508-NO FUNDO DO POÇO- Revelação de Morte Misteriosa

Versão para Volume 08- Senhora das coroas

— Parem o enterro! -

Algumas pessoas se assustaram, mas os que carregavam o caixão continuaram a caminhar lentamente. Olhei para trás e vi que dois homens corriam na nossa direção. Era o delegado, acenando um envelope na mão direita. Atrás dele vinha Rafael, que era ao mesmo tempo coveiro e responsável pelo cemitério.

O delegado passou à frente do cortejo. Paramos. Berenice, que já estava com pressa de terminar logo toda a cerimônia, cochichou-me: Mais esta! Que será que o delegado quer?.

— O enterro não pode continuar. – Disse ele.

Os acompanhantes da cerimônia não eram muitos. Talvez vinte pessoas. Alguns amigos (e eu era uma das amigas mais antigas de Berenice), as três filhas e o filho mais velho, que estudava Medicina na capital,

Fiquei olhando, parada e surpresa com tudo aquilo. O enterro era de Jaime Coimbra, marido de Berenice, que havia desaparecido há anos. Haviam descoberto a ossada num poço seco. Uma história confusa e misteriosa. Mas, enfim, ele iria repousar no cemitério, que é onde os mortos devem ficar.

Berenice e as filhas estavam de luto fechado, os rostos abatidos e os olhos inchados. Lauro, que teria uns 25 anos e que vivia há tempos longe família, não parecia estar sentindo muito.

— Mas, quem é o senhor? O que significa isto? — Perguntou Lauro, que não conhecia o recém-chegado.

— Sou o Delegado de Polícia. Só há momentos recebi o laudo da perícia dos restos mortais do sr. Jaime. Aqui está. – E acenou novamente o envelope azul.

— E porque não podemos enterrar meu marido? — Berenice questionou, aborrecida com a interrupção.

Aproximando-se de nós, o delegado falou em tom baixo.

—Não posso entrar em detalhes aqui. Vamos interromper o enterro e conversar na sala de administração. Venham, por favor.

— E o enterro? Não vamos enterrar papai? — Perguntou Dilma, a filha mais moça.

— O administrador e o pessoal do cemitério podem levar o caixão para o necrotério, até que tudo fique esclarecido. — Disse o delegado.

Os empregados do cemitério levarfam o caixão. Para nós, a cerimônia terminou naquele momento. Fomos com o delegado. Eu e Berenice, em passos lentos, de braços dados, Os demais acompanhantes foram saindo, entre cochichos e murmúrios. Olhei para trás e vi que ninguém havia ficado no cemitério.

Quando chegamos na pequena sala do administrador do cemitério, o delegado tirou do envelope um documento, mostrando à família.

— Aqui está o laudo do exame, da perícia legal, a que foram submetidos os restos mortais do sr. Jaime Coimbra.

— E o que isto tudo tem a ver com o enterro de papai? — Lauro não se satisfaz com a explicação do delegado nem com a leitura do documento legal.

— Há um dado no laudo que precisa ser esclarecido. Apenas um detalhe. Não quero preocupar vocês. Mas tenho de investigar tudo. É coisa de rotina policial.

Berenice, cujo abatimento eu notava claramente, principalmente depois do aparecimento do delegado, não parava de chorar. Ora abraçando uma das filhas, ora amparada pelo filho. Deixei que ela encostasse a cabeça nos meus ombros, por alguns momentos, tentando consolá-la. Permaneceu com o rosto escondido entre meus cabelos. Senti suas lágrimas escorrendo, mas nada falou. Apenas soluçava.

Lauro levantou-se e se dirigiu à porta. Olhou para o delegado e falou, com voz firme:

— Por favor, me diga logo o que está acontecendo!

— Bem, vou dar todas as informações. Afinal, vocês têm o direito. Mas será muito triste para sua mãe e suas irmãs.

— Sim, fale tudo...de uma vez. – Lauro estava ansioso.

— Bem, é que no crânio há marcas de pancada ou perfuração de projétil.

— Que absurdo!

— Sim.. O médico legista levou algum tempo para constatar se o crânio se esfacelara na queda. Entretanto apresenta uma perfuração que pode ter sido causada por uma pancada forte ou estilhaçado por um tiro de revólver. Tenho a obrigação de verificar do que se trata.

— O senhor está dizendo que papai foi assassinado? — Lauro, impetuoso, não media as palavras. Notei que Berenice levou um susto quando ele fez a pergunta.

— Não tire conclusões precipitadas. — disse o delegado. — Só um novo exame dos ossos, principalmente do crânio, poderá fornecer indícios, pistas para qualquer coisa que indique morte acidental, como foi pressuposta, ou ...outra coisa.

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Os desentendimentos entre Berenice e Jaime haviam começado há mais de seis anos, quando a empresa em que Jaime trabalhava encerrou as atividades.

Jaime estava há oito meses sem trabalho. A empresa de mineração na qual ele trabalhava como chefe do escritório passara por uma situação de prejuízos constantes nos últimos anos, devido à exaustão do veio de níquel. Fechou a mina e despediu todos os empregados. A indenização fora boa, mas ele começou a beber e Berenice, a esposa, temia que o dinheiro seria consumido em álcool em pouco tempo.

— Pára de beber e vê se arranja outro emprego.

— Pra você é fácil falar. Quem é que vai empregar um cara de quarenta e oito anos, aqui na cidade?

Jaime e Berenice, casados há quase vinte e cinco anos, constituíam um casal díspar. Ele, baixo, magro, miúdo, tranqüilo no falar de no agir. Desde jovem trabalhara para a mineradora, tendo entrado como o garoto de recados e ascendeu a uma boa posição, com salário que dava para manter a família. Depois de perder o emprego e começar a beber, parecia estar encolhendo, diminuindo de tamanho.

Já Berenice era o contrário: mulher avantajada, alta, encorpada, fora professora de educação física e atualmente trabalhava como gerente de uma academia de ginástica. Mantinha-se em forma com exercícios e dietas.

O filho mais velho, Lauro, vivia na capital, onde estudava. As quatro moças ainda residiam com os pais. Raquel, a mais velha, terminara o curso de hotelaria, procurava emprego e estava noiva. Heloisa e Fátima ainda estudavam.

Moravam em um sobrado antigo, construído em imenso terreno, nos arredores da cidade. A propriedade era uma verdadeira chácara, herança do pai de Jaime. Quando crianças, os filhos percorriam o terreno de ponta a ponta, em suas brincadeiras, não havendo um só centímetro que desconhecessem. Principalmente a matinha, um pequeno bosque que começava na propriedade e se estendia além dos limites, marcados por uma precária cerca de arame farpado.

Jaime e Berenice viveram bem até a admissão de uma nova secretária na mineradora. Chamava-se Maria de Lurdes, mas era conhecida no escritório e na cidade por Marilu. Bonita, elegante, sempre bem vestida, chamava a atenção pelo seu charme. Trabalhava com Jaime, e as constantes referências dele sobre Marilu implicavam Berenice.

A esposa começou a desconfiar de Jaime, porém jamais conseguira confirmar sua suspeita. Agora, com o marido desempregado, entregando-se à bebida, o desrespeito da mulher transformava-se em rancor. Ela foi se deixando tomar pelo ciúme, um ciúme tardio, já que Marilu, também despedida pela empresa, desaparecera da cidade.

O salário de Jaime tinha proporcionado, ao longo dos anos, um bom nível de vida à família, que desejava manter. Pensou em vender parte do grande terreno. Intensamente arborizado, com uma parte intocada, um bosque onde medravam velhas árvores e vegetação rasteira que constitua um emaranhado difícil de ser penetrado. Uma pequena mina d’água nascia no interior da mata e há tempos imemoriais tinha sido canalizada até uma caixa de cimento, enorme, enterrada no chão. Esse tanque, há muito tempo sem uso, estava seco e coberto por pranchas de madeira e folhas das árvores, era quase invisível na penumbra do arvoredo.

Uma imobiliária mostrou interesse. O imóvel estava praticamente na cidade e poderia facilmente ser desmembrado em lotes. Berenice não concordava com os planos do marido.

Na véspera do desaparecimento de Jaime, tiveram uma discussão acirrada sobre a venda do lote. Era um domingo chuvoso, as filhas estavam fora e o marido tinha bebido bastante durante a manhã. Mais uma vez o casal se alterou. Começaram a conversar durante o almoço e a discussão continuou pelo resto da tarde.

— Você não tem mais capacidade para nada. Vive bêbado. Não vou deixar você vender o terreno para consumir em bebida.

— Não é bem assim, Berenice. Tenho de fazer algum dinheiro com a venda. A indenização está sendo consumida com o colégio das meninas.

— Deixa de beber que sobra dinheiro.

Não chegaram a um acordo. No auge da discussão, vendo a mulher irredutível, Jaime saiu, batendo com estrépito a porta da cozinha. Já escurecia, a tarde entrando nas sombras do anoitecer.

— Volta aqui, vamos terminar o assunto. — Berenice seguiu o marido, que se encaminha para o bosque.

O chuvisqueiro persistente empapava o solo, tornando difícil a caminhada por sob as árvores. Jaime seguiu pela trilha que levava ao tanque seco. A mulher o perseguiu,.cada vez mais furiosa, querendo continuar a discussão. .

Alcançou-o quando chegaram às proximidades do tanque. Ela o agarrou pela manga da jaqueta, puxando-o para si. Embora meio grogue, ele tentou se desvencilhar e aplicou um safanão em Berenice. Ela o empurrou e ele perdeu o equilíbrio. Bateu a cabeça num galho baixo e caiu. O chão, coberto de folhas, cedeu. As pranchas podres que cobriam a caixa d’água se abriram e pelo vão negro o corpo de Jaime desapareceu . O grito do homem finalizou quando o corpo bateu no fundo do poço.

Aterrorizada, Berenice ajoelhou-se com cuidado, tentando vislumbrar algo na escuridão. Nada viu. Nada ouviu. O silêncio era quebrado apenas pelo farfalhar das árvores e pelo gotejar do chuvisqueiro por entre as folhas.

Pensou em descer até o fundo do poço, mas não sabia a profundidade nem o que poderia encontrar lá embaixo.

— Vou telefonar para a polícia — Pensou, enquanto voltava apressada para casa. O raciocínio, porém, se sobrepôs. — Mas o que será que irão pensar? Que eu o empurrei. Vão pensar que eu fiz de propósito.

Na sua mente arguta anteviu as conseqüências que poderiam advir.

Todo mundo sabia de nossas brigas. Não vão acreditar que foi acidente.

Na porta da cozinha, limpou os pés com cuidado. Demorou-se, tentando ordenar os pensamentos a fim de tomar a decisão certa.

Vão saber logo que nós dois estávamos lá. Serei presa e condenada. Meu Deus! Estou perdida!

Dirigiu-se à geladeira, tirou a garrafa d’água, tomou um copo em longos sorvos. A água gelada a ajudou a se acalmar.

Nem minhas filhas irão acreditar em mim.

Sentou-se e ficou olhando para as árvores, através da vidraça. Pensando. Pensando numa forma de dar a notícia às filhas. A chuva começou a ficar forte.

No dia seguinte, a clara manhã de sol e o azul lavado do céu anunciavam um dia agradável, após uma semana de chuvas e dias cor-de-cinza.

Chegando à copa, onde as filhas já tomavam café, animadamente, Berenice, ainda trajando uma camisola de seda, cumprimentou:

— Bom dia, queridas.

Sentou-se à mesa. Nada dos beijinhos que distribuía a cada manhã, à hora do café. Diferente do dia radioso, mostrava-se desanimada, com olheiras. Nada comeu, apenas bebericou a xícara de café. Raquel, a mais velha das três, perspicaz, observava a mãe.

— Aconteceu alguma coisa? — Perguntou..

— Aconteceu...? Mas o que poderia ter acontecido? — Berenice respondeu com outras perguntas, não sabendo o que dizer.

— Sei lá. Tou achando a senhora estranha. — Prosseguiu Raquel.

Berenice mordeu o lábio inferior. Estava indecisa. Esmagando nas mãos um pedaço de pão, acabou por desabafar:

— Seu pai fugiu de casa. — disse ela.

— Fugiu? Fugiu como? — as três moças perguntaram a um só tempo.

— Pois é... Não dormiu em casa. Foi atrás daquela piranha. — explicou a mãe;

— Piranha? — Fátima, a mais jovem, nos seus quinze anos, não compreenda a situação.

— Aquela secretária da Mineradora. A sacana da Marilu, vocês se lembram? Tava de caso com ela.

— Mas pra onde foi papai? Deixou um bilhete, uma carta? — Inquiriu Fátima.

— De certo que pro Rio. Ela veio de lá, voltou pra lá quando foi despedida. E agora seu pai foi atrás. Sem deixar nem um aviso. — Berenice começava a ficar nervosa.

— Não acredito! — Heloisa, a do meio, entrou na conversa para defender o pai. — A senhora tem certeza? Vai ver que ele passou a noite na casa de algum amigo, em alguma festinha, e logo aparece por aqui. Já aconteceu antes.

— Conheço o Jaime. Não vale nada, é um canalha. Um beberrão.

— Mamãe! Acho melhor a gente procurar...— Propôs Raquel que parecia ser a mais sensata das quatro.

— Deixa de ser boba, Raquel. Eu sabia que isto iria acontecer mais cedo ou mais tarde. Desde que ele perdeu o emprego, que a mineradora foi fechada, ele estava muito diferente.

— Então vamos à polícia. Ela vai achar o papai pra gente. — Heloisa insistia na defesa do pai.

— Não vai adiantar nada. E o pessoal da cidade vai cair em cima da gente, com as fofocas. Vamos fingir que o canalha não existe mais..

Se Berenice pretendia fingir que o marido desaparecera de sua vida, deu os passos para tanto. Na tarde daquele mesmo dia foi ao banco e transferiu para sua conta individual todo o saldo da conta mantida em conjunto com o marido. Cancelou os cartões de crédito, na tentativa de deixá-lo sem recursos para sobreviver longe dela.

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Nos dias seguintes ao do enterro interrompido, visitei Berenice diariamente. Ela estava inconsolável e, por momentos, ficava agitada e desesperada.

— Não acredito que, depois de tantos anos, o pesadelo continua. Quando será que isto tudo vai terminar? — Ela perguntava, mesmo sabendo que não havia resposta.

Lauro não voltou para a capital. Vou ficar aqui até tudo ser esclarecido, disse Foi diversas vezes à delegacia e até ao hospital, onde o doutor Ivo e o delegado examinavam os ossos. Acho que o doutor e o delegado estão bem perdidos nestas exames dos ossos,disse uma tarde, ao voltar do hospital. Eu, que já trabalhara com o doutor Ivo, conhecia sua competência. O delegado também era homem meticuloso e suas investigações eram feitas com rigor. Por isso, eu pensava que alguma coisa de grave tinha acontecido com o marido de Berenice.

Lauro, impetuoso como todos os jovens, não sabia disfarçar seus sentimentos nem camuflar as suas descobertas. Conversava muito, e mesmo quando eu estava com eles, revelava coisas que só interessavam à família. Foi inevitável que eu ficasse sabendo, através de suas conversas, que descobrira um acordo, feito há poucos meses, entre sua mãe e uma construtora da cidade, a fim de lotear parte do terreno que lhes pertencia. Era uma propriedade grande, quase que uma chácara, dentro da cidade, que interessava à construtora. O desaparecimento do pai, decorrido o prazo legal, já tinha sido legalizado, e o negócio já tinha sido feito. Os trabalhadores haviam começado o corte das árvores e a limpeza da área, quando encontraram um poço cimentado. Era uma velha caixa d’água, enterrada no chão, coberta de folhas secas, pedaços de troncos, galhos secos e detritos. Foi quando descobriram, no fundo, um esqueleto humano. Pelas roupas e por um cartão de identidade na jaqueta podre, constatou-se tratar dos restos mortais de seu pai.

Eu estava com Berenice na manhã de quarta feira, cinco dias depois do triste dia em que o enterro tinha sido interrompido. Eram cerca de dez horas, quando Lauro chegou, afobado. Disse para Berenice:

— A senhora tem de ir comigo à delegacia. O delegado tem uma informação importante.

Berenice olhou para mim e pediu: Venha comigo, por favor. Quando chegamos, o delegado ofereceu-nos cadeiras.

— Sentem-se. — Disse. — Acabo de receber o resultado da nova perícia.

— Então, delegado, está tudo esclarecido? — Lauro, como sempre, ansioso.

— Infelizmente, as notícias não são boas. A conclusão não deixa dúvidas. O seu pai, senhor Jaime Coimbra foi assassinado com uma pancada na cabeça e jogado no poço. Desapareceu por que foi vítima de um crime. Há seis anos.

ANTÔNIO GOBBO – Bhte. 1o. de março de 2006

Conto # 391 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/11/2014
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