Encontro às cegas - Contos do detetive Furtado
A polícia já estava no local do crime quando o detetive Furtado chegou à Praça Estevão Barroso. Um caso de duplo homicídio envolvendo arma de fogo. As vítimas, um casal, foram alvejados cerca de três vezes cada um. Segundo laudo preliminar da balística, os disparos foram feitos à queima-roupa e, aparentemente, são de uma arma de pequeno calibre.
- O que me impressiona é a exatidão dos disparos. – Diz o legista à Furtado.
- Mas foram feitos três disparos em cada um.
- Exatamente. Mas, o que tudo indica, foi que os dois primeiros disparos em cada foram feitos em suas pernas, na altura do joelho, para evitar a fuga de ambos. O terceiro que foi o que os assassinou, na cabeça.
- Não creio que tiros à queima-roupa devam ser levados como algo de extrema maestria por parte de quem os disparou.
- Não é bem isso. Os tiros, mesmo que eles tenham sido efetuados a pouca distância, não provocaram sangramentos em demasia, o que é a principal causa da morte de quem é alvejado. Parecia que a pessoa sabia exatamente onde atirar para imobilizar e ao mesmo tempo não provocar um derramamento de sangue. E por fim, matar, sem despejar praticamente uma gota de sangue. O tiro realmente atingiu o cérebro e o desligou, no máximo provocando uma espécie de pequeno AVC pela bala alojada na cabeça de cada um deles.
- Entendi. – Furtado se vira para um policial próximo. – Já temos a identificação deles?
- Sim. São os irmãos Alberto e Amanda Tibúrcio.
- Certo. Suspeitos?
- Nada ainda, senhor.
- Testemunhas?
- Não. O crime ocorreu de madrugada. Não havia ninguém por perto.
- Então teremos que partir do zero. Quero os resultados definitivos da balística em minha mesa assim que estiverem prontos. É o final do meu turno, estou indo embora.
E se virou e partiu para o seu carro.
Dirigiu cerca de quinze minutos e parou em frente a um bar. Desceu e adentrou ao salão onde se encontrava o balcão decorado por todo tipo de bebidas por trás dele. Pediu uma dose e aguardou o barman servir-lhe. Percebeu que uma mulher o encarava. Furtado achou engraçado, bebeu de seu copo e fez um sinal para o homem preenche-lo com o líquido novamente. Ao sorver pela segunda vez, notou que a mulher não parava de fita-lo. Começou a achar aquilo constrangedor. Na terceira vez que tomou da bebida forte, criou coragem e foi ter com a mulher.
- Boa noite. Meu nome é Furtado. Não pude deixar de notar que estava olhando para mim e tive que vir aqui lhe falar: eu não sou o tipo de cara que sai para bares em busca de paquerar todas as mulheres. Eu gosto de sentar no meu canto, beber quietinho, pagar e sair. Desculpe.
A mulher começou a rir. Furtado sem entender o que se passava, perguntou o que era tão engraçado.
- Eu não estava encarando você, bobinho. Caso não tenha notado a bengala branca aqui ao meu lado, eu sou cega.
Furtado não sabia onde enfiar a cara de tanta vergonha.
- Me perdoe. Eu não quis causar qualquer inconveniente. Eu já vou me retirar.
- Senhor Furtado, espere!
- Sim?
- Deixe pelo menos eu me apresentar. Me chamo Célia.
E estendeu a mão para Furtado. Este retribuiu o gesto feito por ela e apertou-a.
- Você tem mãos firmes, porém macias. Aposto que não trabalha com ela.
Furtado deixou sair uma risada breve.
- De certa forma não. Somente quando preciso disparar uma arma.
- É policial?
- Sim. Detetive, na verdade.
- Nossa, que empolgante. Eu sou uma mera atendente de telemarketing.
- Aceita uma bebida?
- Claro.
E beberam e conversaram por um bom tempo. Se deram bem logo de cara. Uma afinidade rara brotou e cresceu entre eles. Em dado momento da conversa, Célia pediu:
- Descreva para mim como você é.
- Como assim?
- Diga para mim suas características físicas, como está se vestindo, essas coisas. Finja que está traçando o perfil de um suspeito.
- O.k. Por onde começar? Tenho um metro e oitenta e cinco de altura, noventa quilos, pele morena, cabelos lisos e castanhos, olhos castanho-escuros, dentes e dedos levemente amarelados por alguns anos como fumante. Estou usando um chapéu fedora meio desgastado, um sobretudo de couro marrom por cima de uma camisa social da polícia e jeans surrados. A única coisa que destoa do policial dos filmes e quadrinhos é que uso um sapato com bico pontudo bem lustroso, digno de um cafetão. Manco levemente para a esquerda e tenho uma tatuagem no braço do Woodstock.
Aquela descrição pareceu diverti-la. Ela sorriu e tocou o bíceps de Furtado.
- E pelo que vejo os noventa quilos não são devido a uma barriga de cerveja. Tem frequentado muito a academia da delegacia?
- De vez enquanto eu apareço por lá.
- Eu me diverti muito essa noite, detetive. Mas eu tenho que ir agora.
- Quer dizer que vai embora depois de lançar esse charme todo no final, para deixar com gostinho de quero mais.
- Exatamente. Você já tem o meu número. Me liga qualquer dia desses. Até mais ver.
O detetive acompanhou-a com o olhar até ela sumir de vista. Demorou mais do que o normal para terminar seu drink, pois ficara pensando nela. Após o último gole, pagou a conta e saiu do bar.
Já em casa, o detetive nem troca de roupas. Apenas retira o sobretudo e já se deita, completamente cansado. Cai em sono profundo em minutos. Deitara-se por volta de três da manhã e, às seis, já está de pé novamente para mais um turno.
Se encaminha para o centro da cidade para constatar se o exame de balística do caso dos irmãos Tibúrcio já está pronto. Caso contrário, faria de tudo para agilizar o processo. Mas tem de desviar seu caminho pois há um chamado no centro financeiro. Mais um assassinato.
Chegando à cena do crime, vai de encontro ao legista, que já despachara o corpo. Precisava saber o que ele já descobrira.
- Olá detetive Furtado. – Saudou o legista.
- Olá. O que tem para mim?
- Uma mulher entre seus vinte e cinco e trinta anos foi assassinada com um golpe na cabeça.
- Deu para descobrir a arma do crime?
- Pelo padrão da ferida, parece um bastão ou talvez um taco.
- Algum suspeito? Testemunhas?
- Não. Estamos sem sorte.
- Quem era a vítima?
- Marquise Munhoz. Ela era uma bancária e trabalhava aqui mesmo no centro financeiro. Estamos com alguns homens investigando o banco e seus funcionários.
- Ótimo. Vou esquadrinhar a área e ver se encontro alguma pista.
O detetive andou em volta do perímetro procurando por qualquer coisa que pudesse estar ligado ao assassinato. Foi quando avistou uma câmera de segurança em um prédio próximo do local do crime. Ele foi ter com um policial que estava por perto e perguntou?
- Alguém já deu uma olhada na filmagem daquela câmera?
- A câmera não funciona. Falamos com o pessoal daquele comércio e eles disseram que ela foi danificada há dias atrás.
- Droga! O ângulo de filmagem dela seria perfeito. Teria filmado o crime inteiro. Parece até que foi de propósito, para encobrir o assassinato.
- Bom. O cara que quebrou a câmera foi preso por assaltar o comércio. Ele quebrou o equipamento para não ser filmado assaltando, mas acabou aparecendo por alguns momentos.
- Estou sem ideias. É o meu terceiro caso de assassinato empacado. – Furtado não contara a ninguém sobre o envelope que recebera e sobre a pessoa desfigurada que dizia ter matado Angelique Monterey. – Pelo menos no caso dos irmãos Tibúrcio ainda espero o laudo da balística.
- Ao terminar suas palavras, o telefone toca. É da central. O agente ao telefone o informa que realmente a arma utilizada no crime era de um calibre pequeno, porém, o mais intrigante, é que era de um revólver datado entre os séculos XVII e XVIII. Só foi possível datar a bala com a ajuda de um professor de história que presta consultoria a polícia em alguns casos.
- Estranho. Mas é uma boa coisa. Não é qualquer um que tem acesso a esse tipo de arma. Só precisaremos listar possíveis proprietários desse tipo de armamento que teremos nossos suspeitos.
- Não será preciso. – Disse o agente ao telefone. – Um par de revólveres desse período foi roubado da casa de um colecionador de armas. Uma equipe nossa já se encaminhou para o local assim que foi reportado o sumiço.
- Ótimo. O caso parece estar encaminhado. É necessário focar agora neste aqui.
Mais algumas horas esquadrinhando a área e interrogando funcionários, colegas de Marquise, e nada foi elucidado. Restava apenas à Furtado voltar para a central e escrever seus relatórios.
Já em sua mesa de trabalho, Furtado descreve com exatidão o que foi investigado nos seus mais recentes casos. Uma pilha de papel enorme para processar. Em seus mais de dez anos como detetive, e vinte e dois de corporação, já vira todo tipo de atrocidade e a maldade aflorando dos redutos mais obscuros da raça humana. Mas nada o intrigara mais do que o filme daquela pessoa irreconhecível assassinando Angelique em plena pista de dança. Lembrou da mensagem no final, dizendo que outros atos de revolução estariam por vir. O que será que significava a expressão “atos de revolução”?
Nisso, o telefone de sua mesa toca. Furtado o atende com seu mais que conhecido “pronto!”. Do outro lado, um policial diz que tem um envelope para ele na portaria. O coração do detetive logo dispara. O que poderia ser desta vez?
Ele vai de encontro ao policial que está conversando com o office boy que trouxera o pacote. O garoto que não deveria ter mais de 20 anos, masca um chiclete compulsivamente. Ao avistar o detetive, apenas pede que assine a prancheta e se vira para ir embora. Antes de ir, o detetive o interrompe:
- Espere!
- Sim?
- Há uns dias atrás eu recebi um envelope parecido. Por acaso alguém recebeu ele por mim?
- Olha, cara. Eu não sei te dizer.
- Não seria necessária minha assinatura, assim como neste aqui?
- Não necessariamente. Outra pessoa pode assinar por você.
- E não há remetente. Você sabe de onde estes pacotes estão vindo?
- Não. Eu só despacho o que a central me entrega. Não tem como saber de onde vêm.
- Obrigado.
- De volta ao seu escritório, Furtado abre o pacote, um pouco mais grosso e pesado que o anterior. Nele há uma ficha de arquivo de um criminoso, um envelope de carta lacrado e outro DVD. O arquivo, com o nome de Mauro Carrara, é extenso. Furtado abre o envelope, que contém apenas um pequeno papel com os dizeres: “Um presente meu para você”. A mensagem é feita por recortes de letras de revista, clássica de criminosos que não querem ser reconhecidos. Furtado, sem entender o que se passava, decide colocar o DVD para tocar.
Quando a imagem aparece, nota-se que se trata da cena do crime do assassinato dos irmãos Tibúrcio. Não demora muito e os dois irmãos aparecem na filmagem. Um zoom focaliza melhor os dois que brincam no meio da rua deserta. A imagem vai se aproximando e, quando os dois se espantam com a aproximação de um estranho os disparos são feitos. Quatro estampidos altos e os dois caem no chão. Eles choram e clamam por misericórdia. Quem filma os dois caídos parece hesitar um pouco, mas por fim, dá os tiros de execução em ambos.
A imagem some e, quando reaparece, novamente mostra uma pessoa desfigurada por algum programa de computador. Ela fala brevemente sobre seu segundo ato de revolução e diz que a tendência será piorar se o detetive não agir rápido. E por fim, diz que queria atenção total para seus atos de revolução, por isso estava entregando o responsável pelo assassinato de Marquise Munhoz. A imagem some de vez. Furtado está estupefato.
Cerca de uma hora depois, uma batida policial na casa de Mauro Carrara assusta o homem que estava tirando um cochilo. Ele confessa o crime após os agentes encontrarem um porrete ensanguentado escondido no assoalho de madeira da casa. Furtado sabe que é um criminoso a menos nas ruas e menos trabalho para ele fazer, mas o cenário começa a preocupar o nosso herói.