354-MISTÉRIKO NA PONTE DOS AMORES-Caso do Delegado Davanti

O Córrego Lava-pés desliza tranqüilo sob a estrutura de aço da Ponte dos Amores. É curioso como este riacho, que nasce no Morro da Pedreira, há bem uns dez quilômetros da ponte, tenha recebido o nome devido ao costume muito antigo do pessoal vindo das roças e sítios lavarem seus pés nas águas do córrego, à sombra da ponte. Chegavam para as missas dominicais ou para as festas da igreja, trazendo os calçados amarrados em pontas de varas, dependurados nos ombros ou em embornais de sacos de estopa. Não afeitos ao desconforto do uso, os homens traziam botas ou botinas e as mulheres sapatos de pequenos saltos, nos quais metiam os pés ainda molhados.

A Ponte dos Amores cruza o córrego, ligando a Vila das Mercês ao campo de futebol do Esporte Clube Elite. Construída ao mesmo tempo da ferrovia, tinha o mesmo estilo e fora pintada com a mesma tinta de cor vermelha escura dos postes e das estruturas metálicas da estrada de ferro.

Atualmente, o negro da ferrugem cobre todas as partes metálicas. O piso, constituído de grossas peças de madeira de lei, aparafusadas na estrutura metálica, já está gasto, apresentando até rachadura e buracos, que ensejam cuidados aos que por ela passam. Através dos buracos, pode-se ver o riacho correndo lá embaixo, a uns dez metros de altura. Destinada apenas ao trânsito de pessoas a pé ou a cavalo, ou a alguma rês destinada ao matadouro, tem uma largura de apenas três metros. Protegida por corrimão também de metal, que, ao contrário das outras partes metálicas, apresenta-se liso e até brilhante em alguns pontos, devido ao intenso roçar de mão dos que por ela passam.

O Córrego Lava-pés corre de leste para oeste e as casas de Vila Mercês são as derradeiras habitações da cidade de Itaqueripe. Além da ponte, apenas o campo de futebol, cuja área se confunde com os pastos adjacentes. As últimas casas aglomeradas nas proximidades da ponte constituem a ”zona”, moradas das putas. O nome da ponte é, pois, uma homenagem a elas, praticantes da mais velha profissão do mundo..

— Dona Frida, tem um home morto debaixo da Ponte.

— Deixa de sê besta, Quinzim. Num fica espalhando mentira por aí, que é muito feio.

— Num tô mintindo não. Vem pra senhora vê. — O moço deformado e retardado faz um gesto de convite.

Alarmada, a dona da Pensão da Alemã desce os degraus da casa e segue o mentecapto.É segunda-feira pela manhã, a mulher ainda está sonolenta, pois o movimento da noite anterior se estendera até de madrugada. Apenas cinqüenta metros separam sua casa da ponte, que ela faz com malevolência. Ao chegar à entrada da ponte pode ver o corpo. Trata-se, evidentemente, de um homem. De borco, está engastalhado em ramos e troncos velhos, na beira oposta do riacho. Observa que traja terno escuro e mais não dá pra ver, pois a água é escura de sujeira.

O Delegado Douglas Davante conversa com Tom Lima, companheiro de pescaria e de investigações. Tem a mesma idade de Davante, mas é um tipo completamente diferente: alto, muito magro, careca total e displicente nas maneiras e no modo de vestir. O delegado é elegante, estatura média, deve ter no máximo metro e oitenta. Cabelos grisalhos, sempre bem penteados. Usa ternos feitos sob encomenda no melhor alfaiate da cidade. Tranqüilo, a fala mansa, sempre pronunciando bem as palavras, como convém a uma pessoa investida de autoridade. A amizade dos dois vem dos bancos escolares e não foi interrompida nem mesmo quando Davante foi convocado para a guerra. Tom não pode fazer parte do contingente da FEB que fora combater na Itália. Conhecedor profundo da cidade e da região, da sua história e de seus habitantes, é um auxiliar precioso para Davante. Os dois fazem uma dupla, pois Tom, um bom vivant, campeão de sinuca, acompanha o delegado em quase todas as diligência policiais.

— Sim, é o delegado Davante. — Atende ao telefone com tranqüilidade.

— Tem um homem morto debaixo da Ponte dos Amores — A voz é de mulher, anasalada, disfarçada, com certeza.

O delegado se apruma na cadeira.

— Quem está falando?

CLIC. O telefone é desligado.

Davante olha para o telefone, antes de recolocá-lo no lugar.

— Que foi? Pergunta Tom.

— Telefonema anônimo. Diz que tem um corpo debaixo da Ponte dos Amores

— Um trote?

— Sei lá. A voz estava disfarçada. Vamos lá ver.

Sobem no jipe, única viatura da delegacia. Dois soldados vão atrás. Davante dirige e Tom vai ao seu lado.

A reunião decorria em ambiente de cordialidade. Quem visse os quatro senhores bem vestidos, todos de terno completo — paletó, calças e colete — de finas casimiras, sérios, diria que estavam tratando de negócios. Realmente, os quatro senhores estavam reunidos para conversarem sobre seus negócios. E enquanto negociam, jogam a bisca.

— Precisamos ter cuidado com Zio Giordano. O homem está conversando muito com o delegado Davante. — Diz Salvatore Montenero, entre baforadas de seu charuto caro.

Estão ao redor de uma mesa redonda, sobre a qual copos, garrafas e cinzeiros se misturam. O vinho tinto é servido em taças finas. No centro da mesa um punhado de dinheiro. Notas amarfanhadas de alto valor.

— Si. Quello carcamano está muito rebelde. — Emilio Malachiesa, que é o mais impaciente e nervoso de todos. — Temos de lhe dar uma lição.

Cesare Fieri mantém-se calado. Atendo às suas cartas. Os companheiros o observam. De olhos semicerrados, parece dormir, mas é o mais atento tanto às cartas quanto ao problema comum dos negócios:

Zio Giordano, velho comerciante, proprietário de importante loja de jóias e relógios na Praça da Matriz, está recalcitrante no pagamento da “proteção” que a Sociedade dá a todos os contribuintes. E, o que é pior, muito pior, visitou o delegado duas vezes nos últimos quinze dias.

Fabiano Croniato interrompe o silêncio.

— Non credo che Zio Giordano tenha denunciado alguma coisa a respeito da proteção. Ele é muito esperto. Mas todos os outros contribuintes já sabem que ele não quer continuar pagando.

— Vamos arrebentar a sua loja. — propõe Malachiesa, enquanto apanha mais uma carta no monte e ajunta-a às outras em sua mão. Descarta um três de paus. .

— Calma, Emilio. Esfria a cabeça. — Abrindo os olhos, Fieri vira-se para o sócio, olhando-o com desaprovação. — Podem deixar a coisa comigo.

O assunto morre ali, mas o carteado segue até mais tarde. As noites de sábado são sempre assim para os quatro sócios no negócio de proteger os comerciantes da cidade.

Pelas três da madrugada, encerram a jogatina, esvaziam as garrafas de vinho e se despedem do anfitrião, Cesare Fieri. Estava terminada mais uma reunião da sociedade conhecida à socapa como “La mano nera”, que mantinha os italianos e descendentes, residentes em Itaqueripe, sob forte pressão, intimidando-os e extorquindo-lhes dinheiro,

— Hummm! Não estou vendo ninguém por perto. — Diz Tom, ao se aproximarem da Ponte. — As putas ainda tão dormindo, as casas todas fechadas.

— Veja, lá em baixo: tem um camarada escondido. — O soldado, sentado no banco traseiro, aponta para a sombra da ponte.

— Ninguém quer aparecer, Tom. Pode ser um crime e têm medo de serem envolvidas.— Explica Douglas.

Descem pelo barranco que vai da rua de terra ao leito do córrego. A figura sob a ponte se mostra, assim que os quatro se aproximam.

— Quinzim, que tá fazendo aqui?

— Eu que vi primeiro o homem aí e avisei dona Frida.

— É um homem — Diz Galdino, um dos praças, assim que viram o cadáver de costas..

— Puxa, como está deformado

— Mas...é o Zio Giordano! — Tom é o primeiro a identificar o morto. — O dono da joalheria..

— Providenciem um lençol ou cobertor para colocarmos o homem. — Davante determina aos dois soldados, que saem correndo em direção da casa de Frida.

— Sem dúvida. É o velho Italiano. – concorda Davante. — Mas como está machucado!

— Suicídio? — pergunta Tom.

— Pouco provável. Pode ter sido acidente. — responde Davante, falando como que para si mesmo. — Ou assassinato.

Davante lembra as duas visitas que recebera recentemente do italiano. Parece que ele queria lhe dizer alguma coisa, revelar algum segredo, mas em ambas as ocasiões retirara-se da delegacia sem revelar nada.

Será que ele estaria sendo ameaçado? Quem sabe, a Mão Negra estaria por trás disso tudo. — pensa o delegado.

Ainda não são nove horas e alguns curiosos se aproximam e chegam até a ponte. Lá de cima, observam quando chegam os soldados com um lençol, que estendem quase ao lado do cadáver. Com pouco esforço, os quatro homens colocam o cadáver de costas sobre o lençol,

As feições do velho italiano são reconhecíveis, apesar dos hematomas, manchas roxas e um afundamento na testa.

— Parece que levou uma surra. Que covardia!

— É mesmo, um homem tão pacato.

— As roupas estão rasgadas.

— Cadê os sapatos?

Davante ajoelha-se cuidadosamente e inicia uma busca na roupas. O corpo é pequeno, pois quando vivo Zio Giovani não media mais que um metro e sessenta. Magro, a cabeleira branca e rala, estendido sobre o lençol que já está molhado, mais parecia um garoto, um menino de cabelos claros.

— Nenhum documento, nada nos bolsos. Nem dinheiro. — Observa um rasgão na camisa, através do qual vê uma pequena ferida no tórax.

Opa! Um corte bem na altura do coração. — Pensa Davante

Passa a mão sobre o ferida, nada mais que um corte de dois centímetros, de bordas precisas. Ao seu lado,Tom observa.

— Feito com instrumento afiado. Um punhal, uma faca bem fina... — fala Douglas, num cochicho.

— Ou um estilete.— completa Tom Lima.

— Que a morte não é acidental nem foi suicídio, está claro. = Davante comenta com o amigo. Os dois estão no jipe, voltando à delegacia, e discutem o caso.

— Um assassinato, então? — Tom indaga, querendo afirmar.

— O velho comerciante italiano aparentemente não tinha inimigos.

— Só vivia esfregando a barriga no balcão, era da loja para a casa, nos fundos do estabelecimento. Viúvo e sem filhos, vivia sozinho na enorme casa.

— E a arma do crime?

— Ah! A arma do crime... Segundo o médico legista, para atingir o coração fazendo um corte tão pequeno, quase invisível, só pode ser mesmo um estilete. Uma busca foi dada nas margens e no leito do Córrego Lava-pés da ponte para cima, até uns duzentos metros. Nada foi encontrado.

— Um estilete...estilete... — Tom repete obsessivamente. — Não sei onde já vi um estilete

— Aqui em Itaqueripe?

— Sim...acho que sim. Vou dormir com essa pergunta na cabeça e amanhã lhe direi.

— Você e seus modos estranhos de resolver problemas...— Sorrindo, Davante pára o jipe à porta da casa de Tom,

No jogo do próximo sábado, os sócios se reúnem de novo na mansão do cappo Fieri. .

— O aviso está dado. Mandei Nico avisar a todos os “clientes” que esta foi apenas uma amostra.

— O que poderá acontecer a quem não quiser colaborar...

— Mas...e se alguém desconfiar.

— Ma chè! A coisa foi bem feita. Não existe motivo para a morte do velho. A arma nunca será encontrada. — Assegura o chefe dos quatro ali reunidos, em voz rompante.

No dia seguinte, a campainha toca à porta da residência de Davante, apressando sua saída do banho.

— Tom! — abre a porta e o amigo entra num supetão. .

— Já sei onde está a arma!

— Onde?

— No Jardim da mansão do Fieri.

— Cesare Fieri? No jardim? Mas, como?

— Você já esteve lá?

— Só uma vez, numa festa de uma de suas filhas. Mas foi uma festa ã noite, e não me lembro do jardim.

— Pois é. Já estive lá diversas vezes, visitando a bela Aurora. Conheço bem aquilo lá. Entre os arbustos estão espalhadas diversas estátuas. Lembro de um grupo que representa a morte de Mercúrio. Você sabe, da peça Romeu e Julieta.

— E daí?

— Daí que neste grupo de jovens, Teobaldo está empunhando um estilete.

Apanhando o paletó, Davante toma a direção do jipe.

— Vamos lá!

A mansão de Cesare Fieri, que alguns chamavam de Capitano e outros, de Cappo, era um dos mais belos palacetes da cidade, se não o mais impressionante. Erguia-se a dois quarteirões da Praça da Matriz, em rua calçada e ocupava todo o quarteirão, com os jardins da frente e o quintal nos fundos. O proprietário tem orgulho de sua residência, que mantém sempre limpa, com pinturas quase todos os anos, e reformas que melhoram cada vez mais o imóvel.

Os jardins são muito bem cuidados. O Capitano mandou distribuir entre os canteiros, pequenas estátuas de figuras de óperas ou peças de teatro a que assistira. Por isso, chama atenção dos transeuntes, que podem ver, através do alto gradil de metal, imagens de Tristão e Isolda, num abraço permanente; o esquelético Dom Quixote empunhando a espada. Uma estátua eqüestre faz frente a um grupo de três jovens que representam o Assassinato de Mercúrio, da peça Romeu e Julieta, de Shakespeare.

Casa, jardins e esculturas merecem cuidados especiais e estão sempre limpas, fulgurantes em suas cores e em seus brilhos metálicos.

Os portões do jardim foram abertos pelo jardineiro, que trabalhava por perto. assim que Davante fez soar a buzina do jipe. Quando chegaram ao pé da elegante escadaria da entrada do palacete, um empregado veio atendê-los.

— O Capitão. Onde está o Capitão?— Davante pergunta.

— Ainda não se levantou.

— Preciso falar com ele imediatamente. — avisa ao mordomo.

Tom se dirige para uma das alamedas do jardim, e aproxima-se de uma estatuaria. Davante o acompanha.

— Sim, tem um estilete. Mas não vejo como...

— É escamoteável. Pode ser retirado da mão da estátua.

Tom, com agilidade, sobe no pedestal e alcança o estilete, que retira das mãos do personagem imóvel.

— Mas...que é isso?— Surge Fieri, ainda trajando um elegante robe-de-chambre de fina seda. O rosto afogueado e os cabelos ainda por pentear. Desce rapidamente as escadas e corre até onde estão Davante e Tom, junto ao grupo de bronze.

Tom entrega o estilete a Davante.

— Eis a arma do crime!

— Ma....chè sucede?

Davante, ao pegar o estilete, observa com seus olhos argutos a arma.

— Epa! Ainda tem sinais de sangue no cabo! — dirigindo-se ao velho italiano: — Como se explica isto, Capitano?

O velho italiano leva as mãos ao peito, num gesto dramático, e desaba no piso de ladrilhos amarelos.

— Capitano! Capitano! — O empregado, que acompanhava o patrão, tenta levantá-lo.

Davante e Tom também se agacham e tentam reanimar o velho desmaiado.

— Chame um médico. — determina Davante ao empregado. Ao mesmo tempo, coloca o ouvido ao peito do velho.

— Desmaiado, mas ainda vivo.

Tom Lima e Davante conversam na delegacia. O Delegado coloca na máquina de escrever mais uma página para continuar o relatório..

— Puxa, mas que coisa esquisita! — Admira-se Tom. — Um grupo de mafiosos no estilo da Cosa Nostra, aqui nesta pacata cidade...

— O que não é de se admirar. Essas organizações mafiosas continuam a agir. E são muito poderosas. Você sabia que a invasão da Itália, pelas forças aliadas, em 1943, só foi possível graças a acordos entre o exército americano e as máfias da Itália e da América?

— Estes quatro italianos sempre foram misteriosos. As fortunas que acumularam não têm explicação. — Acrescenta Tom.

— Quando tentei erradicar o jogo do bicho aqui na cidade, encontrei uma resistência oculta. Desconfiava que alguma sociedade secreta estava por trás do jogo do bicho, mas o silêncio das pessoas impediu as investigações. — Davante fala enquanto datilografa.

— É a “omertá”, a lei do silêncio. Já li em novelas policiais. — Diz Tom — Mas quando a coisa aperta...

— Sim. O velho Fieri ainda está no hospital, sob vigilância policial. E os seus três “sócios” foram apanhados antes que fugissem. — O delegado interrompe a escrita para responder ao amigo. — E como você viu, não têm pena nem dó das vítimas. São violentos. Felizmente a pista do estilete...

— O estilete. Foi usado por quem sabe manuseá-lo. E bem escondido. — Tom sorri, ao lembrar-se de quando viu a estátua pela primeira vez — com o estilete que podia sair da mão da figura de Teobaldo.

— Sim, o estilete. Quem jamais chegaria à arma, escondida na mão de uma estátua? — Douglas Davante conclui a última lauda datilografada do relatório policial. que enviará ao Juiz, para o julgamento dos suspeitos pelo crime da Ponte dos Amores. Puxa a folha da máquina de escrever.

— Eles confessaram?

— Ainda não. — Mas as evidências são irrefutáveis. Além do depoimento do chefe, do cappo, como dizem. Vendo a morte por perto, contou toda a história. E os comerciantes, quando souberam da prisão dos mafiosos, estão relatando todas as pressões que sofriam, os achaques, as mensalidades que eram obrigado a pagar à organização Punho de Ferro, dirigida pelos quatro “distintos” homens da nossa sociedade.—

Davante assina o relatório, coloca as folhas em um envelope pardo, levanta-se e convida Tom:

— Bem, vamos ao Fórum. Daqui pra frente, a coisa é com a Justiça.

— A Justiça cega e...

— Pára por aí, Tom.

ANTONIO GOBBO –

BHTE, 9 DE AGOSTO DE 2005 =

CONTO # 354 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 05/08/2014
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