ASSASSINO ANÔNIMO

POR M DAMER SIMAS

Existe algum crime julgado perfeito? Há quem diga que sim e que também se julgue o próprio executor.

Na penumbra do velho quarto ele observava sentado o quadro de provas e pistas, fixo na parede. Conforme o copo de vodca ia ficando vazio, um cigarro queimava lento e solitariamente repousando sobre um cinzeiro de vidro. O corpo debatia-se, quase que nadando, sobre a poça de seu próprio sangue.

ANTES

O suor descia pela sua testa, contornava o nariz e morria em seu queixo. Suas mãos estavam gélidas como um bloco recém-saído de um freezer e sua pele era branca como papel. Pela primeira vez na vida, Marcos, estava tendo que engolir o amargo gosto da derrota e da humilhação. Vinte anos como investigador, para acabar sendo subjugado pelos gritos de sua esposa Maria e pelo olhar mortal de seu filho Isaac.

A vida de carros do ano e de ternos caros teria que ficar para trás. Sua casa não era mais aquele belo e grande sobrado na zona nobre de São Paulo. Hoje, ele tornou-se morador de um pequeno quarto em um cortiço qualquer. Suas roupas passaram a ser rasgadas e batidas. A barba e o cabelo não mais conheciam pente e nem lâminas. Aquilo que havia escrito como policial havia sido levado pelo vento. Foi como se tudo estivesse registrado com giz e alguém passasse o apagador. Sua maldita existência provinha de um único objetivo: Prender o Serial Killer que havia matado até o momento dezessete mulheres de forma brutal. Era a única chance de reescrever o que o destino apagara.

Os assassinatos começaram a cerca de um ano. As mulheres foram mortas uma a uma, dia após dia sem que nada fosse esclarecido. Marcos ainda era muito respeitado pelos seus na época e então a pilha de papéis contendo o caso do assassino anônimo pousou sobre a sua mesa. A história apontava para uma direção; a de que logo o caso estaria resolvido, como de costume. O destino quis que não fosse assim. Não quis que ele se aposentasse com chave de ouro. Quase um ano depois nada estava posto em pratos limpos e o brilhante policial encontrava-se a beira da loucura. Não obstante, o seu casamento degolava-se com a própria guilhotina de estimação. Dois erros em um só. Foi à décima sétima morte que fez com que ele surtasse.

Kelly, uma morena de dezesseis anos que trabalhava como prostituta na Rua Augusta fora morta na noite do dia 27 de julho de 1987. Por ser muito bonita, havia conquistado muitos clientes fiéis e dentre tantos, Marcos era um. O corpo estava esquartejado, desmembrado. No peito da mulher desenhavam-se vinte pontadas de faca. Os mesmos vinte que estava no peito das outras mulheres. Era o sinal de que o assassino era o mesmo. As roupas, o dinheiro, as joias; nada tinha sido levado, roubado ou quebrado. Também não possuía sinal de luta, nem de violência sexual. Não fosse pelas estocadas e pelos membros separados, tudo estaria incólume. Como era de se esperar, havia uma carta contendo letras de jornais recortadas e coladas na folha branca. Formava-se a frase “Até a próxima”. Era um tom de deboche que se instalara na corporação. Uma folha da rara rosa preta sempre dormia sobre os corpos.

- Quem diabo está fazendo isso Martins? Os parâmetros são insuficientes, não há fios soltos. Só cartas e pétalas.

- Temo que não vá parar tão cedo Marcos. Já são dezoito...

- Dezessete! São dezessete mortes; Porra!

- Está bem, mas que diferença faz? Alias, nem sei o porquê desta sua obsessão. São somente putas, cara. Você devia preocupar-se mais em salvar seu casamento.

- Ela era minha AMIGA, SEU VAGABUNDO!

Ele pôs-se a empurrar seu próprio companheiro. Seu desequilíbrio mental ficava evidente agora. Logo passou a agredi-lo com socos e coronhadas. Marcos teve que ser contido por outros policiais.

- EU DEVIA TE MATAR DESGRAÇADO!

- Você está louco? Olha o que fez! Minha testa está sangrando. Você está fora de si... Devia ter vergonha disso. É por causa disso que sua mulher logo vai procurar a cama de outro. Seu louco... LOUCO!

- EU VOU TE MATAR MARTINS! ABRA A PORRA DE SUA BOCA DE NOVO E EU ATIRO EM VOCÊ! QUEM VOCÊ PENSA QUE É PARA CUIDAR DA MINHA VIDA PESSOAL? FILHO DA PUTA DE MERDA! VOCÊ ESTÁ ENVOLVIDO NISSO? EIN? CONFESSE! POR ISSO QUER QUE EU ME AFASTE NÃO É?

-SEU LOUCO! DEMENTE! DEVIA SE INTERNAR EM UMA CLÍNICA!

Marcos cuspiu nos pés de Martins e soltou-se bruscamente dos braços de seus colegas. Entrou em sua viatura e arrancou sem destino. Ninguém sabia que ele já estava fora de casa a duas semanas. Sua mulher já o deixara. Correu loucamente até encontrar uma rua escura em um subúrbio qualquer. Desligou o farol do carro e desligou o motor. Abriu o porta luvas e pegou um pequeno saco com um pó branco dentro. Nessa hora ele desligou-se do bom pai que um dia fora e do exemplar investigador.

Como um criminoso fugindo de alguém, dirigiu alucinadamente até o primeiro prostibulo que encontrou. Abandonou o carro na portaria e como um leão encontrando a sua caça, entregou-se aos prazeres carnais. Era o fim. Ali entrou um resquício de ser humano e sairia um resto de verme. Abusou das drogas e das bebidas. Não foi seletivo e nem precavido em sua aventura. Foi um ogro, um Neandertal.

Não voltou para casa depois da noitada. Dormiu como um preso, em uma cela vazia, na sua delegacia. O seu templo. Sérgio, seu supervisor foi quem vislumbrou a deprimente cena ao chegar para o serviço.

Uma garrafa de vodca na mão, vários cigarros espalhados pelo chão e outro saco de pó em seu peito. O policial pôs o dedo no pó e levou até a língua. Adormeceu. Era cocaína. Sérgio fez sobre sua própria carteira uma longa carreira com o pó e rapidamente, ocultando o gesto, cheirou tudo. Sugou para si um pouco da desgraça de Marcos. Limpou o nariz com a manga do paletó e chutou Marcos. Ali começaria o show de horrores.

- Acorda porra! O que você está fazendo aqui?

- Kelly? É você?

- Você só pode estar drogado Marcos! Isso não é postura de um policial! O que é esse pó sobre seu peito? Não creio em que meus olhos insistem em me mostrar.

- Eu... Eu... Droga! Onde estou? Sérgio? Que porra é essa?

- Eu que estou fazendo as perguntas! Que porra de pó é essa? E a bebida? O cigarro? Você está fedendo Marcos! Você está acabando com a sua vida!

- Mataram Kelly... As outras mulheres! Eu não consigo desvendar o caso, cara! Sou um fracasso.

- Você não vai mais nem procurar culpado nenhum, seu incompetente! Você está fora! Ouviu? FORA! Recomponha-se e saia daqui. Vá para sua casa até que a corregedoria o chame para depor. Não vou aceitar um policial usuário de drogas nessa delegacia. Dê-me esse saco e saia daqui AGORA!

- Seu filho da puta! PUTA! Você e Martins estão juntos nessa não é? Querem foder a minha carreira e a minha vida. Eu sempre soube disso. Ele tem inveja de mim porque sou melhor que todos vocês, Você queria ter minha vida, com minha esposa e filho. Pode pegar essa droga de pó. FODAM-SE todos vocês e aquela puta da Maria junto. Acha que eu não sei que vocês tem um caso Sérgio? Desde que eu foquei nessa investigação! Acha que sou otário não é?

- Não preciso responder nada mais para você seu porco. Você só está colhendo o que plantou. Deixe sua arma aqui juntamente com a chave de sua viatura e as provas. Vá se enterrar mais um pouco em sua sepultura privada.

Marcos arremessou o pó contra o peito de Sérgio. Jogou a arma no chão e as chaves na cela ao lado onde três presos observavam a cena, atônitos. – Vá; pega lá dentro a merda da chave seu viado de merda! Saiu da delegacia praguejando e gritando. Ao descer três degraus da escada que dava acesso a porta principal, vomitou no chão. Caminhou por mais de uma hora sem rumo pela cidade cinza e seu refúgio acabou sendo a cracolândia. Um usuário em péssimo estado, chamado Joaquin, o abordou sentado em uma calçada suja.

- Oh! Tem pedra aí; mano?

- Não!

- Então... Viu o Senna domingo?

- Não!

- E o jornal?

- Não!

- Porra! A comida do restaurante popular aqui é muito boa; sabia disso?

- Não!

- Você... Sabe sobre relatividade?

- Não!

- Entendo... Você sabe onde está; mano?

- Sim!

- Pode “crê”; mano! Aí... Você está com olheiras e... Uma menina foi morta por aqui ontem! Sabia?

- Dezoito então!

- Isso mesmo! “Até a próxima!” Se cuida ai pra não... Posso fazer uma pergunta?

- Sim!

- Tem pedra aí; mano?

- Não!

Esse era o fundo do poço. Lá era a sua verdadeira morada. Arrastou-se até sua casa. Foi levado pelos sopros do vento. As pessoas na rua viravam o rosto, faziam cara feia e tampavam o nariz quando passavam por ele. Marcos cheirava a merda, urina e vômito. Quase isolava a rua. Marcos queria morrer.

- Cracudo filho da puta...

Resmungou essa frase até encontrar seu cortiço. Quem cruzava seu caminho sentia um misto de pena e repúdio. Estava morto, só não tombara ainda.

Já era noite quando chegou. Antes que abrisse a fechadura, derrubou o molho de chaves três vezes. Desferiu socos e pontapés na porta, causando a ira dos vizinhos. Foi ofendido novamente. Ao entrar, foi direto ao velho chuveiro frio. Deixava a água bater em sua pele para que a dor quase cortante pudesse afastar os seus demônios. Deitou molhado nos lençóis esperando pegar alguma doença mortal. Desmaiou por vinte e quatro horas.

No dia seguinte, acordou com a cabeça latejando e os olhos ardendo. Sua alma havia o deixado e nada mais importava. Encheu um copo com vodca vagabunda e acendeu um cigarro. Ligou o velho televisor e mais uma vez foi assombrado. Outra morte estava sendo anunciada. Virou-se para o quadro fixo na parede e pôs-se a analisar as fotos e linhas que ligavam um caso ao outro. A voz do apresentador esfaqueava seus ouvidos com os detalhes do caso e com o anuncio do novo investigador.

Tudo aconteceu como nos outros dezoito assassinatos. Tudo igual, tudo malditamente igual. Dezenove mulheres mortas; e a culpa pesava como uma pedra imensa sobre seus ombros. Ele sabia que algo deveria ser feito. Era a hora de por um fim nisso.

Marcos vestiu uma roupa menos surrada. Pôs casaco e camisa limpos e resolveu cortar sua barba. Tudo lentamente como se fosse um ritual de libertação.

A noite estava fria e gélida. Uma fina neblina quase podia ser confundida com chuva e as luzes dos postes acendiam e apagavam quase que em sincronia. Ele caminhou cabisbaixo, com um capuz por sobre o rosto. Estava determinado a encontrar alguma prova; algo que o levasse perto do mortal assassino. Sua rota era local do crime e depois IML.

Nos arredores da ponte onde a décima nona vítima foi encontrada, nada estava preservado. A polícia e os curiosos haviam devastado a cena do crime e tornado impossível qualquer tipo de investigação minuciosa. A única alternativa seria verificar o corpo. Enganar o segurança foi fácil. Sua funcional de investigador ainda estava pendurada em seu pescoço e entrar no instituto era uma questão vital. Na gaveta 67 estava uma mulher ruiva deitada. Era como olhar para uma fotografia naquela hora. Tudo igual ao que já observara antes. Ele sabia que as respostas não estariam na sua cara e então ele inalou mais uma vez o seu combustível. Deveria ser fácil, mas não foi. A raiva logo estaria estampada em seu rosto e a velha pedra que repousava sobre seus ombros começara a pesar de novo. Quase quando estava desistindo de investigar, algo o surpreendeu.

- E ai moço. Achou algo? – Disse o porteiro do IML

- Nada. Absolutamente nada. Não consigo entender. Eu investigo isso a mais de um ano e esse maldito assassino nunca deixou uma pista derradeira. Ele parece querer se entregar, mas ao mesmo tempo zombar de mim. Acho que devo desistir mesmo. Não tenho capacidade para resolver algo complexo assim. Já deve ter passado da hora de me aposentar.

- Não sei se isso ajuda, mas uma moça esteve aqui hoje cedo. Tem imagens nas filmagens das câmeras de segurança. Se você estiver a fim de ver, podemos trocar uma sessão de cinema por um pouco desse seu pó ai.

- Pode ficar com tudo.

Marcos voltou a suar. Caminhava a passos largos em direção à sala de segurança e olhava furiosamente para sua retaguarda enquanto o vigia olhava como um retardado para o saco de pó.

- É aqui? – Perguntou Marcos. Abre logo essa porta!

- Calma ai chefia. Deixa eu equilibrar a mente.

Marcos agarrou o homem pelo colarinho da camisa e o prensou contra a parede. A saliva que voava de sua boca, proveniente de seus berros, lavou o rosto do assustado vigia.

- ABRE ESSA MERDA! ABRE LOGO ESSA PORTA SEU PUTO! EU VOU ESGANAR VOCÊ!

-CALMA! ME SOLTA ENTÃO VELHO!

Marcos o soltou e apertava as mãos de nervosismo. Ali poderia estar à solução de um caso que o levou para o buraco. Quando a porta abriu, ele logo correu e sentou frente ao tele visor. Olhava atentamente o vídeo. Uma mulher de preto aproximava-se da porta. Batia com força e o mesmo vigia a convidava a entrar. O rosto era encoberto por um lenço. Caminhavam lado a lado até a sala onde os corpos ficavam. O vigia abria a gaveta 67 e apontava para a mulher. Ela sacou de dentro do casaco uma flor preta. – Era ela! Ela que estava matando! – depositou a flor por sobre o corpo e voltou-se para a porta. Suas mãos alcançaram o lenço e seu rosto apareceu. Os olhos de Marcos cresceram. Ele olhou o vídeo dezenas de vezes. Milhões de vezes. Olhou para o vigia, sua expressão era de total espanto... Uma paulada em sua nuca! Marcos desmaiou.

A MORTE O CHAMA, DETETIVE!

- Não preciso responder nada mais para você seu porco. Você só está colhendo o que plantou. Deixe sua arma aqui juntamente com a chave de sua viatura e as provas. Vá se enterrar mais um pouco em sua sepultura privada. – Disse Sérgio!

Marcos arremessou o pó contra o peito de Sérgio. Jogou a arma no chão e as chaves na cela ao lado onde três presos observavam a cena, atônitos. – Vá; pega lá dentro a merda da chave seu viado de merda! Saiu da delegacia praguejando e gritando. Ao descer três degraus da escada que dava acesso a porta principal, vomitou no chão. Caminhou por mais de uma hora sem rumo pela cidade cinza e seu refúgio acabou sendo a cracolândia. Encontrou um viciado chamado Joaquin que compartilhou um pouco de seu veneno. Ele fumou pedra. Viajou e fumou de novo. Viajou e cheirou pó. Ele estava fora de si. Encontrou um mendigo que lhe pedira dinheiro várias vezes. Marcos tentou agredi-lo e nem em pé conseguia manter-se. O mendigo correu praguejando. Marcos rastejou até seu apartamento. Já era noite quando chegou. Antes que abrisse a fechadura, derrubou o molho de chaves três vezes. Desferiu socos e pontapés na porta, causando a ira dos vizinhos. Foi ofendido novamente.

Ele entrou e procurou o chuveiro. Achou uma gaveta com mais pó. Cheirou tudo o que podia. Ele havia acabado consigo mesmo. Hoje seria o fim de sua vida cretina. Um investigador fracassado e sem moral nenhuma. Ele abriu a gaveta logo abaixo a que continha pó. Achou uma arma. Um revólver calibre 38 com o tambor cheio. Sentou na beirada da cama e pôs a arma suavemente no ouvido. Sentiu o gélido cano da arma em sua cabeça e sabia o destino. Olhou para o chão e viu diversas rosas pretas espalhadas por seu quarto. Virou o rosto e viu recortes de jornal espalhados por todo o cobertor. Uma tesoura enferrujada e uma cola.

Seus olhos lacrimejaram. Sua mão estava firme dessa vez. A porta do quarto estrondava com batidas firmes. Os gritos de - “PAI, PAI...” – soavam como uma terrível sinfonia infernal. Então ele chorou. No primeiro soluço ele apertou o gatilho. Um disparo alto ecoou pelo pequeno quarto e então a porta foi arrombada. Seu filho Isaac viu o corpo de seu pai estendido no chão. O sangue escorria lentamente pelo furo da cabeça.

Na penumbra do velho quarto ele observava sentado o quadro de provas e pistas, fixo na parede. Conforme o copo de vodca ia ficando vazio, um cigarro queimava lento e solitariamente repousando sobre um cinzeiro de vidro. O corpo debatia-se, quase que nadando, sobre a poça de seu próprio sangue.

M Damer Simas
Enviado por M Damer Simas em 06/02/2015
Código do texto: T5128397
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