DOIS INOCENTES
Os irmãos Celso e Ademir sabiam das histórias. A polícia militar do estado de São Paulo era uma polícia assassina, principalmente aquela que se intitulava Rondas Ostensivas Tobias Aguiar. Um jornalista até escreveu um livro e mostrou como este esquadrão era responsável pela morte de milhares de pessoas nos últimos anos (a maioria inocente) e que depois não acontecia nada aos matadores. Nenhuma justiça. Os homicídios pareciam entrar para uma espécie de catálogo de compras do mês.
Era um domingo de abril, às 23:30 da noite, no ano de 1994, Celso e Ademir, respectivamente com 15 e 16 anos de idade, aguardavam em um ponto da avenida Presidente Kennedy, na zona sul da cidade de São Paulo, a chegada de seu ônibus. A noite estava bem fria e os dois usavam casacos de couro. Já esperavam a mais de meia hora, mas não temiam tanto os ladrões da noite quanto o surgimento daquela polícia matadora; o baque assombroso do camburão de cor laranja e preta.
Depois de uma hora de espera, quando já encostavam no poste, e da forma como os meninos temiam, apareceu na curva da avenida, uma viatura da polícia militar, supostamente fazendo a ronda noturna. Celso e Ademir de longe identificaram o tipo da polícia e Celso aliviado ainda informou:
- É polícia comum!
Ser da polícia militar comum significava para Celso e Ademir, que eles talvez sobrevivessem se, com todo cuidado, permanecessem completamente parados e absolutamente mudos.
O camburão passou devagar, na segunda faixa da avenida, e certamente os olhos do veículo examinaram os meninos. Tanto examinaram que o camburão prosseguiu e virou na primeira rua à direita. Celso e Ademir comentaram aflitos:
- Eles vão dar a volta no quarteirão!
O que fazer? Correr não adiantaria naquela avenida comprida e por mais descabelada a corrida, mesmo na contramão, a polícia os alcançaria na sirene e já chegaria disparando bala. Poderiam esconder-se, mas a avenida Kennedy era desolada, somente muros, sem árvores, sem buracos. A única saída possível seria entrar no ônibus, caso ele chegasse, mas qual a justificativa teriam para aceitar o transporte. A polícia poderia seguir o coletivo, mandar parar e entrar matando.
Celso e Ademir quase deram as mãos como duas crianças. Olharam a lua minguante que era bege como dizia o livro infantil. Os dois adolescentes teriam que passar por uma revista da polícia militar, com consequências imprevisíveis, em um domingo frio.
Os dois saíram da lua e esperaram do lado esquerdo do quarteirão, o surgimento impávido do camburão colossal. Eles esperaram e contaram os mortos: 111 presos na chacina do presídio do Carandiru. Mais dois não mudaria a cara de chacina que teria 113 mortos. 2+2= 4 e 111 + 2 = 113 como dizia a professora.
O camburão dobrou a esquina devagar, chegou ao ponto onde as vítimas estavam pregadas e do veículo desceram quatro ou cinco ou seis policiais já empurrando contra o muro e apalpando as cinturas, as pernas, os bolsos, as duas criaturas e ordenando em voz alta:
- Mostra os documentos! Documentos!
Celso e Ademir entregaram as carteiras de identidade que mal foram examinadas pelos policiais porque era um domingo frio. Os meganhas devolveram a documentação, deixaram os dois soltos no ponto do ônibus e voltaram à suposta ronda noturna que deveriam estar cumprindo.
Mas Celso notou, de súbito; o motorista da viatura saiu rindo e Celso percebeu: os policiais sabiam que não era necessária aquela abordagem dura. Fizeram somente pelo prazer do susto, pra ver rosto de “pé-frio” tocado no concreto, pois era nítido que os meninos apenas esperavam ônibus e morriam de medo da polícia.
Os soldados talvez tenham comentado: “Companheiro, em noite fria qualquer “zaralho” vale!”.
O ônibus dos azarados somente chegou uma hora depois. Duas horas de atraso, mas os meninos entraram no coletivo muito agradecidos ao motorista, a empresa e ao sistema de transporte público.
DO LIVRO: "ÓBITOS EM COPACABANA"