Castigo e Crime
O nauseante e sem ritmo andar do ônibus o incomodava. Era a primeira vez que andava de ônibus. Tinha quarenta e dois anos e nunca havia entrado num táxi. E agora, sardonicamente, por uma questão de segurança estava num ônibus, veículo que sempre julgou inseguro. A visão das pessoas na rua através das janelas, paradas ou caminhando, dos automóveis e doutras randômicas figuras – como um velho fuçando a lixeira de um prédio, ou, um jovem imberbe dormindo em uma calçada- elevaram o mal-estar que nosso homem- cujo o nome não revelo, pois não sei- sentia. Isto tudo somado ao calor agonizante, que, por sua vez, era intensificado ao passar pela vidraça do extenso automóvel, fazia com que ele sentisse ainda mais raiva da natureza humana; por assim dizer, da vida; de modo que seu desígnio de fazer o que faria aumentava vigorosa e gradativamente.
Ele, o nosso homem, estava em pé. Suas mãos escorregavam, suadas, numa das barras metálicas que serviam de apoio para os passageiros. O ônibus era vermelho e ele estava em Curitiba ou São Paulo ou Fortaleza ou Porto Alegre ou não sei onde. Ele estava sujo de terra e ficou sem tomar banho por quatro dias, o que foi tarefa fácil diante da depressão que o abateu desde o ocorrido. Difícil foi sujar as roupas sem ser notado: na grande cidade sequer havia terra- firme ou mole- que se encontrasse facilmente: tudo se resumia a concreto. Mas ele deu seu jeito e o que sabemos é que agora ele está em pé no ônibus, fétido e imundo.
Ele verificou a hora, com certa dificuldade, olhando no relógio de pulso prata de um velho que ia em pé ao lado dele. Não importa se era uma e meia ou quatro e vinte. Importa que ele constatou que estava ainda em tempo de desistir. O delegado responsável pelo caso, -que por sorte ou azar era um amigo de infância do nosso homem- apreciador de vinhos e literatura, assim como ele, bem que perguntou “quer que a gente prenda ou quer resolver o lance?¨. E ele, tendo decidido resolver, não poderia abdicar sua intenção de maligna justiça agora.
Lentamente passearam os olhos do nosso homem pelo ônibus. Não convém dizer se os olhos eram claros ou escuros. Importa que seus olhos paralisaram numa velha no fundo ônibus, lendo um jornal, cuja notícia de capa era:
POLÍCIA INVESTIGA ASSASSINATO BÁRBA..
Mas aí ele parou de ler. Teria disfarçado- se bem? Parecia um homem pobre? Alguém o reconhecia? Ou seria o nervosismo? “não há justiça nessa porra de país, além do que ele é menor de idade...” disse o já citado delegado, cujo o nome eu ignoro e não interessa.
Em definitivo, ele teria de fazer justiça sozinho. O ônibus para e entra uma moça com uma revista, e com algum sacrifício ele constata a notícia da revista enrolada na mão da moça, parada a contar moedas diante do cobrador:
SEM SINAL
FILHA DE EMPRESÁRIO, ESTUPRADA E MOR...
E desviou os olhos. E notou que era ali mesmo que devia descer. E desceu, suando frio, metade ódio, metade temor.
Assim que deu dois passos, deu de cara com uma banca de revistas-jornal-cigarros- e lá, novamente a notícia constava em todos os exemplares de imprensa escrita possíveis. Isso ajudou as intenções, ou melhor colocando, os atos que nosso homem realizará a seguir. Tentando caminhar como um pobre,- se é que essa é a maneira correta de pautar tal gesto- ele continuou seu trajeto. Passou por bares onde homens bebiam e riam com dentes podres, à exceção dos banguelas. Mulheres velhas que um dia foram jovens belas e adolescentes feias que um dia foram crianças bonitas e graciosas também estavam nas ruas, entrando e saindo de lojas, farmácias, lanchonetes, igrejas e postos de combustíveis.
Um tumulto contaminava sua cabeça. Mas ele prosseguiu, “desistir jamais”, era um lema que ele aprendeu nos escoteiros e veio a repetir nos difíceis momentos da firma herdada do falecido pai. Verificou o endereço. Estava perto. Subiu uma ladeira onde lhe ofereceram drogas e sexo à preço de banana- e até bananas. Logo estava no lugar.
Sabia que estava no lugar certo porque o delegado amigo deu a ele uma descrição infalível de encontro. Descrição essa que não vou realizar porque não sei. Interessa que ele abriu o portão e foi logo entrando, como alguém da casa. Deparou-se com uma porta de compensado feia de dar angustia e nela bateu, num horror equivalente a porta. Nesse momento pensou “mas só matei animais...”, pois costumava caçar sempre que conseguia tempo.
Nosso homem,- rememorando: quarenta e dois anos, olhos claros ou escuros, fedido e sujo- ouviu passos vindos de dentro da casa. Ele desejou acender um cigarro nessa espera, mas não fumava. Aliás, sequer sabia que desejava um cigarro. Desejava alguma coisa para suportar a tensão da espera. Talvez um sorvete. Talvez.
Porém, para o susto do nosso homem, a porta foi abruptamente aberta com estrondo por um fumante, com um cigarro filtro branco na boca, que ao vê-lo disse: “ih, qual é tio? Te conheço?’’. Sendo ele estranho, alheio àquele sujeito, um menino, não surpreendeu-se com tal recepção. Sentiu um nojo inenarrável de ver um pivete de quinze ou dezesseis anos fumando, com hálito de cachaça- Jamel ou 51 ou Pitú ou Velho Barreiro, não sei.
“É agora ou nunca”, pensou nosso homem. Deu um empurrão no menino e caiu por cima dele, sem susto de alguém aparecer, uma vez que o delegado o informou que o garoto era órfão de pai e a mãe trabalhava fora como diarista, numa mansão num bairro classe média alta, só voltando depois das dez da noite, quando não dormia no serviço. Com uma das mãos seguiu sufocando o moleque e com a outra tirou a pistola presa ao cinto- uma Glock modelo G 17, austríaca, calibre 9x19 mm, peso 625 g, 186 mm. Escolheu essa dentre suas pistolas porque era mais leve que a italiana Beretta e a Colt 1911, além de ser menor e mais bonita. Entre lágrimas de raiva, luto e triunfo, começou a golpear o menino, quebrando seus dentes, que se desprendiam das gengivas fazendo estalos secos. Depois foi a vez do nariz, que golpe após golpe, ia se tornando uma forma suculenta e rotunda de sangue. Quando viu que já era possível ver o osso do nariz, foi a ver de furar os olhos da criatura. Furou os olhos com os dedos, exatamente do jeito que aprendeu com o mestre particular de Tae Kwon Do, um senhor de idade há muito emigrado da Coreia do sul, exímio mestre em artes marciais.
Já arfante, cansado de tanto tocar, ver e sentir o sangue, finalmente grudou a arma na têmpora do menino já completamente desfigurado e disparou.
Foi para a rua na sequência, viu as mesmas coisas dantes. “Te dou cobertura. Vá lá e faça. Garanto que você sai livre. Livre e vingado”, assegurou o amigo delegado apreciador de vinhos e livros. E de fato, nosso homem foi lá e fez. Mas não se sentia vingado.
Muito menos livre.
Voltou de ônibus. Ao chegar em casa- não sei se apartamento ou mansão- seus olhos azuis, verdes, castanhos ou negros, encheram-se de lágrimas que cheiravam à vodka Ciroc. Viu os retratos da filha na parede da sala, na mesa de centro, em toda a parte. Chorou alto e convulsivamente, como não chorava desde a morte da mulher, que perdeu a vida- ou ganhou a morte- no parto da filha, agora morta também. A seguir foi até a sala de jantar- não sei porque a sala de jantar- e enfiou o cano da pistola na boca e puxou o gatilho- a mesma arma, a Glock modelo G 17-, manchando consequentemente o tapete persa no chão de sangue, seus miolos grudando no lustre que trouxe da última visita que fez a Paris com a filha, meses antes.
Não sei descrever o lustre.
Mas dos miolos e do sangue sei muito bem a cor:
Vermelhos.