~*SENHOR DAS DESCONFIANÇAS*~ cap. I

O dia na grande São Paulo já começava num todo agitado, e na mansão da família Arantes não era diferente. Os passos incessantes iam de um lado a outro fazia já meia hora. No salão principal da casa, o Sr. Carlos Arantes mantinha os joelhos fixados no piso em cerâmica enquanto a cabeça ia para debaixo do sofá maior e os olhos observavam cada lado oculto e desvendava a poeira acumulada ali, o que fazia saber da falta de esforço das empregadas para limpar dedicadamente debaixo dos móveis. Do lado, de pé estavam os empregados da mansão a contemplarem a ação de seu senhor, ainda que não lhe fosse seu o dever daquela tarefa que só o fazia estragar o tecido da calça, os empregados não se atreveram a se impor para contê-lo, deixavam que a Sra. Beatriz Arantes o fizesse.

- Carlos, levante daí - puxou-o pelo casaco de tricô cinza com vacilo, uma vez que ele continuou de joelhos -, já é a terceira vez que olha aí debaixo!

- Eu não devo ter olhado bem - disse, fazendo um arco no piso com a mão e trazendo nela um tanto de poeira e teias de aranha. Franziu o cenho com descontentamento, mas voltou a meter a cabeça debaixo do sofá -, é o último lugar que resta-me para encontrar o diário da mamãe.

- Deixe que os empregados façam isso - esquivou-se até a altura dos ombros dele para lhe murmurar no ouvido, num tom tão colérico que dava para ouvir o ranger dos dentes -, levante logo daí, ou serei obrigada a destruir todos aqueles entulhos de lembranças que ainda te restam no baú.

O Sr. Arantes inclinou a cabeça de lado para observar o rosto de sua mulher e ergueu-se do chão. Depois de um breve silêncio e de lançar um olhar cheio de desconfiança, enfrentou-a para melhor observá-la.

- Nessa sua tamanha raiva ao citar as coisas de minha mãe, eu poderia supor que talvez seja coisa sua sumir com o diário, só com o intuito de aborrecer-me - soltou as palavras com um mínimo de furor.

- Eu teria mil formas para te aborrecer, Carlos, mas nenhuma delas incluiria o diário velho de sua mãe que estava guardado nem sei onde, se não só você sabe - as palavras suaram com um tom de instigação e não parecia nenhum pouco apreensiva com a impressão que elas dariam, pelo menos era o que demonstrava seu semblante tão sério. Todos que bem a conheciam sabiam que era uma mulher cheia de modos e muito preocupada com sua aparência e qualidade de vida, todavia, expressava-se de forma desdenhosa e grosseira, além de sentir demasiado prazer em humilhar as pessoas da melhor maneira que pudesse. Isso fazia com que toda sua beleza e postura se tornassem insignificantes.

- Beatriz, não é a primeira coisa que desaparece nessa casa - revidou, fazendo gestos com as mãos para melhor se expressar e sujando a testa de poeira ao passar a mão para enxugar o suor e depois elevando-a até os cabelos grisalhos -, não lhe parece estranho?

- Estranho é a sua preocupação excessiva com coisas tão bobas - dessa vez o tom da voz foi mais frio do que ela desejava que fosse, ainda assim não mostrou arrependimento.

- Coisas bobas? - aproximou o rosto ao de Beatriz para vociferar - eram as valiosas lembranças que eu tinha de minha mãe, tudo aquilo não tem preço, Beatriz.

- Desisto - deu-lhe as costas e caminhou até a escada. Ficou parada de frente ao primeiro degrau, com o olhar na altura do ombro - se quer continuar revirando toda a mansão à procura dessas bobagens, eu que não vou mais interferir.

O Sr. Arantes não disse nada em resposta às últimas palavras da esposa, o que ela já esperava, era tão pouco que ele a ouvia! Ainda mais quando criticava algo que fazia.

~*~

O Sr. Arantes recebeu na tarde daquele mesmo dia a visita de seu melhor amigo, Henrique Sanches, homem também nobre e muito culto. Tinha um discreto bigode e os cabelos na medida do ombro, lisos e negros; uma fisionomia não muito comum. Eles se abraçaram como sempre acontecia quando se viam e o Sr. Arantes abriu espaço e fez um gesto para que o amigo ocupasse um assento no sofá do salão da mansão. Tendo este outro aceitado com um sorriso amigável o convite e se sentado, o Sr. Arantes também sentou-se no outro sofá, podendo assim estar de frente para seu amigo. Logo veio o mordomo com seu instinto serviçal e o Sr. Arantes não tardou com o pedido, que fez a receber o amigo com um olhar acolhedor e sem mirar para o mordomo.

- Robison, nos sirva... Café? - disse em referência ao mordomo, mas esperando saber se agradava ou não a seu amigo, que meneou positivamente a cabeça com um simples sorriso - sim, café.

- É para já, meu senhor - disse o mordomo, sem perder a postura, com as mãos unidas atrás e o peito estufado. Olhou para os dois senhores antes de poder se retirar - com suas licenças.

O Sr. Arantes somente consentiu sem dar muita importância e o mordomo se retirou. Ficando à sós, o Sr. Arantes prestou toda a sua atenção a Henrique, tinha tanta estima por aquele velho amigo que podia passar horas só o fitando a sorrir. Embora muito lhe agradace Henrique ir visitá-lo, logo lhe sobreveio uma tempestade no olhar, a qual o amigo não pôde deixar de notar.

- O que o aflige, Carlos? - perguntou Henrique, franzindo a testa depois de perder toda a graça.

- O aparento? - subiu uma sobrancelha ao perguntar.

- De fato. Eu reconheceria sua aflição até de costas e estando de ponta cabeça - exibiu um sorriso afim de animá-lo.

- Só você para ser tão idiota, Henri - conseguiu demonstrar um pequeno sorriso como resultado da brincadeira do amigo - em verdade estou aflito, coisas preciosas estão sumindo subitamente aqui na mansão e me arrepia a pele só a possibilidade de haver um ladrãozinho aqui.

- Aqui?

- Não sei - virou o rosto e fixou o olhar na parede do salão com um enorme quadro pintado a óleo -, é que somem assim de repente e ninguém ver ninguém de estranho entrando ou saindo.

- Não suspeita de mim, suspeita? - dobrou as sobrancelhas ao falar e a voz suou tão trêmula que foi impossível ocultar o medo que sentiu naquele instante.

- De maneira alguma, Henri! - balançou a cabeça de um lado a outro com rapidez para o negar - serias meu último suspeito.

- Como me alegra o saber - relaxou no sofá, soprando um ar de alívio e passando a perna direita sobre a esquerda - e como pretende resolver isso?

- Ainda não o sei.

- Neste caso - inclinou-se para frente, pondo os dois pés no chão, enquanto Carlos atentou os ouvidos para ele -, me permita lhe sugestionar um mestre na arte da investigação. Já ouviu falar de Ruan Gaspar?

- Fala daquele detetive maluco? - franziu o cenho, enquanto cruzava os braços.

- Eu diria "engenhoso". Sem sombra de dúvida ele desvendaria esse mistério. Dizem que ele é tão bom no que faz, que é capaz de descobrir todos os seus segredos só com o olhar.

Dito isso, os empregados que espiavam por trás da porta da sala de janta, o mordomo que levava em atraso o café e a Sra. Beatriz que ia descendo as escadas se entreolharam apavarados.

~*Continua...

Lyta Santos
Enviado por Lyta Santos em 16/08/2016
Reeditado em 19/10/2016
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