O CASO DO SUICIDA FELIZ (Bressoni, investigação 3)

Ao primeiro toque do telefone, Otaviano Guerra, atendeu:

_Guerra, falando.

_Boa noite, chefe! Aqui é Bressoni – falou o investigador.

_ Lugui. Que bom que você ligou. Eu precisava mesmo falar com você – disse o delegado.

Pelo tom da voz o rapaz percebeu que provavelmente o chefe estava mastigando. Imaginou que era um bombom. Luiz Guilherme ficou pensando que motivos teria o chefe para estar estressado em casa numa segunda-feira a noite: brigas com a esposa, apostou, afinal todos na delegacia sabiam que o casamento do delegado estava em crise. A dedução de que poderia ser um chocolate deve-se a ser sempre essa a função do bombom: acalmar o chefe, sendo um substituto aos cigarros que o homem tinha abandonado há um ano devido a complicações cardíacas. Ignorando a fala do delegado, o rapaz prosseguiu:

_ Sim, liguei pra avisar que não poderei estar na delegacia amanhã cedo. Preciso acompanhar Marcella até o hospital. Exames de rotina. Na correria do dia não consegui avisa-lo antes.

Otaviano ponderou se deveria fazer o pedido para o seu subalterno já que o rapaz acompanharia até o médico a esposa que se recuperava de um câncer de mama. Em meio minuto, falou:

_Certo. Quero te pedir pra ter uma conversinha com uma viúva. O marido dela se matou.

Bressoni estranhou o pedido. Porque ele deveria conversar com a esposa de um suicida se não era um caso de homicídio?

_ Senhor, não seria melhor encaminhar o Palhares ou o Toledo para esse serviço. Eu não entendo a relevância de minha visita nesse caso.

_Lugui, você sabe que é o melhor de meus homens. Estou te pedindo porque há indícios estranhos na morte do homem.

Dessa vez, o investigador ficou interessado. Prossiga:

_Enfim, pode não ser nada, mas ontem à tarde a irmã do sujeito arrumou confusão durante o enterro acusando a cunhada de tê-lo matado. Teve até que ser contida e levada pra delegacia. Ela declara que o irmão estava feliz no sábado quando compareceu num churrasco na casa dela e diz ainda que ele tinha feito entrevista de emprego na sexta-feira e estava esperançoso. Você há de convir que é estranho que um homem procure emprego na sexta-feira e pareça animado e dois dias depois resolva se matar.

O jovem observou que realmente parecia estranho. Perguntou:

_ E qual a causa da morte?

_ Intoxicação medicamentosa. Parece que o sujeito andou tomando um monte de comprimido pra por fim a própria vida.

Bressoni, ouviu e respondeu:

_ Ok. Vou ver o que posso fazer, mas antes acompanharei minha mulher até a consulta.

O chefe concordou e ambos desligaram.

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Na manhã seguinte passava um pouco das onze quando Bressoni chegou ao bairro da viúva. Ela morava na periferia da cidade, num local cercado por ladeiras e com esgoto a céu aberto. Antes de chegar ali ele tinha passado em casa para deixar a esposa. Os exames dela tinham sido rápidos. Só depois que a deixou foi que ele se lembrou de que deveria ter perguntado se ela queria que ele passasse na farmácia. Depois telefonaria pra mulher. No momento precisava se preocupar em arrumar um lugar pra deixar o carro, já que a casa da enlutada ficava numa viela estreita.

Já na casa, foi recebido por uma morena gordinha com cabelos vermelhos, cacheados e com piercings no nariz e na sobrancelha. Devia ter uns 30 anos e se chamava Ivone. Na sala uma menina que como soube tinha onze anos, embora tivesse o corpo de uma mulher de 18. “Culpa desses frangos cheios de hormônio", podia imaginar Guerra falando. A menina chamada Silmara, permanecia calada ao lado da mãe ouvindo toda a conversa.

_Primeiro quero dizer que lamento a morte de seu marido. Como sabe, sua cunhada fez acusações sérias contra a senhora e por isso estou aqui.

_Aquela lá é uma louca. Ela não sabe o que está dizendo. Juliano deixou até uma carta de despedida – afirmou a mulher.

Aquela era uma informação nova. Pediu para ver a carta.

A mulher se levantou do velho sofá desbotado, andou até uma cômoda e retirou um papel de dentro de um vaso com formato de abobora que estava em cima do móvel.

Bresssoni abriu a carta. Leu. Eram apenas duas simples linhas escritas com caligrafia instável, porém legível:

“Ficarei em paz. O meu mundo é vazio. Intimamente creio que será melhor assim. Espero que superem isso. Lembrem-se de mim com amor. Amo todos vocês, Sinto faze-los sofrer. Infelizmente . Livro-me do fardo dessa vida. Melhor assim. Agora cuidem-se. Rogo pelo perdão de nossas almas. Adeus"

O investigador reparou algo estranho naquele bilhete, mas não soube dizer o que era. Prosseguiu a conversa:

Sua cunhada alega que o irmão estava feliz no sábado e que ele não tinha motivos para se matar. O que me diz disso?

_E quem não finge felicidade hoje em dia moço? Especialmente para aqueles que ama. Ele estava depressivo. Tinha até marcado exame com o clinico do postinho. Ele ia pegar um encaminhamento pra passar com um psiquiatra – revelou a mulher.

Bressoni anuiu com a cabeça, concordando com a questão de pessoas fingirem felicidade o tempo todo. Basta abrir qualquer rede social pra comprovar esse fato. Porém, intimamente ele intuiu que havia algo estranho com aquela família. A mulher sempre disposta a justificar a decisão do marido, ao invés de parecer inconformada. A menina ao lado sem dizer nada e sem tirar os olhos do chão num gesto de pesar ou talvez medo.

A intuição era parte importante do seu trabalho como investigador do departamento de homicídios. Ele sabia que não podia confiar cegamente nela, pois precisava basear suas conclusões em fatos, mas também sabia que a intuição nunca deveria ser ignorada.

Antes que fosse pedido a mulher voltou até o vaso e trouxe um papel que indicava que o marido tinha uma consulta marcada pra dali a vinte dias. O investigador pensou que aquela consulta com o clinico não provava nada, afinal o homem podia passar no médico por outros motivos que não a depressão.

_ Como foram os últimos dias dele? Me refiro a esse fim de semana.

A resposta veio rápida. Pareceu ensaiada de tão automática e desprovida de emoção:

_Sexta-feira cheguei mais cedo. Eles estavam aqui na sala vendo um filme. Tomei um remédio e deitei. No sábado...

_Desculpa, não entendi. Você disse que chegou...

_Do trabalho. Eu trabalho na produção de uma fábrica de cosméticos.Juliano ficava em casa cuidando da minha filha. Eu tinha ido trabalhar, mas sai mais cedo porque estava com enxaqueca e o doutor me liberou. De vez em quando eu tenho isso. Sou hipertensa.Tenho trabalhado muito e fazendo horas-extras. Juliano estava desempregado.

_Sim, claro. Continue:

_No sábado fomos pra casa de minha cunhada. Era festa de aniversario do filho dela. Fizeram um churrasco. Meu marido bebeu um pouco. Acho que isso fez parecer pra ela que ele estava alegre. No domingo parecia tudo bem. Sai no fim de tarde pra ir à igreja, deixei ele aqui. Quando cheguei ele estava caído ali na cozinha. Morto.

E nisso tudo a sua filha estava com você? Na festa e na igreja? Ou ela ficou com o pai.

_Padrasto. Ele não é o pai dela. O pai mora em outro bairro. Silmara saiu mais cedo do churrasco, pois marcou com os colegas de ir ao cinema.

_Sim, como a senhora disse: Chegou e encontrou seu marido morto. Que horas terminou a missa?

_ Por volta das nove horas. Cheguei aqui nove e meia.

Lugui fez uma anotação mental daquela informação. Pela confirmação que fez com o delegado Guerra enquanto Marcella fazia os exames, a ligação pedindo uma ambulância só foi feita às 22h40. Mais de uma hora depois do horário que ela diz ter chegado em sua casa e visto o marido morto. Poderia ser só uma confusão com as horas.

Só uma ultima pergunta: -Alguma vez seu marido já tinha falado em se matar?

_ Não. Nunca ouvi. Nunca imaginei que ele pudesse pensar numa coisa dessas – afirmou Ivone.

Bressoni anotou aquilo e se despediu da mulher.

Segundo estatística a maioria dos potenciais suicidas falam ou dão indícios de suas intenções, mas os ouvintes tendem a ignorar. Era justamente Juliano uma exceção a essa regra?

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Cerca de dez minutos depois, o investigador já estava no carro tentando ligar para a esposa quando viu a viúva sair da viela e passar diante de seu carro que estava estacionado a uns 100 metros. Ela estava apressada e trazia uma sacola. O homem estranhou o jeito dela e por considerar a atitude suspeita desceu do carro e foi atrás pra ver aonde ela ia, mas mantendo uma distancia segura para que não percebesse que estava sendo seguida.

A mulher se aproximou de um muro que limitava um terreno baldio e jogou a sacola por cima dele. Depois atravessou a rua voltando para casa.

Bressoni teve certa dificuldade para alcançar o outro lado do muro. Assim que pulou, encontrou a sacola plástica e ali mesmo abriu pra verificar o conteúdo. Uma arma envolta num guardanapo de pano. Um revolver Taurus 970 calibre 22. O rapaz envolveu a arma no pano e colocou-a no bolso. Sua intuição estava certa. Cinco minutos depois estava de volta a casa de mãe e filha. Elas tinham muito o que se explicar.

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Pousou a arma sobre a mesa de centro que havia na sala. Questionou mãe e filha:

_ A senhora pode me explicar o que fazia com esse revolver e porque tentou se livrar dele?

Ivone assustada começou a chorar.

_ Policial, eu não queria. Mas eu fui obrigada a agir assim. Você tem que entender. Eu não tive escolha... – falou entre lágrimas.

Bressoni estava farto daquilo. Sempre a mesma ladainha dos criminosos. Sempre temos escolha.

_Pode parar com o teatro. Ouço histórias assim todo santo dia. Você não vai me comover com esse choro. Eu quero saber o que de fato aconteceu aqui no domingo a noite – Bressoni foi incisivo com as palavras. Queria respostas e não lamentações. Todos podem justificar seus crimes se você começa a abrir o leque de motivações. A justiça para alguns pode significar o fim da vida de outros. Não se pode analisar com emoção, pois nesse caso você acaba por justificar e perdoar o injustificável.

A mulher tentou se recompor e começou a falar:

_Foi na sexta-feira. Eu cheguei em casa e vi aquilo... – a mulher falou de forma pausada e com vergonha ou repulsa estampada na face.

_Aquilo?

_Meu marido e... A mulher não continuou a fala. Olhou para a filha em busca de autorização.

Silmara envergonhada saiu da sala sem dizer nada e trancou-se no quarto.

Bressoni entendeu:

_Você esta querendo me dizer que o seu marido e sua filha... Ele abusava de Silmara?

A mulher apenas sacudiu a cabeça, confirmando.

_Eu não podia perdoar ele. Juliano não podia ter feito isso com ela. Eu confiava no meu marido.

Entendo – falou o investigador. E essa arma, onde ela se encaixa nessa história? Onde conseguiu esse revolver? Porque você não o denunciou?

_Se eu levasse minha filha pra delegacia ela ficaria estigmatizada como vítima de um estupro e eu estava com ódio dele – falou a mulher. Aquele homem não podia ser simplesmente preso e logo solto por bom comportamento. Eu queria ver ele morto. Ele me traiu. Depois de flagrado me pediu perdão. Disse que era a primeira vez e que aquilo nunca mais ia voltar a acontecer. Que só fez porque tinha passado no bar e bebido um pouco.

_Então você fingiu perdoa-lo? E quanto a arma?

_Conversei com minha filha e disse a ela que nós precisávamos nos unir. No dia seguinte fomos pro churrasco e ela saiu antes, foi até a casa do pai dela buscar um revolver que sabíamos que ele escondia em cima do guarda-roupa. Ela pegou a arma, enquanto estávamos no churrasco. O pai dela nem desconfia.

_E...

_ O senhor deve imaginar: obriguei o maldito a escrever aquela carta e tomar meus remédios de pressão. Caso ele não fizesse eu estava disposta a estourar a cabeça dele. Ele teve o fim que mereceu. É tão errado tirar do mundo alguém capaz de fazer uma maldade dessas? Não é justo ser presa por defender a honra de minha filha. Eu sou mãe. Você precisa entender. Ela precisa de mim. Será melhor pra todo mundo se isso permanecer em segredo e todos continuarem achando que ele era um bom homem e se matou.

Mesmo compreendendo os motivos do crime, Lugui Bressoni deu a ordem de prisão:

_ Sinto muito. Você está presa. Tem o direito de permanecer calada e de um advogado. Se não puder pagar por um o Estado lhe concederá um defensor público - disse o rapaz enquanto algemava a mulher.

Ivone não resistiu a prisão e se conformou. Não havia o que fazer. O homem jamais entenderia os sacrifícios de que uma mãe é capaz por seus filhos. Pelo menos Silmara estava em segurança. De qualquer forma jamais revelaria o segredo ao investigador e a ninguém. Nunca contaria que foi a igreja e deixou a filha na casa de uma vizinha, mas quando retornou flagrou a menina com a arma em mãos ameaçando o padastro. Foi a filha quem ameaçou matar e coagiu o abusador a tomar os medicamentos. O crime era de Silmara, mas Ivone se daria por satisfeita em pagar pelo crime no lugar da menina.

Minutos depois quando Bressoni juntou a carta como evidencia do crime, ele se lembrou de que a mulher não tinha dito se a filha a acompanhou até a igreja. Ele releu a carta e finalmente compreendeu o motivo de ter achado aquelas palavras estranhas. Ali o falso suicida denunciava a criminosa através de um código simples, mas só visivel por quem estivesse atento. Um acrostico. A inicial de cada frase estava escrita com uma letra mais forte naquela caligrafia instável. O segredo que o investigador também resolveu guardar por se solidarizar com o sofrimento da mãe. Era uma pequena justiça num mundo nem sempre justo. Nas letras a mensagem: FOI ELA, SILMARA.

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Agradeço aos leitores, comentários e divulgação de meus textos. Convido para lerem meus outros textos e em especial as aventuras do investigador Bressoni:"PARTES QUE MATAM" e "A GAROTA DOS TRILHOS"

Sua opinião é muito importante para aprimorar meu talento com a escrita. Abraço!