Pra sair teve que pagar caro, ainda estava pagando, assaltando para a organização, pois não levava todo o dinheiro roubado dos cofres dos bancos e caixas eletrônicos. Vendendo a força de trabalho também, como o pai fez no cais, como outros milhões fazem todos os dias no mercado, vendem o principal da vida, o tempo de existência. Agarrou e deitou o alemãozinho frágil que lhe acordou das lembranças.
“Tu tem carro? Tu tem carro?” perguntou Carlos ao rapaz assustado.
“Sim. Sim. Mas quem é o senhor, deitado aqui nesta tapera? Pensei que estivesse morto. Entrei para catar umas laranjas...”
“Que merda! Me escuta! Preciso sair daqui, estou muito doente. Teu carro é bom?”
“Mais ou menos. Eu vou lhe ajudar, mas me solte, preciso respirar.”
“Ok. Me ajude a levantar e me leve para o carro. Meu carro fundiu o motor lá adiante, vim caminhando, peguei a chuvarada, achei este abrigo, cansei mesmo!” mentiu Carlos Valente enquanto era conduzido. Meteu a mão dentro da mochila, pegou sua pistola e duas notas molhadas de 100,00. Olhou para o jovem à sua frente e disse: “Agora você vai fazer uma viagem longa comigo. No primeiro posto tu enches o tanque com este dinheiro. O troco é teu. Antes que alguém retrucasse esta ordem, Carlos apontou a pistola para o alemãozinho mais assustado ainda. “Entendeu?” Subiram no carro, abasteceram no posto mais próximo e seguiram rumo à capital. No caminho comeram pastéis com refrigerantes em lata, comprados no posto. Carlos meteu a mão dentro da mochila e tirou duas notas de 100,00. Colocou no painel do carro. Mandou o sequestrado ir entrando nas ruas e becos até chegar num determinado local. “Para o carro aqui mesmo!” e desceu. “Te manda, antes que tu morra!” O carro sumiu nas ruelas da vila. Carlos olhou ao redor, já estava escuro, e percebeu a calma de sua rua, uma rua calma naquela vila, a casa do pai lá no fim da rua, ou seria o início da rua, sabe-se lá, pela numeração dava para concluir, bateu na porta e a mãe abriu, assustada, disse que o irmão estava todo quebrado num hospital, cercado de guardas. Mas ele precisava ver o pai, trocar um olhar, dar um abraço, perguntar como ele estava de saúde, podia ser a última vez e fez isso, corr3endo o risco de ser preso, depois abraçou a mãe, pegou a mochila, tirou 30 notas molhadas de 100,00, deu para a velha e foi. Foi até a casa mais adiante, a sua, entrou pela porta da frente, beijou a esposa aflita, a menina bonita e o filho que vai ser engenheiro. “Amo vocês!” Pegou 100 notas de 100,00 e entregou para a mulher. “Administra. Me encontra amanhã no centro, naquele nosso hotelzinho de fuga, às 11. Quero dormir. Chama um táxi agora, vou embora, a polícia está chegando. Quero outro beijo. Beijão. Amanhã matamos a saudade”. Pegou a mochila e partiu. Pilhado, cheio de dores, adrenalina a mil, que trabalho duro, perigoso, um dia cai ou morre, sonhava com aposentadoria, talvez um dia, teria que descontar para a previdência como autônomo, tinha que sair daquela vida, daquela vila, já tinha uma poupança, mas só quando o pai morrer, vai morrer um dia, e deixaria a mãe com a irmã, levaria a mulher e os filhos, mas não podia se demitir, podia mudar de vila, de cidade, era prudente, quem sabe morar no litoral, nada mal, não poderia visitar o irmão, a organização já sabia que ele sobreviveu a esta operação, estava atrás da parte dela, ele ia entregar, não queria ser executado pelos colegas, sabia pra quem entregar a mochila, desceu no centro, entrou no hotelzinho, pagou adiantado pra uma semana, saiu, comprou remédios, comeu, bebeu uma ceva, voltou para o quarto com banheiro e tomou um banho quente. Voltou para a cama e apagou.
Manchetes de jornais, tv e rádios davam conta de que mais uma quadrilha de assaltantes de bancos tinha sido presa; Porém, o dinheiro não tinha sido recuperado. Estava na mochila, com Carlos, numa espelunca, embaixo da cama.
“Eu nunca atirei em ninguém, ainda não foi preciso”, disse Valente para sua mulher, às 11 e 30, deitados e abraçados, sob as cobertas, matando a saudade sexual. Nesta hora, a adrenalina estava controlada. Ficar abraçado e conversando sobre os filhos, os projetos, a vida, com aquela mulher, era mesmo agradável, queria eternizar aquele momento, congelar o tempo, mas não dá, cada segundo é finito. Carlos beijou a mulher mais uma vez. Estava exausto de tanto amar. Aliviado. Mas estava sendo perseguido pela investigação policial. Era perigoso ficar muito tempo no mesmo lugar. A mulher tomou um banho, se vestiu e deixou o quarto depois de se despedir de seu homem. Deixou o celular para seu homem, o dele tinha molhado e estragado, compraria outro, em seguida, no caminho, indo para casa cuidar dos assuntos, esperar pelo contato com ele, a qualquer instante, imprevisível, vida provisória, mas era a vida que tinha, tensa, mas com a bolsa cheia de notas de 100,00, molhadas. Tinha que fazer render. Não sabia quando o marido voltaria a trabalhar. Estava de quarentena. Perseguido. Quem sabe viajaria para longe, para dar um tempo. Ninguém sabe. Nem ele, muito menos eu, pensava Maria, pegando o ônibus, secaria as notas e depositaria aos poucos, todos os dias, numa conta poupança. Carlos levantou e foi dar uma banda pela cidade. Se mexer. Era preciso. Caminhar anônimo pela metrópole, comprar um óculos de sol, cortar o cabelo, fazer a barba, comer nos restaurantes, ir ao cinema para passar o tempo, sempre com sua mochila ainda úmida. No meio da multidão. Ninguém desconfiava quem era aquele cidadão. Entrou num bar no Mercado Público e pediu, com educação:
“Me serve um café preto, bem forte, faça o favor, com adoçante!”
Conto publicado no romance Adeus, Sul, 2014.