990-O MORTO QUE TOSSIU -

Subindo pelo Triângulo Mineiro, rumo a Goiás, quase na divisa entre os dois estados, a rodovia passa por Venda Velha, uma cidade modorrenta que se espraia às margens do Rio Paranaíba, numa placidez bem ao jeito do estado de espírito do mineiro. Entretanto, faz pouco tempo, a quietude do lugar foi sacudida com o inacreditável fato do morto que tossiu.

Já era de tardezinha, quando, pedalando cansado de volta ao lar, o mecânico Juca Antunes derrapa no asfalto e se esparrama, desmaiado, pelo chão molhado da avenida. Socorrido por pessoas e por um motorista, é levado para o pequeno hospital da cidade.

— Quando ele foi colocado na maca, e levado para dentro, ainda estava vivo, respirando. — Informa o motorista que o levou ao pronto-socorro.

O que aconteceu dentro do hospital ainda está para ser esclarecido. Ainda não eram nem nove da noite, quatro horas após o acidente, quando a família, ansiosa à espera de notícias no saguão do hospital, recebeu o aviso do médico:

— O Juca está morto. Peguem o atestado de óbito na secretaria. — Dito isto e sem mais explicações, voltou as costas, deixando o saguão onde os parentes desesperados com a notícia.

O choque foi grande. Entretanto, gente simples e conformada, acreditou no que o doutor dizia.

Dois enfermeiros levavam o corpo de Juca para o necrotério do hospital. Atravessavam o corredor mal iluminado, os sons dos passos ecoando no chão de cimento. A chuva caía forte. Acima desse ruído lúgubre, ouviu-se um som cavernoso, vindo da maca, onde o corpo jazia sob o lençol.

— Que susto! — O enfermeiro baixinho afasta-se um pouco da maca, sem deixar de impulsioná-la. — Parece que o morto tossiu.

Em seguida, é o mais alto que também se apavora, ao ver que o lençol está respingado de sangue, cuja mancha vai aumentando, colando o pano à boca do corpo. Mais experiente que seu colega, levanta o lençol.

— Puta merda, o morto tá sangrando!

— Vira a maca! Vamos voltar com ele!

O médico de plantão constata que Juca não estava morto de verdade. Sua morte aparente devia-se a uma pelota de sangue que obstruíra a garganta, e que fora expelido quando o “morto” tossiu, a caminho do necrotério.

Não querendo perturbar o colega que assinara o laudo e atestado de morte, foi rápido na decisão.

— Levem o paciente para Uberlândia. Aqui não temos recursos para fazer a cirurgia necessária.

No início da madrugada, lá foi a ambulância, sirene ligada, chiando os pneus no asfalto molhado, rumo à cidade vizinha, distante uns poucos quilômetros, onde Juca deveria ser submetido a delicada cirurgia.

De posse do atestado de óbito, Mariana, a irmã mais velha de Juca foi tomar providências para o velório e o sepultamento. Já tinha contatado a funerária, cujo carro foi enviado ao necrotério do hospital, para pegar o corpo. O motorista foi informado que Juca não estava ali. Tinha sido transferido para Uberlândia, sem uma explicação cabal do que havia realmente ocorrido.

— O corpo do seu irmão foi levado para Uberlândia. — Mariana ouve pelo telefone do gerente da funerária a informação passada pelo motorista. — É lá que ele vai ser enterrado?

Sem saber o que estava acontecendo, Mariana volta ao hospital. É madrugada e a chuva continua. Molhada até os ossos, ouve uma explicação inacreditável:

— Seu irmão foi levado para ser operado em Uberlândia.

— Mas ele morreu! Aqui está o atestado de óbito. — Agita o papel úmido na cara da secretária sonolenta.

Mais não lhe explicam. Sai dali apavorada. Sua cabeça é um torvelinho. Agora a responsável pela casa onde mora com a mãe e o irmão, não tem a mínima idéia do que fazer. Um pensamento lúcido acende em sua mente.

— Isto é caso de polícia. — E vai para a delegacia de polícia.

No Hospital Geral de Uberlândia, outra confusão está armada. Na pressa de levar o paciente, o enfermeiro apanhou a papelada como se achava sobre a mesa da secretaria, cujo mais recente documento era o atestado de óbito. Ao dar entrada, não sabia que estava levando para ser submetido a uma cirurgia um paciente cujos papéis o indicavam como morto. A secretária recusa-se a receber o paciente (morto ou vivo?) trazido de Venda Velha.

— Ele está vivo! É por isso que estamos aqui! Precisa urgente de ser operado na cabeça.! — O enfermeiro grita com os burocratas.

— Não podemos dar entrada no hospital a um morto que já tem atestado de óbito!

Felizmente, o estado geral de Juca apresenta-se estável e até com indícios de melhora. São cinco horas da madrugada quando chega um carro da polícia de Venda Velha, trazendo Mariana e dois agentes. A presença da polícia, cuja autoridade é acatada pelos até então arrogantes funcionários, tudo agilisa. Uma vez internado, Juca passa a receber todo o cuidado necessário. Ao amanhecer, está a caminho da sala de cirurgia.

ANTONIO GOBBO

BHTE, 16 DE OUTUBRO/2006

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/03/2017
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