746-RELAÇÕES MUITO PERIGOSAS-Criminal
RELAÇÕES MUITO PERIGOSAS
As grandes convivências estão a um milímetro do tédio.
Nelson Rodrigues
A menina vestia uniforme da escola e a mochila deixada ao seu lado estava recheada de livros, cadernos, material escolar. O corpo jazia ao lado da importante rodovia que liga S. Paulo à baixada santista, próximo a São Bernardo do Campo. Pelos documentos na mochila, estabeleceu-se a identidade: Ana Beatriz, de 13 anos. Ao examinar livros e cadernos, os policiais encontraram duas mensagens escritas por Ana Beatriz. Em uma das cartas, dirigida à mãe, a menina dizia que “se sentia uma intrusa na família”.
A família a que se referia Ana Beatriz era uma confusão que nem mesmo Nelson Rodrigues, famoso pelas mais extraordinárias e bizarras histórias de relacionamentos, seria capaz de imaginar. Ana Beatriz era filha de Maria Luiza e de José Bento. Os dois eram separados legalmente, mas viviam numa mesma casa, onde morava também a namorada de Maria Luiza, a lutadora de boxe Bete dos Santos.
Que ambiente! Zé Bento, o pai de Ana Beatriz, um João-ninguém que não tinha onde cair morto, vivia sob o mesmo teto com a ex-esposa, com a namorada da esposa e com a filha. Vivam às expensas da boxeadora profissional, que exercia o mando na casa situada em Praia Grande, litoral de São Paulo.
Ana Beatriz: adolescente confusa e sem ter orientação nem da mãe nem do pai, não tinha bom relacionamento com a namorada da mãe. Isto está comprovado em outra carta achada no meio dos livros, da menina para Elizabete, a “namorada” da própria mãe:
Bete, sei que tenho te tratado muito mal, mas quero que saiba que não é porque não gosto de você. Mas sinto que às vezes, sou intrusa. Fico muito sozinha.
Um caldeirão que poderia entrar em ebulição a qualquer momento. E foi o que aconteceu
Um desentendimento entre a menina Ana e Elizabete. levou à agressão. Ana era uma menina de porte normal, magra sem ser franzina, mas completamente frágil ante a envergadura da boxeadora.
A mãe, em depoimento na delegacia de polícia, declarou:
— Ana Beatriz chegou da escola pelas seis horas da tarde, já estava anoitecendo. Eu estava na sala assistindo novela. Passou por mim e foi para o quarto. Daí um pouco, ouvi uma discussão de Ana Beatriz com Bete. Depois, barulho de briga. Corri para o quarto de onde vinha o barulho, que era o de minha filha. Entrei. As duas estavam atracadas, mas Bete esmurrava minha filha com violência. Avancei para ver se apartava as duas, mas Bete não largava Aninha. Segurava pela mochila e dava socos e mais socos no rosto e no peito da menina. Ela só largou aninha quando viu que a menina caiu no chão, desmaiada de tanta pancadaria. Não pude fazer nada para livrar minha filha da surra.
Suspira e, friamente, acrescentou:
— A coitadinha não teve tempo nem de tirar a mochila das costas.
A lutadora havia esmurrado Ana Beatriz até a quase a morte.
O pai alegou que estava no quintal e que ouviu uns gritos, mas pensou “essas mulheres não são capazes de viver juntas sem brigar” e sem pressa foi ao quarto onde os barulhos da briga já haviam diminuído. Tentou levantar a filha. Não conseguiu. Não esboçou o menor gesto ou falou qualquer coisa em reprimenda a Elizabete que, assumindo o comando da situação, deu ordens ao pai e à mãe:
— Não aconteceu nada. Vocês na viram nada. Foi um assaltante Vou pegar Ana e levar para um hospital.
Sem esforço, a boxeadora pegou o corpo franzino de Ana Beatriz e o colocou na parte de trás do seu carro. Saiu em disparada.
Foi a última vez que os pais de Ana Beatriz a viram com vida.
No meio do caminho, Elizabete parou o carro e, oculta pelas sombras da noite, abriu a porta e jogou a menina para fora do carro. No acostamento da estrada.
Ninguém sabe se ela ainda vivia quando foi abandonada.
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Informações policiais posteriores registram:
O corpo da menina Ana Luiza foi encontrado pela polícia no dia seguinte ao assassinato. A mochila, amarrada nas costas, forneceu a identificação da vítima e levou à prisão da mãe de Ana Beatriz, que relatou o ocorrido, incriminando Elizabete. .
Elizabete fugiu para a casa de um colega de ringue, onde ficou escondida e foi presa graças a uma denuncia anônima, dois meses depois.
A mãe foi presa e recolhida à Penitenciaria Estadual. O pai de Ana Beatriz sumiu.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 11 de setembro de 2012
Conto # 746 da Série 1.OOO HISTÓRIAS