O homem do chapéu negro

O HOMEM DO CHAPÉU NEGRO
(As aventuras de Sherlouco Zolmes e o Dr. Bestatson)
Miguel Carqueija


Numa tarde fria e chuvosa, em que tudo parecia pegajoso, estávamos eu e meu amigo Sherlouco Zolmes sozinhos no escritório, sem muita coisa para fazer, pois ultimamente não surgira nenhum caso. Sherlouco encontrava-se numa das suas fases introspectivas e sua atitude era simplesmente recostar-se na poltrona púrpura, com as mãos cruzadas sobre as pernas, e ficar de olhos fechados, ignorando tudo. Nessa hora nem música ele admitia, e tudo o que eu podia fazer era entreter-me com algum livro. Eu pegara uma velha edição da Argonauta, “A astronave pirata” de A.E. Van Vogt, mas lamentavelmente a cada página a história ia ficando mais chata. De vez em quando, ansioso por alguma conversa, eu olhava para o meu letárgico amigo, que porém continuava na mesma postura, quase tão imóvel quanto a múmia de Tutankamon.
Subitamente a campainha tocou.
Sherlouco, que estava mais próximo da porta, ergueu-se e foi atender. Cautelosamente espiou pelo olho mágico e o que viu pareceu surpreendê-lo.
— Quem é? — perguntei, intrigado.
— Não sei. Um homem de sobretudo preto e chapéu preto, gola levantada, quase não se vê sua cara.
Sherlouco utilizou o tubo acústico:
— Quem é, por favor?
— Eu sou o Homem do Chapéu Preto — fez-se ouvir uma voz roufenha, que me deu calafrios.
— Hein?
— Você não é surdo e me escutou muito bem.
— Meu caro, eu não tenho tempo para brincadeiras e pegadinhas. Se você não tem o que fazer, dê o fora.
— Você tem que abrir para que eu entre.
— Primeiro se identifique.
— Já falei que sou o Homem do Chapéu Preto.
— Isso eu já sei, mas com certeza não é esse o nome que consta na sua carteira de identidade.
— Não importa. Não vou lhe dizer o meu nome verdadeiro.
— Mas quem é você afinal, além de ser “o homem do chapéu preto”?
— Eu sou seu inimigo, Sherlouco. De você e do idiota que conta as suas aventuras e deve estar aí do seu lado, como um paspalhão, escutando a nossa conversa.
— O QUEEE??? — não pude deixar de exclamar.
— Não falei? — e a voz sinistra mudou para uma risada medonha e asmática, como a do banqueiro macróbio de “Mary Poppins”.
— Sabe — começou Sherlouco, deliberadamente calmo — imagino que o senhor seja um caso para o psicanalista, contudo...
— Não ganhará nada com ofensas ou zombarias, cara. Abra logo a porta, estou perdendo a paciência.
— E se eu não abrir? Afinal você não é propriamente uma visita amigável.
— Se você não abrir espalharei pela internet que o grande Sherlouco Zolmes não passa de um covarde.
— Isso não me importa. Já me chamaram de coisas muito piores.
— Não posso acreditar! Não tem nem a curiosidade de ver quem eu sou?
— E por que haveria de ter? Não sou um mortal comum.
— Não, é claro que não. A sua estupidez está bem acima da média.
— Bem — replicou Sherlouco, ignorando o insulto — como eu não vou mesmo abrir, já que não lhe devo obediência, temos uma alternativa: você fala através do tubo e me diz o que deseja.
—Mas onde é que está o seu pundonor, homem?
— Não seja anacrônico. Hoje em dia ninguém mais usa essa palavra.
Em resposta o desconhecido pronunciou em rápida sucessão várias palavras que com certeza são muito usadas, mas que eu não posso reproduzir aqui. Sherlouco aproveitou a deixa e fez-me um sinal para que eu me aproximasse. Quando atendi ele me sussurrrou: — Chame a polícia agora.
Fiz que sim com a cabeça e fui para o canto oposto, e do meu celular fiz a ligação para o número da polícia — que deu sinal de ocupado.
— Vai abrir ou não? — a voz do intruso berrava.
— Abrir para você? Me dê uma boa razão.
— Se você não abrir eu vou me plantar aqui fora, esperando.
— Previno-o de que não existe banheiro no corredor — ironizou o meu amigo.
Confidenciei ao detetive que não conseguira realizar a ligação e Sherlouco, pensando depressa, falou em voz alta:
— Bestatson, interfone para o porteiro e peça para ele vir aqui depressa!
— Está bem! — berrou a voz ameaçadora. — Eu vou embora por hoje, mas isso não vai ficar assim! Ainda vou tratar com você olho no olho!
Ele se foi pisando ruidosamente. Passados alguns instantes Sherlouco e eu saímos munidos com nossas armas, o sujeito porém já não se encontrava. Uma rápida investigação junto aos ascensoristas e porteiros deu conta que o homem de chapéu negro realmente fôra visto, mas saíra bufando e se perdera na multidão da rua.
— Que coisa mais estranha, Sherlouco...
Ele deu de ombros e mostrou seu sorriso discreto e confiante:
— Não se preocupe, Bestatson. Tornaremos a ouvir falar dele... espere e verá.

(Rio de Janeiro, 23/3 a 1/9/2017)


NOTA: esta é a primeira história da série de Sherlouco Zolmes com o Dr. Bestatson. Como é óbvio trata-se de uma paródia ao Sherlock Holmes e Dr. Watson criados pelo autor britânico Conan Doyle.

imagem pixabay
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 01/09/2017
Reeditado em 01/09/2017
Código do texto: T6101609
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