Minha nova outra vida.

Era muito esquisito passar pelas pessoas com quem já vivera tantas emoções e não ser reconhecida por elas. Parecia que eu era um fantasma de mim mesma. Passei pela vitrine da loja em que eu trabalhava e olhei-me no espelho. Eu estava linda. Parecia mesmo outra pessoa. As mercadorias na vitrine davam vida a loja. Muito bem elaborada a vitrine estava maravilhosa.. Roupas escolhidas com cuidado da coleção para a nova estação. Eu estava parada na frente da loja a observar a vitrine quando de repente a vendedora veio até mim. Era a Kamila. Ela usava um tailleur cor de mel e uma saia justa que realçavam seu corpo, tornando-a ainda mais bonita. Ela se dirigiu a mim e disse:

_Bom dia senhora! Não quer entrar e ver de perto esses magníficos modelos?

_Não, obrigada!

_ A loja está com ofertas muito boas no interior também.

_Agora não. Talvez mais tarde. Obrigada. E me afastei. Andei uns vinte passos e olhei pela vitrine da esquina. Ela ainda estava lá. Mas olhava em volta para as pessoas e não para mim. Não me reconheceu.

De certa forma isso era um alívio. Eu, Leslie, Lyli para os íntimos, não queria ser reconhecida. As lágrimas ainda afloravam em meu rosto quando fechava os olhos. O rosto da amiga a lhe oferecer roupas sem reconhecê-la era forte demais para meu coração. Há apenas dois anos uma não saberia viver sem a outra. Cresceram juntas no bairro de Bicas e as coisas que aprontaram juntas dariam pra encher um livro de quinhentas páginas sem que se tornasse uma leitura enfadonha. Eu a considerava uma irmã. Na verdade ainda era assim. Kamila deve ter sofrido muito quando desapareci. Sofro imensamente de uma vontade incrível e quase incontrolável de revê-la e falar-lhe que era eu ali na sua frente. Não poderia, mesmo que quizesse. Eu, viva, representava risco muito alto para mim e para as pessoas que eu amo. Ainda lembro com uma clareza terrivel o dia em que tomei esta decisão.

_Não faça isso Brad!

_Porque não? Você acha que vai mandar em mim?

_Não mas acho que não é prudente deixar assim seus documentos com um estranho.

_Não se preocupe comigo. Sei me cuidar. Cuide da sua vida e não se meta.

_Só achei estranho não encontrar seus documentos aqui em casa. Não precisa ficar zangado.

Brad fez um muxoxo e calou-se.

_Brad, se acontecer alguma coisa com você o que vai ser de mim? Não pensa em mim?

_Deixa de besteira! E vê se afasta daquela sua amiguinha porque se ela se meter na minha vida pode ser muito ruim pra ela.

Ele se referia a Kamila. Viviamos grudadas no celular. Eu contava tudo pra ela.

De vez em quando eu ainda ligo pro número de Brad . Quero saber se ele ainda está lá. A voz dele do outro lado ainda responde bem tranquilo. Como se nada houvesse acontecido. Como ele pode ter celular dentro de uma prisão? Se não tivesse se afastado da amiga talvez ela estivesse na mesma situação dela. Naquele dia, sai mais cedo de casa para a loja. Tinha um feriadão e a loja estaria apinhada de gente. Era pra ganhar uma comissão bem gorda. Planejava usar o dinheiro pra me afastar de Brad. Ele era muito carinhoso na cama mas não tinha respeito por mim. Exigia mais do que me dava. Suas más companhias já estavam me preocupando. Ao final do expediente peguei uma carona com um vizinho que tinha ido a cidade e cheguei uma hora mais cedo em casa. Estava no banho quando Brad chegou com um homem. Desliguei o chuveiro e fiquei ouvindo a conversa dos dois.

_Senta aí chapa!

_E a tua Mina?

_Só chega mais tarde.

_Tá ligado que tu tem que se livrar desse encosto?

_To ligado. Mas deixa eu aproveitar um pouco mais.

_É Fria.

_To sabendo mas não vô amarelá.

_A mina é X9 chapa!

_Sei mas tu viu? A mina é uma Sprublle. Mas eu não sou brogoió. È só tu não se mete em fuá que os Gambé não desconfia de nois.

_Num ta catiando né cumpadi?

_Vo me amoitar uma hora e pegar a mina no tranco. Nem vai pedir água.

_Quando?

_Quando a gente tivé fugindo no sábado a mina vai tá presuntinho fresco.

_E a bolada, onde tu vai amoitar?

_Aqui debaixo da geladeira tem uma tábua solta e dá pra debaixo da casa onde nem gambé achou na outra revista.

_Beleza brother. Aqui tá ótimo. A grana é muito alta. Se sumisse a gente tava ferrado.

_Não vai sumir.

_Te vejo no sábado pela manhã. Aqui as 8 horas.

_Não, sábado a tarde é melhor. Tenho que fazer o serviço na mina primeiro.

_Show

Era quarta feira. Eu sabia que era de mim que eles estavam falando. Fugi pela janela do quarto e ele não ficou sabendo que ouvi a conversa deles. Cheguei no horário de sempre e antes de entrar em casa pedi pro vizinho pra não contar ao Brad que me dera carona pois ele era muito ciumento. Entrou em casa como se nada houvesse acontecido. Disse que tava um caco e fui continuar meu banho pra não dar na pista.

Brad não falou muita coisa. Naquela noite fizeram amor como nunca tinham feito antes. Eu estava um pouco tensa mas ele sabia como fazer-me relaxar. Foi maravilhoso. Se não tivesse essa nuvem negra pairando sobre nós eu acharia que ele era o príncipe dos meus sonhos. Brad saiu pra jogar baralho com os homens da rua como sempre fazia e só voltava as onze horas da noite. Eram apenas 20 horas. Olhei o tal buraco e fiquei muda de espanto. Ali havia muitos milhões de dólares. Nem dava pra contar. Deveria ser dinheiro do tráfico mas eu não queria nem saber. Aquele dinheiro salvaria minha pele. No dia seguinte acordei cedo, peguei a mala vazia de roupas, e peguei o dinheiro arrumando nela com cuidado. Não levei nada comigo além da mala de dinheiro. Chamei um taxi e entrei nele bem rápido. Pedi pro taxista não revelar a ninguém que tinha me pegado ali pois estava fugindo do namorado que queria matar-me. Ele disse pra mim ficar descansada. Tava acostumado com o sigilo da favela. Instalei-me em um hotel no centro da cidade e pagei adiantado por duas semanas. Procurei por uma clínica de cirurgia plástica e encomendei uma cirurgia para me parecer com uma atriz famosa. O médico inescrupuloso sabia fazer isso como ninguém. Ficaria perfeito mas custaria uma grana alta. Paguei a metade adiantado e o restante pagaria depois da cirurgia. Pintei pessoalmente os cabelos de ruivo. Alisei as mexas que antes eram cachos lindos e fiz documentos falsos em nome de Lisandra Kuskovisky. Depois da cirurgia plástica, tirei as ataduras e nem me reconheci. Mais alguns dias sem poder ver a luz do sol. Depois sai do hospital. Paguei também a um dentista pra mudar meus dentes por uma ponte fixa, muito doloroso por sinal. Para completar pus lentes de contato azuis. Leslie sumiu sem deixar rastros. O celular tocou durante dois dias, mas eu não atendi e por fim jogueio ship em um canal substituindo o por outro da mesma operadora em meu novo nome. Assisti o noticiário da tv. A noticia sobre meu desaparecimento era top. Todos os canais diziam que eu desapareci sem deixar rastro. Brad estava foragido como principal suspeito. Estourara uma guerra entre as facções criminosas. Provavelmente por causa do dinheiro. Brad deve ter sido acusado de roubar o dinheiro do comparsa. As vezes dava uma saudade da minha mãe e dos meus irmãos. Mas tinha medo de aparecer e Brad desconfiar. Não queria que eles corressem riscos. Só Brad sabia que eu estava viva mas ele não seria capaz de reconhecer-me. As dificuldades da minha família eram meu maior pesadelo. Faltava meu dinheiro no final do mes para ajudar nas despesas. Meu irmão Rodrigo ainda tinha dezesete anos e o Marcelo tinha só quinze. A minha mãe , viúva, vivia de fazer faxinas. Fizera o teste com Brad, apesar dele não reconhecê-la, não adiantou, ainda tinha medo.

Eram sete horas da manhã e passara por uma cafeteria da favela. Brad estava lá. Sabia que o dono da cafeteria era amigo dele e o esconderia em caso de guerra entre gangues. Entrara lá e pedira um café. Quando ele ouviu a voz dela correu para lá...

continua...

Nilma Rosa Lima
Enviado por Nilma Rosa Lima em 01/04/2015
Reeditado em 06/03/2017
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