379-O ÚLTIMO HOMEM ÍNTEGRO--Caso do Delegado Davanti
O ÚLTIMO HOMEM ÍNTEGRO
Foi o último homem íntegro que existiu por aquelas bandas. Chamava-se Egydio Dias. Aos trinta anos, era um homem miúdo. Não teria mais de metro e sessenta, magro e bem proporcionado. O rosto de traços finos, o cabelo rareando na testa e branqueando nas têmporas.Um bigode à Carlitos enfeitava o rosto sempre barbeado e muito branco. Não tomava sol por força da profissão: bancário, era caixa do banco mais importante da cidade.
Eficiente no trabalho, organizado e competente, era também secretário de diversas instituições de São Roque da Serra, pequena cidade encravada nas montanhas de Minas. Espírita, praticava a caridade, mas não freqüentava centros, pois era teórico, lia demais e não dava importância às manifestações mediúnicas.
Solteirão, residia sozinho em sua pequena mas confortável casa, não muito longe do centro da cidade. De bons costumes, não tinha vícios e cultivava boas amizades. Por isso tudo, era benquisto na cidade e bem acolhido em todas as reuniões e locais a que comparecia.
Ah! Sim, era também comunista. Inteligente, era um teórico da pequena célula comunista da cidade. E tentava explicar aos companheiros a teoria do comunismo, a dialética marxista e os nobres objetivos do socialismo que deveria ser praticado pelo partido, quando assumisse o poder. Claro que não era bem compreendido pelos companheiros, rudes e mais interessados na ação, nas manifestações de rua e nos atos de sabotagem. Atividades de amadores, sem muita organização.
Egydio estava, no final de março e princípios de abril de1964, gozando de merecidas férias na fazenda do pai, lá pelas bandas de Capitólio, além da serra da Canastra, do outro lado do rio Grande, numa região distante de tudo e de todos. Gostava de passar os dias de sossego lendo e tentando doutrinar a família com suas idéias e ideais. Lugar de difícil acesso, estradas ruins, com comunicação difícil com a vila mais próxima. Um sertão, enfim.
Foi lá que chegou no dia sete ou oito de abril, um emissário de seus camaradas.
— Estourou uma revolução. O Jango fugiu e o exército tomou conta. Tão prendendo muita gente. Mandaram avisar pro senhor fugir.
Em São Roque as prisões aconteciam a torto e a direito. A delegacia de polícia fora ocupada pelo Tenente Zaqueu, que chegou com quatro soldados e assumiu a tarefa de deter todos os “agitadores”. A pequena e desorganizada célula comunista foi invadida e destruída e presos todos os elementos, a começar pelos chefes. Armelindo Lampedusa, barbeiro, modesto, um pobre coitado que vivia falando mal do governo em sua barbearia. Zeca Lima, ferreiro, que só saía de sua oficina para freqüentar as reuniões do partido, mas incapaz de matar um mosquito, diziam. Teófilo tentou fugir, saltando de uma árvore sobre o trem em movimento, caiu e quebrou o pé. Mesmo assim, arrastou-se até o curral de uma fazenda próxima, onde ficou escondido por mais de uma semana, Descoberto, o pé transformado numa imensa massa de carne putrefata, teve de ser amputado. O que não o livrou de prisão ainda no hospital. Depois, quando melhorou, foi levado para a capital
O Delegado Douglas Davante, titular da pequena delegacia, tentou protestar contra a ação do tenente, sem obter melhores condições para os presos. Aliás, enquanto eles permaneciam na delegacia, providenciara um tratamento humano para os infelizes presos políticos. Estes eram logo enviados para a sede militar, onde, segundo notícias, o tratamento era desumano e de onde Armelindo foi devolvido à família alquebrado pelas torturas, vindo a morrer seis meses após a prisão.
A operação militar na cidade fora rápida. Em uma semana, dezenas de prisões foram feitas e todos os suspeitos foram detidos e enviados para a capital. O delegado Davante suspirou aliviado quando o tenente e seus comandados deixaram a delegacia e a cidade. Alívio maior por saber que um dos elementos mais radicais, Egydio Dias, não fora encontrado. Na certa, o bancário, por sua integridade e franqueza, teria sido bastante maltratado, se fosse apanhado. Não sabia do paradeiro nem fez questão de descobrir, embora o tenente o incitasse a tomar providência para a captura do elemento “mais perigoso” da cidade, conforme sua agenda de informações.
Egydio recebeu a notícia sem se surpreender. Pela sua análise dos acontecimentos tinha certeza de que, mais cedo ou mais tarde, aconteceria um confronto entre as forças conservadoras e os partidários do presidente João Goulart.
— Preciso voltar urgente para São Roque. — Falou ao pai. — Me arruma um bom cavalo pra chegar até Capitólio.
— Cê tá louco, filho? Não ouviu o recado? Cê tem mais é que fugir. Embrenhar por esses socavões. Chega até a fazenda do cumpadre Libório. Lá ninguém te acha.
— Tenho que defender meus camaradas.
— Daqui você não sai. — Ordenou o pai.
Mas Egydio era determinado.
— Vou, sim, apesar de o senhor a mamãe não queiram. Tenho de estar com meus camaradas.
E voltou à cidade. Quando chegou, no dia doze de abril, encontrou a cidade mais calma. Foi ao banco, avisou ao gerente que no dia seguinte voltaria ao trabalho.
— Está dispensado do trabalho, Egydio. — Informou o gerente. — Aliás, acho melhor você voltar pra fazenda do seu pai, para escapar da prisão. O delegado Davante tem ordens para prendê-lo e mandá-lo para a capital.
Fiel aos companheiros, saiu da agência bancária e foi direto para a delegacia. Ao adentrar-se no gabinete do delegado, este se levantou de chofre, assustado.
— Opa! Que é que você está fazendo aqui? Cê não tinha fugido? .
— Fugido, não senhor. Estava na fazenda do meu pai e soube do golpe.
— Fala baixo! Você foi procurado, só não foi preso porque ninguém sabia onde estava. Mas agora, tem de desaparecer.
— Vim me entregar.
— O quê? Você está louco, Egydio? Não soube do que aconteceu com seus camaradas?
— Por isso mesmo vim me entregar. Não é justo eles estarem lá, presos, e eu ficar aqui solto.
— AQUI você não vai ficar, não senhor. Olhe — aconselhou o delegado — vou fazer de conta que não o vi, que você não esteve aqui na delegacia. Trate de sumir. Desapareça.
— Não senhor, quero estar ao lado dos meus amigos.
— Porra, cara, — O delegado perdeu a paciência — Não me venha com conversa. Não me obrigue a fazer o que não desejo.
— Quero ir pra capital.
A determinação de Egydio era definitiva. De nada adiantaram as palavras e conselhos do delegado, que já tinha notícias das torturas e maus tratos sofridos pelos presos na capital do estado.
— Quero estar entre meus camaradas, defendê-los e ajudá-los.
— Ficou louco? Vão te liquidar no primeiro interrogatório. Olha, as coisas aqui já esfriaram. Volta pra fazenda do seu pai, fica lá uns meses, depois você volta. Faz de conta que você nunca esteve aqui na delegacia.
— Quero ir agora pra capital.
— Então vá por sua conta e risco. Não vou prendê-lo.
— Estou me apresentando para ser preso e ir como foram meus camaradas.
Não teve jeito. A contra-gosto, Davante lavrou o ato de prisão, e encaminhou Egydio Dias à Secretaria de Segurança da capital.
O desaparecimento de Egydio Dias nunca foi esclarecido. O soldado que o levou, voltou com o documento comprovando sua entrega na Secretaria de Segurança. Teófilo, que voltou seis meses depois, mancando, disse ter visto o companheiro de relance, numa cela da prisão militar onde estivera confinado. Não pôde conversar com o amigo e companheiro de partido.
Seu Domingos Dias, pai de Egydio, pacato fazendeiro no interior do estado, não teve como ajudar o filho. Um ano depois, um médium do centro Paz e Caridade recebeu uma mensagem que seria de Egydio. Nada havia de especial na mensagem que confirmasse ser mesmo do e=bancário desaparecido.
— Lamento não ter sido mais enérgico ao recusar a entrega voluntária de Egydio. — O delegado Douglas Davante confessou numa roda de amigos, muito tempo depois. —Foi o último homem íntegro desta cidade.
Antônio Gobbo –
BH, 23 de dezembro de 2005.
Conto # 379 da Série Milistórias -