A Enfermeira e o Sargento
— Então vocês se conheceram durante a guerra? — eu segurava as cartas, escritas em letra miúda e ligeira.
— Sim, detetive Vico. John estava aquartelado em Liége, e eu estava na mesma cidade com o Corpo de Enfermeiras do Exército. Um amigo dele foi baleado durante um ataque alemão e John o levou até o hospital. Foi quando nos conhecemos.
— Amor à primeira vista, imagino? — eu ri.
— Eu sei que pode parecer tolice, detetive, mas foi exatamente isto. Em meio a tanta desgraça, quando meus olhos se encontraram com os de John, descobri que havia encontrado o homem da minha vida.
— E você não tentou procurá-lo depois de a guerra haver acabado?
— É aí que está o problema, eu nem saberia por onde começar. Nós trocamos correspondência quando John foi deslocado para Antuérpia, mas, depois de um mês, não recebi mais resposta alguma dele. Não tenho idéia de onde ele possa estar.
— Você tem noção de que este tipo de investigação pode custar caro, Linda?
O semblante dela denunciava que ela não entendia o porquê do alto custo.
— Se ele estiver vivo, talvez eu seja obrigado a me deslocar para outras cidades, atrás de alguma pista do paradeiro dele.
— Ah sim! Mas não precisa se preocupar... Minha avó faleceu recentemente e me deixou um dinheirinho. Eu pretendia fazer outras coisas com ele, mas se for para encontrar John, vale a pena.
— Já faz tanto tempo que a guerra acabou, o que você espera descobrir sobre John?
— Não sei... — as mãos de Linda tremiam — Eu esperei por ele todos estes anos... Gostaria de saber que ele também fez o mesmo.
O ser humano é um bicho curioso, vive por causa de sonhos, é avesso à realidade.
— E se ele não a houver esperado? — indaguei, por mera curiosidade.
— Ah, detetive, o meu John me esperaria!
Fui ao arquivo do Exército naquela mesma tarde, uma gorda de óculos estava sentada numa escrivaninha. Quando eu abri a porta, ela me olhou de cima a baixo, fulminando-me. Aproximei-me, a gorda fingia indiferença.
— Que lindos brincos os seus... — comentei, nada melhor do que jogar com a vaidade feminina, pois até aquela mulher horrenda deveria ter um pingo de vaidade.
A gorda abriu um sorrisão.
— Você acha?
— Claro que sim. Eles combinam com seus olhos — neste ponto, eu não precisava mentir, os olhos azuis da gorda eram a única coisa bela naquele corpanzil.
Os olhinhos piscaram contentes.
— Como posso ajudá-lo? — ela sorria, numa mudança drástica de comportamento.
— Eu estou procurando por um sargento. Ele era da minha Companhia, e eu gostaria de obter informações sobre o paradeiro dele.
— Claro, claro. Qual o nome dele?
— John Morris.
Com sofreguidão, a gorda se levantou e entrou numa saleta envidraçada, revirou alguns arquivos e dum deles retirou duas pastas.
— Há dois sargentos com este nome — ela retornou — um da Divisão de Engenharia, morto em combate em Antuérpia, outro do Corpo de Pára-quedistas, ferido em combate também em Antuérpia.
— Estranha coincidência, não? — resmunguei.
Ela me estendeu as pastas:
— Reconhece algum deles?
Os dois Johns eram bastante parecidos. Cenho franzido, neguei.
— Eu não saberia dizer, após todos estes anos. A memória é traiçoeira...
A gorda sorriu.
— Faz-me um favor? — perguntei — Posso ter uma cópia destes documentos?
Imediatamente a gorda se postou diante da máquina-de-escrever e me datilografou uma cópia.
O cemitério onde o primeiro John Morris estava sepultado era perto, cerca de uns dez quilômetros da cidade. Esta foi minha primeira parada. Visitei o túmulo dele, mas nenhuma informação relevante obtive ali. Na ficha deste John, havia um endereço, também naquela região.
Encontrei-me com os pais dele:
— Como sentimos falta do nosso John — eles murmuravam incessantemente, sempre que eu mencionava o nome do filho. Porém, eles nada sabiam sobre um relacionamento amoroso entre John e uma enfermeira, durante a guerra. Até acharam estranho o fato, pois John tinha uma namorada, para a qual escrevia cartas quase que diariamente.
Porém, eu não estranho nada; quantos casos não investiguei de maridos que dizem a cada quinze minutos que amam as esposas, e repetem o mesmo com as amantes?
O outro John Morris morava, segundo o arquivo, há trezentos quilômetros. Jantei num restaurante de beira de estrada e viajei durante a noite.
Cheguei cedo à casa de dois andares, varanda e cachorro latindo no quintal. Bati à porta e fui atendido por uma mulher.
— Procuro por John Morris. Ele mora aqui?
— Sim, vou chamá-lo — foi a resposta. A mulher desapareceu e logo surgiu um senhor, por volta dos quarenta anos, claudicando e auxiliado por uma bengala.
— Olá, Sr. Morris, meu nome é Vico e eu sou repórter da “Tribuna de Notícias”. Estou preparando uma reportagem sobre veteranos de guerra e encontrei seu nome nos arquivos do Exército. Você se importaria em responder algumas perguntas?
John Morris aquiesceu, até com um certo lisonjeio.
Sentamo-nos na varanda e a esposa dele nos trouxe um refresco, mas teve o bom tom de nos deixar a sós.
John Morris me contou sobre como seu pelotão de pára-quedistas saltou atrás das linhas alemãs, foram cercados, escaparam, se reagruparam e conseguiram minar as defesas inimigas, depois sobre sua participação da Batalha do Bulge, quando as forças do Eixo tentaram um contra-ataque e ele, em Antuérpia, foi alvejado por um tiro de fuzil na perna e afastado do combate. Eu, por minha vez, falei do tempo em que servi na Marinha, na Campanha do Pacífico e como torpedeamos encouraçados japoneses. É óbvio que não falei que fiquei na ativa por apenas três meses, e, depois, passei quase um ano numa prisão militar por insubordinação, pois este não é o tipo de coisa que um sargento condecorado gostaria de ouvir.
Em pouco mais de uma hora, eu e John já éramos praticamente amigos de infância.
— E me diga uma coisa, John, — perguntei — e sobre os amores de guerra, foram muitos?
Pela primeira vez, notei que havia tocado uma ferida aberta; o olhar de John se embaciou, desaparecendo no horizonte.
— Muitos? Não, apenas um — havia tristeza na voz dele.
— Importa-se em me contar como foi?
Foi então que me certifiquei de que este John Morris era o John Morris que eu estava procurando, o amor desaparecido de Linda. O que se seguiu não foi novidade, eles se encontraram no Hospital em Liége, fizeram amor pela primeira vez entre os escombros duma casa, corresponderam-se e ele foi ferido em batalha.
— Mas entenda, Vico, eu tinha uma noiva antes de ter partido para a guerra. Eu tinha um compromisso. Na guerra, tomamos várias atitudes que não podemos tomar quando tudo se assenta. Eu amo... — John pigarreou — eu amava Linda; tenho certeza de que seria muito feliz com ela, mas eu tinha uma vida aqui. Não era algo para se jogar fora. Sou feliz, Vico, tenho uma esposa maravilhosa, um filho que logo estará na faculdade. Linda também deve ter se casado e tido filhos. Assim é a vida.
— E se vocês se reencontrassem, hoje? — indaguei, ainda comovido com a história de John.
— Isto seria devastador para mim... Talvez... — John hesitava — Tudo pelo que lutei seria posto em cheque. Melhor nem pensar na hipótese. Sou feliz como sou.
Passei a tarde na casa de John, vi retratos de família, conheci seu filho, ele realmente tinha motivos para ser feliz.
Chamei Linda até o escritório.
— Não tenho boas notícias para você, Linda.
Os olhos da enfermeira se encheram d’água.
— Pode falar, detetive, estou preparada... — porém, evidentemente, ela não estava — John está morto, não está?
— E se ele estivesse vivo? — questionei.
— Ele teria me procurado...
— E se ele tivesse mulher e filhos? — insisti.
— Não, ele jamais se casaria com outra mulher! Ele disse que me amava — Linda se desesperava.
Abri a gaveta da minha mesa e meus dedos correram por sobre as duas pastas, uma com o John morto, a outra com o John bem vivo. Apanhei uma delas e entreguei a Linda.
— Sinto muito, John morreu em combate.
Sem nem mesmo ler a ficha, Linda desatou a chorar.
— Obrigada, Vico, aqui está seu dinheiro — ela pôs um envelope sobre a mesa.
— Só mais uma coisa, Linda. No arquivo do Exército, havia uma carta endereçada a você. John não teve tempo para entregá-la, morreu antes, mas é para você.
A carta estava amarelada, amassada e manchada de sangue. O rosto de Linda se iluminou.
— Obrigada! — e, correndo, ela deixou meu escritório.
Quando me encontrei com John, ele mencionou esta carta, estava no bolso da calça que usava ao ser baleado. Implorei para ficar com ela, John titubeou, mas, no fim, confiou em mim. É óbvio que a li, e nela John repetia uma dezena de vezes a importância de haver conhecido Linda, de como a amava e que como haveriam de ser felizes juntos. Seria uma ótima despedida para Linda, quem sabe ela pudesse tocar a vida adiante depois disto.
Espiei pela persiana e vi Linda lá embaixo, na esquina, carta aberta nas mãos, escrita ligeira e miúda, num desamparado choro de alegria.
O ser humano é mesmo um bicho estranho, sempre prefere uma mentira que o faça sonhar.
(Extraído do livro "O Covil dos Inocentes" - www.covildosinocentes.blogspot.com)