~*SENHOR DAS DESCONFIANÇAS*~ cap. XLVI
Tendo muito já molhado o travesseiro com lágrimas de um sabor amargo, uma mescla de melancolia e raiva, Thalia enxugou o rosto e se levantou da cama, expirada por sentir-se assim e sabida de que de nada adiantava seu desespero e trancar-se naquele quarto só faria os pensamentos ruins se assomarem. Imaginou o que Ruan poderia estar fazendo, provavelmente meditando sobre as revelações de sua avó Eloise... Seria adequado atrapalhá-lo? Quiçá ele estivesse apenas saboreando um bom chá para pacificar o corpo e a mente. Resolveu Thalia abandonar o quarto e ir até o escritório de Ruan, mas quando ela chegou próxima à porta ouviu Ruan conversar, parecia estar ao celular; e como uma criança sapeca, Thalia ficou no lado da porta, fora do escritório, escutando a conversa.
- Também estou com muita saudade... - dizia Ruan ao celular, dentro do escritório; estava encostado na parede - Não, ainda estou na mansão dos Arantes, o caso não foi totalmente resolvido... Amanda, você sabe que é assim, não é o primeiro caso que investigo! Tudo requer tempo... O quê? Não, eu não estou sendo ignorante...
De repente, do lado de fora, Celina surgiu e se aproximou de Thalia, que insistia em escutar a conversa de Ruan, pegando-a de surpresa.
- Lia, o que está fazendo? - perguntou a menina, no que Thalia virou-se rapidamente para ela e pediu seu sigilo com o dedo nos lábios.
Mas Ruan ouviu a menina Celina e com um impulso do corpo para frente, desencostou-se da parede e olhou para o lado, estando a porta aberta.
- Amanda, preciso desligar agora, depois nos falamos - disse Ruan no celular e espremeu os lábios, encolheu os ombros ao ouvir a voz no aparelho lhe dizer alguma coisa que não o confortou.
Ruan desligou o celular e depressa cruzou a porta do escritório, vendo no corredor Thalia ir-se apressadamente com a irmã lhe segurando a mão.
- Thalia! - ele chamou-a, no que ela travou os passos, fechou com força os olhos e mordeu os lábios, girando o corpo e mirando o olhar em Ruan.
- Eu ia... Estava indo... Estava procurando minha irmã! - disse de modo desajeitado Thalia, puxando a irmã para perto - Mas já a encontrei.
- Está se sentindo melhor? - Ruan perguntou, como não tivesse achado importância na justificativa de Thalia.
- Não sei se posso dizer que estou realmente melhor... Mas vou ficar.
Ruan esboçou um sorriso que desconsertou Thalia imediatamente, fazendo-a perder a voz e se tornar aquela menina tímida, dona de um olhar bobo. Só que, por ser uma criança e não entender o que se passava na mente e no coração de dois adultos quando se entreolhavam, Celina apertou o pulso da irmã para chamar sua atenção e Thalia baixou o rosto para olhá-la.
- Lia, o detetive e eu jogamos xadrez e ele pegou três princesas minhas! - contou a menina.
- Princesas num jogo de xadrez? - estranhou Thalia, mirando novamente o olhar em Ruan e esse deu três passos mais à frente, à medida que sorria.
- Substituímos os peões - Ruan explicou a Thalia.
- Lia, por que você não joga com o detetive também? - sugeriu Celina, olhando para Thalia e pulando com empolgação.
- É, Lia, seria ótimo competir com a senhorita - disse Ruan, com os olhos fitos na moça.
- Não sei... Eu não sou muito boa em xadrez - Thalia falou.
- Por isso mesmo - Ruan deu uma risada e Thalia riu com ele - E também te ajudará a descontrair a mente um pouco.
- Bom...
- Se quiser, também pode jogar com princesas - Ruan brincou.
- Vai, Lia! Joga! - Celina dizia e sacudia a barra do vestido da irmã.
- Está bem, está bem, eu me rendo - falou Thalia, com as mãos levantadas e se aproximando de Ruan, enquanto ele a recebia com um sorriso de satisfação. Celina seguiu a irmã, porém, Ruan a barrou.
- Princesa, você não disse que ia pedir a Maria que lhe fizesse um daqueles deliciosos bolos? - inventou Ruan, curvando a coluna para chegar perto da menina.
- Eu não disse... - ela tentou desmentí-lo, mas ele se agachou e, sem Thalia perceber, entregou-a um doce e piscou o olho - Tá!
Assim Celina correu para fora dali e Ruan e Thalia adentraram no escritório para jogarem xadrez.
~*~
Concentrado no tabuleiro encima da escrivaninha, Ruan calculava mais uma jogada de sua vez, enquanto Thalia apertava os lábios com apreensão, pois já tinha perdido muitas peças.
- Xeque! - disse Ruan, depois de movimentar seu "cavalo".
- Eu disse que não sou boa em xadrez - ressaltou Thalia, tirando seu "rei" de sob o ataque do adversário.
- Só acho que não deveria deixar seu rei tão exposto.
Ruan fez mais uma jogada, bem pensada, e Thalia observou suas peças, indecisa de qual mover dessa vez. Ruan notou a dificuldade dela.
- Vou te ajudar - ele disse, com o olhar nas peças de Thalia, as brancas.
- Você pode fazer isso? - ela fitou-o com estranheza.
- Se eu quiser, eu posso. Mova uma peça.
Thalia olhou para o tabuleiro e pensou um pouco, então levantou um peão, mas Ruan limpou a garganta, como um modo de dizer que não seria uma boa jogada. Thalia desistiu do "peão" e observou mais uma vez o tabuleiro; levantou o "bispo" e Ruan esfregou a nuca, murmurando e virando o rosto, no que Thalia riu e soube que aquela também não seria uma boa jogada. Tentou com outro "peão" e dessa vez Ruan jogou uma sobrancelha para cima e estendeu um pouco os lábios, com satisfação. Então Thalia confiou naquela jogada e moveu a peça, sucedendo que Ruan a derrubou com seu "cavalo" e se aproximou do "rei". Ele tinha feito Thalia errar de propósito.
- Xeque - enunciou ele, vendo a reação abismada de Thalia e deitando a cabeça para trás para dar uma forte gargalhada.
- O quê? Isso não vale! - disse Thalia, depois de um sobressalto, e Ruan continuava rindo.
- Se eu quiser, vale - ele falou, com um olhar atrevido, e gostou de ter feito Thalia também rir - Agora está encurralada, mocinha! Melhor desistir.
- Desisitir? Nunca! - Thalia estufou o peito, com coragem, mas logo seus ombros caíram ao olhar para o tabuleiro - Nem que me reste só um bispo.
- Tá, mas é bom lembrar que o jogo já acaba quando se perde o rei.
Os dois riram, mas voltaram a se concentrar no jogo. Silêncio por longos minutos. E depois da jogada de Thalia e enquanto Ruan estudava uma boa estratégia, o silêncio foi quebrado e a concentração prejudicada.
- Posso te fazer uma pergunta? - foi Thalia quem indagou.
- Agora? Sério? Quer dizer, logo agora que eu estava prestes a esmagar seu bispo com a minha torre!? - disse Ruan, soltando a peça do jogo e olhando para Thalia com um sorriso brincalhão - Brincadeira... Claro que pode.
- O que acha que vai acontecer depois de toda a verdade ser revelada? Não só sobre ter sido eu quem sumiu com as lembranças de minha avó, mas também ao descobrirem que ela não morreu.
- Bem, com certeza será uma grande surpresa... Mas lembre, Lia, que outros guardam segredos nesse caso muito mais graves que o seu e de sua avó. É mais correto nos perguntarmos como eles se defenderão.
~*Continua...