ELA LEMBRA-ME SHARON STONE
Ela apareceu assim, do nada. Um dia o caminhão de mudanças estacionou na Rua Gustavo Capanema e começaram a esvaziar o baú e encher a casa que antes estava alugada para o gerente do Banco do Brasil.
Soube-se alguns dias depois que ela veio do Rio de Janeiro e era escritora de contos de fantasias. Sim, uma mulher com talento literário. Sabia usar as palavras certas nas frases certas. Sabia encher uma lauda e a cabeça de seus leitores com histórias fantásticas, flertando com o surreal entremeado com coisas corriqueiras. Era também famosa pelos seus contos policiais.
Tinha nenhum amigo em Mutum e era de pouca conversa. Às vezes frequentava os melhores bares da cidade. Sentava-se a uma mesa no canto e passava um bom tempo entre goles e olhadas, observando os noctívagos da obscura cidade perdida na vastidão do sertão do leste de Minas Gerais.
Ocasionalmente, fazia-se acompanhar de um homem magro, moreno, olhos castanhos que formava um par beirando ao romântico com a loira de boa estatura, cabelos bem cuidados, sinuosa no seu olhar, no mover vagaroso dos lábios e, sobretudo, nos seus trejeitos de movimentar-se.
Alguns marmanjos não conhecia sequer uma linha da sua literatura, mas arriscaria sair da linha por um momento com aquela mulher. Ela era sósia de Sharon Stone.
Em um belo dia, o seu acompanhante ocasional não desfrutou da magia tórrida da manhã de Mutum, morreu antes na bonita casa alugada na Gustavo Capanema. Tudo indicava que o último suspiro do magricelo moreno foi precedido de uma sessão de sadomasoquismo. O corpo estava amarrado em tecido de seda na cabeceira da cama, marcas de chicotes pelo corpo e sêmen gotejado sobre o lençol. Várias estocadas com algum objeto pontiagudo na garganta, provavelmente na hora do orgasmo.
Começa aí minha investigação. Esse caso é meu. E eu, Dr. Ramos, tenho mais uma batalha de depoimentos, provas e raciocínio pela frente para montar o quebra-cabeça dessa morte. O magrelo era músico em decadência. Já havia tocado com Lulu Santos nos tempos áureos do pop-rock.
Mas a nossa Sharon Stone não estava em Mutum na noite do crime. Foi o que tudo indicava. Seu álibi era o encontro com seu editor e seu agente literário no Rio de Janeiro. Fazia dois dias que estava na cidade maravilhosa para esses compromissos básicos na agenda de uma escritora de relativo sucesso.
Consegui seu telefone com o jardineiro. Liguei para ela. Não me parecia muito abalada. Disse com uma voz ligeiramente sexy e estranha para quem acabara de perder um parceiro marital, creio.
Fiz aquela pergunta básica:
-Ele tinha algum desafeto?
-Uma discursão com o nosso jardineiro. Ele andava desconfiado do jardineiro comigo. Vivia implicando com ele. Um dia, chamou-o de gay. O rapaz musculoso ficou furioso. Se eu não entrasse no meio, era uma briga na certa. Lembro que o jardineiro o jurou de morte.
Uma funerária veio buscar o corpo. Cuidou de toda documentação e levou-o para o seu local de origem.
O depoimento do jardineiro confirmou a informação da nossa Sharon Stone. Entre ele e o magrelo rolava algumas animosidades. Segundo o jardineiro, o magrelo era metido a entender de jardins, e parecia ter ciúmes, sobretudo quando a loira estava na piscina em seu minúsculo biquini, chamando a atenção dos olhos do jardineiro.
-Quem vai deixar de olhar pr’aquilo, doutor? Só se o sujeito for boiola. - Sentenciou o homem musculoso e entendido de flores.
Perguntado se já aconteceu algum lance entre ele e a escritora, ele enrolou. Nada falou. Não disse que sim e nem que não. Mas revelou seu casinho com a doméstica. Algumas vezes coincidia de estarem somente os dois e aí rolava de tudo entre eles em diferentes cômodos da casa, menos no quarto da patroa.
Mesmo que ele dissesse que sim, a pergunta é: - Se a escritora estava no Rio, quem amarrou o magrelo na cama? Quem participou daquela brincadeira antes do sujeito morrer trucidado?
Uma hipótese. O magrelo quis usufruir da fêmea do jardineiro numa vingança do suposto caso dele com a escritora. Coisas do machismo ou do homem que tem para si uma beldade como o corpo da mulher dos contos de fantasias.
Decidi com minha equipe, que na verdade é um trio, que no dia seguinte intimaríamos o jardineiro. Apertaríamos até ele confessar que flagrou seu patrão com sua amante. Trucidou o cara e limpou o ambiente para que nada denunciasse a presença da doméstica ali.
Mas para o jardineiro não teve o dia seguinte. Amanheceu morto no jardim da casa. Era um cadáver, mas agora virou dois. O caso, sim, o caso pode ser o mesmo, ou não. A linha de investigação ficou emaranhada agora.
Novo depoimento da doméstica que em nada acrescentara ao caso. E um depoente novo na história. O agente literário da escritora loira.
Uma coincidência. Nas duas noites dos assassinatos, nem na tarde da véspera e nem nas manhãs seguintes, havia compromissos na agenda da escriba residente ocasional em Mutum.
Outra revelação interessante foi o fato de que o magrelo, o agora proprietário de duas boates no Rio de Janeiro e Nova Iguaçu, respectivamente, havia procurado outra editora com um livro de contos, supostamente subtraídos dos escritos da loira. Mas como o ex-músico e empresário da noite carioca não sabia nada dos trâmites da indústria literária, deu com os burros n’água.
Agora o depoimento dela tinha que ser pessoal. Nada por telefone. Entre a intimação e o olho no olho com a loira, passaram-se dois dias. Deu tempo de assistir os dois filmes de Instinto Selvagem.
Ela entrou triunfante na delegacia. Óculos escuros e vestido coladinho no corpo acompanhando cada curva da obra de arte da natureza. Uma autêntica loira, esculpida em mármore de Carrara. Sua entrada em minha humilde sala de trabalho perfumou o ambiente.
Estava ali na minha frente uma verdadeira Sharon Stone. Cruzou as pernas, sem que eu percebesse, e disse que estava à minha disposição.
Comecei questionando seu relacionamento com os dois defuntos. Primeiro com o magrelo sadomasoquista e depois com o jardineiro com corpo de lenhador.
Ela floreava muito suas respostas. Suas palavras entravam pelos meus ouvidos, mas aquela imagem das coxas cruzadas era mais forte que suas palavras. Eu tinha dificuldades de raciocinar pela primeira vez.
Minha caneta caiu no chão e quando abaixei para pegá-la atrás da mesa, a loira cruzou as pernas mudando de posição. Confesso que fiquei puto da vida. Eu estava ali esperando esse momento para ver se ela imitava a verdadeira Sharon Stone e dispensava a peça íntima. E qual a importância desse fato na investigação?
Duas. Primeiro eu sou homem e fã da atriz de Instinto Selvagem. Creio que minha interrogada também. Segundo, se ela for fã da Sharon Stone a ponto de imitá-la nesse detalhe na interpretação de Catherine Thammel, na obra de Richard Osborne, certamente ela também é dada a massacrar homens.
Longe de ser Nick Curran, o detetive do romance de Osborne, eu precisava concentrar-me nesse caso. Difícil, muito difícil com aqueles lábios rubros divagando sobre casos, enrolando-me, com certeza.
Terminamos com formalidades o depoimento da loira, que pegou seu carro e partiu para o Rio de Janeiro. E eu nada fiz além de arquivar o caso. Por enquanto.
Vou rever Instinto Selvagem e ler os livros da sósia de Catherine Thammel "barra" Sharon Stone. Nenhum caso me deixou tão confuso como esse. Mas a verdade ainda há de vir à tona.
NOTA DO AUTOR:
OUTROS CONTOS DA SÉRIE DR. RAMOS:
CONSELHO DE CLASSE:
http://www.recantodasletras.com.br/contospoliciais/5492377
O BRINDE:
http://www.recantodasletras.com.br/contospoliciais/5500522
Soube-se alguns dias depois que ela veio do Rio de Janeiro e era escritora de contos de fantasias. Sim, uma mulher com talento literário. Sabia usar as palavras certas nas frases certas. Sabia encher uma lauda e a cabeça de seus leitores com histórias fantásticas, flertando com o surreal entremeado com coisas corriqueiras. Era também famosa pelos seus contos policiais.
Tinha nenhum amigo em Mutum e era de pouca conversa. Às vezes frequentava os melhores bares da cidade. Sentava-se a uma mesa no canto e passava um bom tempo entre goles e olhadas, observando os noctívagos da obscura cidade perdida na vastidão do sertão do leste de Minas Gerais.
Ocasionalmente, fazia-se acompanhar de um homem magro, moreno, olhos castanhos que formava um par beirando ao romântico com a loira de boa estatura, cabelos bem cuidados, sinuosa no seu olhar, no mover vagaroso dos lábios e, sobretudo, nos seus trejeitos de movimentar-se.
Alguns marmanjos não conhecia sequer uma linha da sua literatura, mas arriscaria sair da linha por um momento com aquela mulher. Ela era sósia de Sharon Stone.
Em um belo dia, o seu acompanhante ocasional não desfrutou da magia tórrida da manhã de Mutum, morreu antes na bonita casa alugada na Gustavo Capanema. Tudo indicava que o último suspiro do magricelo moreno foi precedido de uma sessão de sadomasoquismo. O corpo estava amarrado em tecido de seda na cabeceira da cama, marcas de chicotes pelo corpo e sêmen gotejado sobre o lençol. Várias estocadas com algum objeto pontiagudo na garganta, provavelmente na hora do orgasmo.
Começa aí minha investigação. Esse caso é meu. E eu, Dr. Ramos, tenho mais uma batalha de depoimentos, provas e raciocínio pela frente para montar o quebra-cabeça dessa morte. O magrelo era músico em decadência. Já havia tocado com Lulu Santos nos tempos áureos do pop-rock.
Mas a nossa Sharon Stone não estava em Mutum na noite do crime. Foi o que tudo indicava. Seu álibi era o encontro com seu editor e seu agente literário no Rio de Janeiro. Fazia dois dias que estava na cidade maravilhosa para esses compromissos básicos na agenda de uma escritora de relativo sucesso.
Consegui seu telefone com o jardineiro. Liguei para ela. Não me parecia muito abalada. Disse com uma voz ligeiramente sexy e estranha para quem acabara de perder um parceiro marital, creio.
Fiz aquela pergunta básica:
-Ele tinha algum desafeto?
-Uma discursão com o nosso jardineiro. Ele andava desconfiado do jardineiro comigo. Vivia implicando com ele. Um dia, chamou-o de gay. O rapaz musculoso ficou furioso. Se eu não entrasse no meio, era uma briga na certa. Lembro que o jardineiro o jurou de morte.
Uma funerária veio buscar o corpo. Cuidou de toda documentação e levou-o para o seu local de origem.
O depoimento do jardineiro confirmou a informação da nossa Sharon Stone. Entre ele e o magrelo rolava algumas animosidades. Segundo o jardineiro, o magrelo era metido a entender de jardins, e parecia ter ciúmes, sobretudo quando a loira estava na piscina em seu minúsculo biquini, chamando a atenção dos olhos do jardineiro.
-Quem vai deixar de olhar pr’aquilo, doutor? Só se o sujeito for boiola. - Sentenciou o homem musculoso e entendido de flores.
Perguntado se já aconteceu algum lance entre ele e a escritora, ele enrolou. Nada falou. Não disse que sim e nem que não. Mas revelou seu casinho com a doméstica. Algumas vezes coincidia de estarem somente os dois e aí rolava de tudo entre eles em diferentes cômodos da casa, menos no quarto da patroa.
Mesmo que ele dissesse que sim, a pergunta é: - Se a escritora estava no Rio, quem amarrou o magrelo na cama? Quem participou daquela brincadeira antes do sujeito morrer trucidado?
Uma hipótese. O magrelo quis usufruir da fêmea do jardineiro numa vingança do suposto caso dele com a escritora. Coisas do machismo ou do homem que tem para si uma beldade como o corpo da mulher dos contos de fantasias.
Decidi com minha equipe, que na verdade é um trio, que no dia seguinte intimaríamos o jardineiro. Apertaríamos até ele confessar que flagrou seu patrão com sua amante. Trucidou o cara e limpou o ambiente para que nada denunciasse a presença da doméstica ali.
Mas para o jardineiro não teve o dia seguinte. Amanheceu morto no jardim da casa. Era um cadáver, mas agora virou dois. O caso, sim, o caso pode ser o mesmo, ou não. A linha de investigação ficou emaranhada agora.
Novo depoimento da doméstica que em nada acrescentara ao caso. E um depoente novo na história. O agente literário da escritora loira.
Uma coincidência. Nas duas noites dos assassinatos, nem na tarde da véspera e nem nas manhãs seguintes, havia compromissos na agenda da escriba residente ocasional em Mutum.
Outra revelação interessante foi o fato de que o magrelo, o agora proprietário de duas boates no Rio de Janeiro e Nova Iguaçu, respectivamente, havia procurado outra editora com um livro de contos, supostamente subtraídos dos escritos da loira. Mas como o ex-músico e empresário da noite carioca não sabia nada dos trâmites da indústria literária, deu com os burros n’água.
Agora o depoimento dela tinha que ser pessoal. Nada por telefone. Entre a intimação e o olho no olho com a loira, passaram-se dois dias. Deu tempo de assistir os dois filmes de Instinto Selvagem.
Ela entrou triunfante na delegacia. Óculos escuros e vestido coladinho no corpo acompanhando cada curva da obra de arte da natureza. Uma autêntica loira, esculpida em mármore de Carrara. Sua entrada em minha humilde sala de trabalho perfumou o ambiente.
Estava ali na minha frente uma verdadeira Sharon Stone. Cruzou as pernas, sem que eu percebesse, e disse que estava à minha disposição.
Comecei questionando seu relacionamento com os dois defuntos. Primeiro com o magrelo sadomasoquista e depois com o jardineiro com corpo de lenhador.
Ela floreava muito suas respostas. Suas palavras entravam pelos meus ouvidos, mas aquela imagem das coxas cruzadas era mais forte que suas palavras. Eu tinha dificuldades de raciocinar pela primeira vez.
Minha caneta caiu no chão e quando abaixei para pegá-la atrás da mesa, a loira cruzou as pernas mudando de posição. Confesso que fiquei puto da vida. Eu estava ali esperando esse momento para ver se ela imitava a verdadeira Sharon Stone e dispensava a peça íntima. E qual a importância desse fato na investigação?
Duas. Primeiro eu sou homem e fã da atriz de Instinto Selvagem. Creio que minha interrogada também. Segundo, se ela for fã da Sharon Stone a ponto de imitá-la nesse detalhe na interpretação de Catherine Thammel, na obra de Richard Osborne, certamente ela também é dada a massacrar homens.
Longe de ser Nick Curran, o detetive do romance de Osborne, eu precisava concentrar-me nesse caso. Difícil, muito difícil com aqueles lábios rubros divagando sobre casos, enrolando-me, com certeza.
Terminamos com formalidades o depoimento da loira, que pegou seu carro e partiu para o Rio de Janeiro. E eu nada fiz além de arquivar o caso. Por enquanto.
Vou rever Instinto Selvagem e ler os livros da sósia de Catherine Thammel "barra" Sharon Stone. Nenhum caso me deixou tão confuso como esse. Mas a verdade ainda há de vir à tona.
NOTA DO AUTOR:
OUTROS CONTOS DA SÉRIE DR. RAMOS:
CONSELHO DE CLASSE:
http://www.recantodasletras.com.br/contospoliciais/5492377
O BRINDE:
http://www.recantodasletras.com.br/contospoliciais/5500522