1000-CRIMES AO BADALAR DOS SINOS
Os empregados da Loja Central talvez tivessem ouvido os disparos de revólver, barulho confundido com o badalar festivo dos sinos da igreja matriz de Ventoleve ao meio dia. O certo é que era já uma hora da tarde quando os quatro atendentes, notando a ausência de Dino e de Zaura, pediram Noêmia que subisse até o escritório, no segundo pavimento, para relatar as faltas ao senhor Giordano.
Então, sim, ouviram muito bem o grito de Noêmia, que desceu a escada de madeira desabaladamente, com perigo de cair. Gritava histericamente e só quando foi amparada pelos colegas é que pronunciou algumas palavras compreensíveis.
— O senhor Giordano... Dino... então... estão ... estão lá em cima... mortos!
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A Loja Central era a mais importante e bem sortida da cidade de Ventoleve. O proprietário, Giordano Magnani, imigrante italiano, era homem de visão e viajava constantemente a São Paulo para comprar diretamente dos grandes atacadistas as novidades em roupas masculinas e femininas e tecidos. Então observava as grandes lojas da capital, para introduzir na sua própria lojal os melhoramentos que eram feitos pelos comerciantes da metrópole.
A loja tinha estilo, com três vitrinas que se apresentavam para a praça, expondo amostras de tecidos, sapatos e roupas; e três largas portas pra acesso da clientela. . Era dividida internamente em dois setores: o feminino, atendido por três moças bonitas e sempre sorridentes – Noêmia, Izaura (Zaura) e Leonor;; o setor masculino a cargo de três homens elegantes e sempre bem vestidos, com camisas brancas de mangas compridas e gravatas, calças petas e sapatos lustrosos — Leopoldino (Dino), Amaral e Jonas.
Tecidos, roupas, calçados, perfumaria, chapéus, lingerie e muitos outros itens constituíam o estoque da loja, cuja clientela era a elite de Ventoleve, atraindo também muitos fregueses das cidades vizinhas.
Assim, naquele dia de julho de 1960, era, sem sombras de dúvida, a melhor loja de artigos para homens e mulheres, em toda a região de Ventoleve.
O senhor Giordano exigia o tratamento de “senhor” e ficava muito feliz quando algum cliente ou alguma senhora o chamava de Sinhore Giordano. Conseguia até bons descontos na compra quem o bajulava com um “sinhore”.
O segundo pavimento do sobrado era a casa residencial do senhor Giordano e família. Bem no fundo, separado dos cômodos da residência por um largo pátio cimentado, ficava o escritório. Alí, o dono ia de manhã, após abrir a loja, permanecendo apenas uma meia-hora Voltava após o almoço e tirava um cochilo de outra meia-hora; e à tarde, após o fechamento da loja, para receber a féria do dia, levada por Izaura, a encarregada do movimento do caixa. Os funcionários saiam ás seis da tarde, exceto Izaura, Ela subia ao escritório com o dinheiro e lá permanecia por vezes meia-hora, e muitas vezes por mais tempo, acertando as contas do caixa do dia.
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Ao ouvir as palavras gaguejadas por Izaura, Amaral subiu a escada em três lances. Pela porta aberta do escritório viu a cena de horror: o patrão sentado, o corpo tombado para frente, sobre a sua escrivaninha, com um filete de sangue escorrendo da cabeça. No chão, retorcido como se estivesse ainda sentindo dores angustiantes, Dino sangrava de um ferimento na barriga.
Fechou a porta e desceu aos saltos, a escada e dirigiu-se ao telefone, enquanto ordenou aos colegas, com voz autoritária:
— Vamos fechar a loja. Ninguém sai e ninguém entra.
Discando rapidamente os números da delegacia de polícia, disse ao fone:
— Delegado Davanti? Por favor, aqui é da loja Central. Venha depressa.
— .... .... ... ???
— Sim, é caso de morte. Dois. Aqui na Loja Central.
— ??? ...!!!...
Devolveu o fone ao seu local no aparelho, dizendo:
— O Delegado já vem.
Noêmia e Leonor estavam nervosas quase chorando. Jonas passava as mãos pelo rosto e cabelos.
— E a Zaura? Cadê ela? — Perguntou Jonas sem se dirigir a nenhum dos colegas.
— Vamos ficar calmos. Jonas, fique com uma porta semi-aberta e espere a chegada do delegado Davanti..
O delegado não demorou chegar, em seu velho jipe de capota arriada. Desceu acompanhado por um rapaz que trazia sob o braço um livro de capa preta. Foi direto e curto:
— Sou o delegado Davanti e este é meu ajudante, seu Ananias, o escrivão da delegacia.
— Entre, delegado. Por aqui. – disse Jonas, apontando o local onde estavam os colegas.
Depois que todos se apresentaram mutuamente, Amaral indicou a escada e apontou para a porta do escritório, dizendo:
— Estão lá.
Antes de subir e a escada, o delegado ordenou:
— Seu Ananias, fique aqui embaixo. Vocês permaneçam calmos, mas não saiam daqui.
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O senhor Giordano morava, como já se revelou, no segundo pavimento do prédio. Tinha entrada independente que ficava na rua lateral á praça: um portão de grades de ferro e um pequeno jardim antecediam uma escada de vinte e poucos degraus, de mármore. Um pórtico coberto por viçosa trepadeira florida no topo da escada abrigava a porta de entrada à residência.
A esposa, dona Angelina e o casal de filhos — André, de quinze anos e Loreta, de treze — habitavam “o lar, doce lar”, que iria se revelar, não era tão doce como aparentava. Uma empregada era encarregada dos afazeres da casa, de tal forma que a esposa vivia tranquilamente lendo romances, escrevendo cartas para suas amigas residentes em Ribeirão das Rochas, de onde era natural. André estudava no último ano do curso ginasial e Loreta frequentava o colégio das freiras.
No fundo da casa, um pátio cimentado: era local para muitos vasos de folhagens e uma parte coberta por uma pérgula onde viçosa parreira proporcionava uma sombra agradável nas tardes de verão.
Um cômodo se erguia mais ao fundo, uma porta para o pátio da qual só ele tinha a chave e permanecia sempre fechada. Era ali escritório do senhor Giordano. Dentro, havia uma escrivaninha com uma cadeira de espaldar alto, três armários para guarda de documentos, uma pequena mesa com máquina datilográfica e duas poltronas estofadas. Outra porta dava acesso à loja, aonde se chegava por uma escada de madeira. Móveis comuns, sem estilo determinado, envernizados, escuros. Na parede esquerda, dois quadros de aproximadamente um metro por oitenta centímetros. Atrás de um deles, havia um cofre, cuja existência apenas Giordano sabia.
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Davanti abriu a porta usando um lenço para girar a maçaneta. Sabia que ali haveria impressões digitais, e não queria que as sua fossem se misturar às demais. A cena que se lhe revelou era dantesca, mas ele não se assustou. Tombado sobre a mesa, o corpo do senhor Giordano e no chão o corpo de um rapaz.
Caminhando com cuidado, pois sabia da importância de não interferir nas possíveis pistas pelo chão, móveis e paredes, verificou que o rapaz não estava morto, apesar da grande mancha de sangue sobre as taboas do assoalho. Já o corpo do velho com um orifício na fronte esquerda, não lhe deixou duvida: estava morto. A ferida mostrava que o disparo havia sido feito bem de perto.
Quem atirou estava muito próximo ao velho, pensou. Mas foi impossível determinar o ângulo do projétil que atingira o moço, pois, evidentemente, era um rapaz.
Rapidamente voltou à porta, onde gritou:
— Chamem um médico. Depressa. Tem um ferido em estado grave.
Davanti examinou os móveis, abriu gavetas e armários. Em uma das paredes, atrás da cadeira que seria ocupada por Giordano, viu os dois quadros. Descobriu facilmente que atrás de um deles havia um cofre. Fechado, mas sem o segredo. O delegado abriu: dentro estava um pacote de notas de Cr$500,00 sobre papéis diversos: ações, contratos, e outros, sobre os quais Davanti passou rapidamente uma vista de olhos.
No chão, imóvel, Dino gemia. Parecia delirar.
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Do lado de fora da loja algumas pessoas estavam se reunindo defronte às portas cerradas. É incrível como as notícias ou boatos correm pelas cidades, grandes ou pequenas. Murmuravam comentários sobre uma tragédia que havia ocorrido na loja.
Davanti aguardou a chegada do médico para, em seguida, ir até a parte residencial. Entrou pelos fundos,já que vinha do escritório. Alí ninguém havia percebido a movimentação desusada na loja ou no escritório. Informou à mulher (que reagiu histericamente, com gritos lancinantes). A empregada começou a chorar. Loreta e André, filhos do casal, ficaram muito espantados, talvez nem se dessem conta do que realmente havia acontecido.
— Por favor, não saiam de casa. Logo virei conversar com vocês novamente.
Evitou dizer interrogar a fim de evitar constrangimentos e até mesmo que algum suspeito se evadisse.
Quando o médico chegou, constatou que Leopoldino estava vivo, inconsciente e foi rapidamente mandado para o hospital, na ambulância mal conservada. Foi direto para a sala de cirurgia e imediatamente operado.
O corpo do senhor Giordano Magnani foi levado para o Cemitério Municipal, pois não havia médico legista nem laboratório para exame de corpos de mortos em acidentes ou sob suspeita de crime.
— Os ferimentos indicam que o ocorrido foi há mais ou menos duas horas, ou seja, logo depois do almoço. — assegurou o médico.
O delegado Davanti ia ditando tudo o que fazia, que examinava, as declarações dos presentes, para o escrivão, que anotava diligentemente e com rapidez no livro de capa preta., O resto da tarde Davanti gastou nas diligências, examinando o escritório, a arma, com interrogatórios dos empregados e se inteirando de quem era quem ali na loja e de suas relações com o patrão.
— E onde está essa funcionária de que vocês tanto falam? Izaura? Está de férias?
— Pois é, disse Amaral. — Ela chegou de manhã, trabalhou até a hora do almoço e ninguém mais a viu. Ninguém viu Zaura saindo para o almoço, nem voltando, nem nada. A gente notou a falta dela, e do Dino... do Leopoldino... aí pelo meio dia e meio, meio dia e quarenta, então Noêmia subiu a escritório para avisar seu Giordano e encontrou o que o senhor viu.
Voltando à residência, encontrou as quatro pessoas que permaneciam na sala: Dona Angelina abraçava a filha Loreta, ambas num choro soluçante. A empregada, sentada no sofá,segurava a mão André, também com os olhos marejados. de ali estavam.
A empregada foi quem mais o ajudou nas questões:
— Depois de almoçar, o senhor Giordano foi para seu escritório, que ele tranca por dentro. — Disse ela. — Não ouvi nenhum barulho de tiros. A gente fica aqui em cima e não dá conta de nada que acontece na loja. — Ela disse.
— Na meia hora seguinte ao almoço, onde estavam todos? — interrogou Davanti. Quero que cada um fale por si.
A empregada afirmou:
— Eu estava na copa, tirando os pratos e talheres do almoço. Depois, na cozinha, lavei tudo e guardei nos armários.
Dona Angelina, entre lágrimas e soluços, gaguejou:
— Eu estava... estava ouvindo rádio.
— Ouvindo rádio... Que programa?
— Tem um programa de música que gosto muito. Vai de meio-dia até uma da tarde.
— E seu marido tinha uma arma? Um revólver?
Tomada de surpresa, ela gaguejou ao responder:
— Não... não... não! Giordano nunca teve arma nenhuma. Nem revolver, nem garrucha, nada, nada.
André, também abalado, disse:
— Depois do almoço, fui pro meu quarto, deitei na cama e dormi. Só acordei quando o senhor chegou com a notícia da morte de papai.
— Alguma vez viu seu pai mexendo com uma arma?
— Nunca vi.
Loreta, olhos marejados e mãos se esfregando, disse:
— Saí da mesa e fui telefonar para Marlene, minha colega.
— E depois?
— Também deitei e cochilei um pouco.
— Ninguém ouviu os disparos vindos do escritório?
Todos abanaram as cabeças, respondendo negativamente.
— E você, Loreta, viu seu pai alguma vez com um revólver?
— Nunca, seu delegado. Juro.
Davanti sorriu disfarçadamente.
— Não precisa jurar, mocinha. Acredito em você e em todos aqui.
Também os empregados da loja nada ouviram. Amaral afirmou:
— Não havia nenhum cliente após o almoço. É uma hora parada. Só estávamos nós.
Jonas, que se mostrava mais calmo, disse:
— Se os disparos foram feitos ao meio dia, de certo que ninguém iria ouvir, pois o badalar dos sinos da Matriz soam muito alto, aqui. A loja está bem atrás da igreja.
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Davanti lacrou o escritório onde os crimes haviam acontecido.
— Por favor, não abram o escritório até a chegada de um técnico da capital, para me ajudar nas investigações. E quanto a vocês quatro quero ouvi-los na delegacia dentro de meia hora.
Subiu no jipe e de repente sentiu fome. Ainda não havia almoçado. Dirigiu o veículo ao Restaurante Nápoles, onde pediu uma pizza que engoliu rapidamente. De volta à delegacia, telefonou à Secretaria da Segurança na capital do estado e pediu que um técnico viesse a Ventoleve para investigar com ele o duplo crime; aliás, três, se ficasse constatado que também houvera roubo.
Horas depois na delegacia, onde todos os empregado foram re-inquiridos, Jonas foi o que se
mostrou mais disposto a falar.
— Eu já havia avisado o Dino. “Cuidado, rapaz, este seu namoro com Zaura não vai dar certo.”
— Por quê? — O Delegado havia colocado o rapaz confortavelmente em uma cadeira de encosto e o tratava com cuidado, pois via nele a melhor testemunha do caso.
— Zaura, ou Izaura, era a caixa da loja. Todas as tardes, depois de fecharmos a loja, ela subia para o escritório, com o senhor Giordano, para acertar as contas. Antes dela ter sido admitida era eu quem respondia pelo caixa e pelo acerto, todas as tardes. Era um serviço rápido, que em meia hora estava pronto. Nunca fiquei mais de meia hora no escritório.
— E era ela que estava no controle do caixa? Desde quando?
— Quando Izaura foi contratada, linda morena de cabelos longos e olhos de enfeitiçar qualquer um, ficamos bobos. Mesmo Amaral, que é casado, a olhava com olhos de pidão. Eu também. Mas foi Dino quem se antecipou e começou um namoro com ela. Não demorou muito, fui substituído por Zaura no caixa.
— E você, ficou como? Danado da vida?
— Não, prá mim foi um alivio. Eu não recebia nem um tostão a mais por ser caixa. Era só mais responsabilidade.
— E Izaura?
— Ficou satisfeita, claro! Noêmia e Leonor é que ficaram chateadas. Mas não demorou muito para se acostumarem. Zaura era muito alegre, conquistava todo mundo. Conquistou Dino e. depois, o patrão.
— Giordano?
— Sim. Mas deixe-me explicar. O acerto de caixa era coisa de meia hora, como já lhe disse. No inicio de Zaura na função, também era meia hora. Mas depois foi aumentando, aumentando...
— Como é que você sabe? Ficou vigiando a moça e o patrão?
— Vigiando, não! Observando. Só observando. Sabe como é, ali na contra-esquina da loja tem um bar, o “Tiragosto”. Eu e Amaral e alguns amigos íamos prá lá, depois do trabalho, tomar umas e outras. Dalí, eu olhava para a janela do escritório do “sinhore” Giordano. Ele apagava luz quando ia para a casa. Seis e meia, seis e quarenta. No máximo. Depois, passou a demorar mais – e eu ficava observando, enquanto tomava as minhas e conversava com os amigos. Quando ficou demorando além das sete horas, comentei com Dino, que namorava a moça, que Zaura devia ser complicada no acerto do caixa, pois demorava muito mais do que eu.
— E Dino?
— Aí, sim, houve espia. De Dino. Ele ficava no bar esperando a luz apagar. Começou a marcação quando ela saía. Sete. Sete e meia. Oito horas. Foi quando eu lhe aconselhei, desconfiado. Ele, porém, já tinha certeza de que a sua namorada não era só sua.
— Faz tempo que advertiu o Dino?
— Foi na semana passada. Quarta ou quinta feira.
— O seu patrão guardava muito dinheiro no cofre do escritório? — Perguntou, de repente, o Delegado Davanti.
Jonas foi tomado de surpresa.
— No cofre...?
— Sim, no cofre. Você sabia da existência dele, não sabia?
— Ah! Sim, o cofre. Claro! É, o patrão costumava guardar muito dinheiro no cofre do escritório. Tinha uma conta no banco, era uma ninharia, acho que era só pra inglês ver. O senhor sabe, esses velhos italianos não confiam muito nos bancos...
— Como era o controle que ele fazia, quando você trabalhava no caixa?
— Era muito na base da confiança. Havia a máquina registradora, mas ele aceitava as minhas contas sem duvidar de nada. E guardava o dinheiro graúdo no cofre. O miúdo ficava com ele, numa gaveta da escrivaninha, que ele retornava para a caixa registradora na manhã seguinte, para fazer troco.
—Você sabe se ela apresentou alguma carta de recomendação?
— Não, posso dizer que não. Sua admissão foi feita rapidamente, parece que o patrão gostou dela à primeira vista.
— E de onde ela veio?
— Disse prá gente que já trabalhara em loja em São Paulo que tinha muito experiência do serviço. Foi o que ela deve ter dito também ao patrão.
O delegado ouviu Amaral, Noêmia e Leonor, que nada acrescentaram ao que ele já sabia.
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Davanti confirmou nos depoimentos dos colegas que Izaura era pontual no serviço e sua posição como caixa a deixava muito à vontade com o patrão. Nada que levantasse suspeitas. Seu sumiço naquela tarde dramática era prova de que estava envolvida nos crimes, ou mais, que poderia ser a autora dos disparos.
Davanti emitiu um aviso para ser dado na emissora de radio local, com detalhes da moça e alertando os ouvintes. Como Jonas dissera que a moça viera de São Paulo, emitiu um aviso para as delegacias naquela capital, com foto da suspeita, conseguida no fichário de empregados da loja, no segundo andar da loja.
Antes das dezoito horas chegou um teletipo do 13º Distrito Policial da Capital de São Paulo, em Casa Verde, informando da passagem de Izaura Cardoso, a moça da foto, por crime de furto em uma loja onde trabalhara como tesoureira. Fugira sem deixar pistas.
— O mesmo tipo de crime — comentou Davanti com o Ananias, de raciocínio rápido, que sugeriu ao chefe:
— Então a investigação deve ser focada lá. Talvez ela resida no bairro Casa Verde.
— Sim, à falta de outras pistas, vamos por aí. Peça detalhes à DP de Casa Verde.
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A procura por Izaura já tinha sido iniciada naquela mesma tarde.
Na casa dos tios de Izaura, Davanti ficou sabendo que eles não eram na verdade tios da moça, a quem haviam alugado o quarto vago e que ela só aparecia para dormir. Não a conheciam e confiaram no seu jeito gentil e sorridente. Jamais poderiam pensar que ela se envolveria numa situação assim.
— Ela nos disse que vinha de São Paulo, que estava cansada de cidade grande, essas coisas. — Disse o Aldrovando, e a mulher Zulmira acenava com a cabeça, confirmando o relato do marido. — Que não tinha nenhuma outra amizade na cidade, apesar de já ali viver há mais de seis meses. Ela pagava o aluguel do quarto no dia certo, nunca atrasou nestes seis meses.
— E nos sábados e domingos? — indagou Davanti.
— Não saía de casa. Combinamos que ela almoçaria e jantaria conosco naqueles dias, por um pagamento extra. Era alegre, contava piadas, mas nunca falou de sua vida prá gente.
— Não tinha amigas? Namorado?
— Nunca apareceu com ninguém aqui em casa. Parece que estava de namoro com um colega da loja, mas nunca veio com ele aqui.
— E hoje à tarde, o que aconteceu?
Aldrovando era mais expedito e respondeu:
— Ela apareceu aqui seria uma da tarde, apressada, dizendo que tinha que viajar urgente. Arrumou sua malinha, acertamos os dias de pensão e ela saiu rapidamente.
— Que direção tomou?
— Oia, doutor, eu não vi, não senhor. Ficamos até meio tontos com a pressa dela. Peguei o dinheiro, entreguei pra Zulmira e fomos pro nosso quarto, prá guardar na caixa das nossas economias.
— Acredito em tudo o que o senhor disse, seu Aldrovando, mas eu gostaria de olhar o quarto que ela ocupou.
— Pois não, doutor. Vem por aqui.
O exame foi rápido, pois nada havia ficado que pudesse indicar que tivesse sido habitado: armário vazio, e na cômoda, nenhuma roupa, ou vidro de perfume, cosmético ou batom.
— Me dê licença de ir ao quintal? — a pergunta educada significava para Aldrovando mais do que uma ordem.
—Sim, seu doutor. Por aqui...
O quintal, com uma mangueira, duas laranjeiras e uma grande moita de bananeira foi alvo de uma inspeção formal. Olhando para a base da casa, viu uma abertura de mais ou menos um metro de altura por uns oitenta centímetros de largura, perguntou:
— O que tem naquele porão?
— Está completamente vazio. É muito ruim até para guarda bugigangas.
— Vamos lá.
Sacando da lanterna, o delegado entrou com dificuldade. A luz da lanterna iluminou um recinto cheio de teias de aranhas e que era dividido por grossas paredes de pedra em alguns setores: eram as bases das paredes erguidas acima. Um cheiro forte de bolor ou mofo impregnava o ar ali dentro. Nada viu que pudesse ajudar na investigação.
Na casa novamente, despediu-se do casal e dirigiu-se ao hospital..
Leopoldino, ou Dino, que tivera os intestinos perfurados pelo disparo, sofreu uma intervenção cirúrgica delicada, estava ainda sob os efeitos da anestesia.
— Foi apenas um tiro, mas perfurou os intestinos em dois lugares. — Disse o doutor Miranda, cirurgião de longa prática. — Sua recuperação vai ser demorada, longa.
Já começava a anoitecer quando o delegado voltou à delegacia.
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No porão da casa do senhor Aldrovando Izaura tremeu e sufocou um grito na garganta quando a luz da lanterna passou rente à reentrância atrás da qual ela estava escondida. Mas a luz se distanciou e se apagou em seguida.
Passou aquela tarde ali. Tinha agido com rapidez e coragem, ao sair da casa pela porta da frente, com a bolsa nos ombros e segurando a maleta com determinação. Fechou porta, certificando-se que não era observada por ninguém. Deu a volta, entrou por um portão lateral, foi para traz da casa e chegou á entrada do porão. Já havia estado ali e saia que poderia ser de uilidade em ocasiões especiais. Como aquela que agora vivia. Entrou no antro escuro, separando com a mão esquerda as teias de aranha. Ninguém a vira e contava como tempo para se safar dali.
O local era seco e mal ventilado. De chão batido,cheirava a mofo. Ela se arrastou sobre mãos e joelhos até ao fundo, encontrou um lugar mais ou menos plaino, detrás de uma saliência, onde se sentou fazendo da maleta um banco. Estava assustada, sim, mas tranqüilizou-se depois que as vozes e os sons de passos na casa cessaram. Aninhou-se usando um agasalho.
Passou a noite.
Saiu de madrugada. Foi para a rodovia e fez o sinal de pedido de carona, polegar da mão direita erguida e movimentando-o no sinal de ir para frente. Um, dois, três caminhões não pararam. No quinto ou sexto, o motorista para, abre a porta da cabine de modo convidativo.
— Prá onde o senhor vai?
— Prá onde você mandar, gostosura.
— Num brinca comigo, moço.
— Vou prá Campinas.
— Me dá uma carona até Ribeirão Preto?
Foi uma viagem normal. Izaura respondia com poucas palavras às interrogações do caminhoneiro. Resistiu delicadamente a alguns avanços da mão do homem sobre suas coxas e seguiram numa conversa recheada de muitos “não” e alguns “sim”.
Estava amanhecendo quando ela desceu na rodovia, perto de um posto de gasolina, já em Ribeirão Preto. Seguiu a pé para a estação rodoviária.
— Quero uma passagem para Campo Grande. — Pediu no guichê da Viação Mota.
— Qual o horário? — Pergunta o vendedor olhando através do vidro do guichê, com olhos gulosos, a linda morena.
— O ônibus que partir logo.
— Tem um que parte daqui a meia hora, às oito horas.
Só depois de comprada a passagem se deu conta de que estava com fome. No toalete feminino lavou rosto, braços e cuidou da aparência. Ficou tranqüila ao verificar a bolsa e passar a mão pelos quatro pacotes de cédulas de cem cruzeiros.
Um sanduíche duplo com copo de café com leite bem quente lhe proporcionou certo bem estar. E então já se aproximava a hora da saída do ônibus.
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De Ribeirão Preto a Dourados e de lá até Ponta Porã foi sem interrupção. Agarrou fortemente a sua bolsa em todos os momentos da viagem. Muitas e muitas horas de estrada com longos períodos de tédio, cochilos, lembranças e planos. Não era a primeira vez que passava por experiência semelhante. Sabia despistar e tinha certeza do que iria fazer.
Na cidade de Ponta Porã, usando de charme, um pouco do dinheiro e muita audácia, conseguiu entrar no Paraguai. Um motorista, atravessando fronteira entre Brasil e Paraguai, a levou até um modesto hotel em Pedro Juan Cabalero.
— Aqui a senhora pode ficar descansada que ninguém vai perturbar. — Afirmou o motorista.
Ao dar entrada no Hotel Guarani e pegar a chave do quarto, sentiu-se salva e feliz.
Jogou-se sobre a cama estreita e, apesar do cansaço, sorriu, pensando que sua nova vida estava começando.
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O Destino é o maior brincalhão de todo o Universo. Brinca com as pessoas quando tudo está bem e brinca também quando as coisas vão mal. Liga e desliga os seus fios a seu bel-prazer, mudando a história do mundo, das nações, dos povos e das pessoas. Tem muita gente que não acredita.
E ele entrou firme na vida de Izaura.
Brincando como se a moça fosse uma marionete.
Para o bem? Para o mal? Para felicidade ou para o azar?
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Francisco Gomes, igual a muitos agricultores de visão, investira na aquisição de uma fazenda no Paraguai, onde se tornara milionário com a cultura de soja. Era trabalhador e comandava ele mesmo a imensa propriedade. Para tanto ia constantemente a Cabalero — como os brasileiros chamavam a cidade de Pedro Juan Cabalero, encurtando o nome — e a Ponta Porã para comprar mÁquinas, implementos, procurar empregados e coisas necessárias ao manejo da fazenda.
Tinha muitos conhecidos e gostava de se encontrar com eles e trocar idéias, comentar notícias do Brasil e tomar umas cervejas geladíssimas, falando também de mulheres e novidades gerais.
— Rapaz! Tem uma “cria” chegada do Brasil que é uma lindeza. — Disse um dos amigos na roda.
— Ora, Nelico, isto não é novidade, elas chegam aos punhados, todos os dias.
— Mas essa é diferente. Parece artista de cinema, linda de morrer.
Tanto foi comentada a presença da cujo nome, falava-se, era uma tal de Izaura, que aguçou a curiosidade não só de Francisco como a de outros amigos. Resolveram confirmar a informação.
— Onde encontramos essa nova beleza?
— A essa hora, deve estar por aqui, no centro. Vamos andar por aí que a veremos.
E viram. E maravilharam-se com a visão.
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A família de Francisco Gomes morava no Brasil. Ele explicava:
— Paraguai é só para ganhar dinheiro, não dá pra se viver com família. Não se tem segurança. Prá viver, bom é aqui mesmo, em Ventoleve.
Visitava a mulher e as três filhas adolescentes a cada quinze dias, usando seu próprio avião, que pilotava com perícia. Numa dessas viagens, ficou sabendo da tragédia ocorrida na Loja Central, e com detalhes contados pelo seu amigo delegado Marcos Davanti.
— O caso está aberto, pois o moço baleado não sabe quem atirou nele, se foi o patrão Giordano Magnani ou se foi a colega da loja, Izaura. — e mostrou para Francisco o retrato da moça.
Francisco sentiu os cabelos da nuca arrepiar.
— Putz! Eu vi essa dona!
— Onde
— Em Cabalero. Quer dizer, em Pedro Juan Cabalero, Paraguai.
Davanti levantou-se num supetão, quase derrubando a cadeira.
— Você está brincando comigo.
— Num tou não, Davanti. É essa mesmo.
Dois dias depois, Davanti viajou com Francisco no avião deste, para o Paraguai. Levava mandado de prisão no bolso, que não era bobo de se aventurar assim sem mais nem menos por terras estrangeiras.
Davanti e o Coronel Prates, delegado de Ponta Porã, concordaram com a trama bolada pelo amigo Chico Gomes.
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Francisco procurou marcar um encontro com Izaura o que foi fácil. Mais fácil ainda convidá-la para um almoço, seguido por um passeio a fim de conhecer sua fazenda.
— Fica longe? — Ela perguntou.
— Nada, cerca de quinze minutos no meu avião.
Ao ouvir a informação ela se deslumbrou e mais charmosa se mostrou.
Do aeroporto de Pedro Juan Cabalero o avião decolou com suavidade, pilotado pelo galante Franciso Gomes. Sobrevoou as duas cidades xifópagas e foi dirigindo mais para o leste. Uma volta que a moça nem percebeu e depois, aterrou no aeroporto de Ponta Porã.
Um agradável passeio na tarde de pleno sol.
— Já chegamos? Foi mais rápido do que pensei. — disse quando o avião aterrou.
— Sim. Chegamos. E temos uns amigos nos esperando.
Davanti e Coronel Prates chegaram num jipe do aeroporto até o avião. Assim que o piloto abriu a portinhola da cabine do avião e ajudou a formosa mulher a descer, Davanti deu a ordem de prisão.
— Izaura Cardoso: está presa por latrocínio e tentativa de morte, ocorridos ás doze horas do dia vinte deste mês em Ventoleve.
E passou-lhe as algemas sem mais delongas.
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O Delegado Marcos Davanti tinha todas as qualidades necessárias para exercer suas funções com competência e resolver qualquer caso que lhe aparecesse pela frente. Mas neste caso, teve de reconhecer que o Destino havia dado uma grande ajuda.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 10 de fevereiro de 2017.
CONTO # 1.OOO DA SÉRIE MILISTÓRIAS.