277-PLANTÃO POLICIAL DO TENENTE MILITÃO
Foi uma doçura de menina, mimosa e cândida moça, cordata e compreensiva espôsa. Todas essas qualidades, em consonância com seu nome, não escondiam a brava mulher, ciosa de seus direitos, valente e destemida, quando pisavam nos seus calos. Não gostava de mentiras e muito menos de ser enganada. E nas poucas vezes em que saíra do sério, fora pra valer e resolver definitivamente o problema que enfrentava. Calma e tranqüila, vivia em harmoniosa convivência matrimonial com Tenente Militão, como qual se casara numa afirmativa de sua própria vontade. Tanto o pai quanto a mãe não faziam gosto daquela união.
— Mulher de soldado... Veja lá o eu vai fazer, Serena.
Manoel Militão, soldado raso ao se casar, ascendera rapidamente na carreira. Era duro na queda, valente nas diligências, osso duro de roer para os presos que ficavam sob sua guarda. Nos interrogatórios conseguia dos suspeitos as confissões mais difíceis. Logo ascendeu a postos superiores e chegou a posição de Tenente. Neste posto, era o ajudante imediato do Delegado Vitório D’Avanti na Delegacia de Polícia de São. Roque da Serra.
Seu único senão: gostava de freqüentar a casa de Zelma Polaca, na zona do meretrício, o que fazia sistematicamente nas noites de domingo.Assim como acompanhava religiosamente a esposa na missa das nove, na Matriz, assim visitava religiosamente a Polaca e suas meninas. Para a esposa, a desculpa era de um plantão semanal na delegacia, que sempre coincidia aos domingos. Chegava em casa de madrugada. Dona Serena, apesar de notar que ele chegava muito cansado e transcendendo a odores estranhos, aceitava a conversa do marido.
Moravam na esquina das ruas Alvarado com Doutor Elpídio, que estava se tornando movimentada com o trânsito cada vez maior dos automóveis. Já circulavam pela cidade diversos automóveis particulares. Uma frota de quatro carros de praça se perfilava num terreno baldio defronte à praça da matriz. Era o ponto de automóveis, que até telefone tinha!
Certa tarde, na hora do lusco fusco, quando não adianta acender os faróis mas também quando a visibilidade sem eles fica bem prejudicada, dois choferes chocaram seus automóveis na esquina, defronte à residência de Militão e Serena. Tempos difíceis aqueles, os da segunda guerra mundial. Os carros eram adaptados com o gasogênio, e respondiam mal aos comandos dos choferes. Por outro lado, as questões do trânsito eram resolvidos na conversa, acabando em entendimentos ou acordos..
Entretanto, os dois motoristas não chegaram a um acordo, e começaram uma discussão. Discussão idiota, já que a batida fora fraca; apenas os pára-choques haviam se tocado. O bate-boca entre os dois estava ficando feio.
O vozerio chamou a atenção de transeuntes e dos residentes nas vizinhanças. Dona Serena foi ver o que estava se passando. Não era nada de grave, nada em que ela pudesse ajudar.
— Chamem logo o delegado – Ela recomendou, ao ver que os dois choferes nada decidiam. E voltou pra dentro de casa. A zorra continuou.
Incomodada com a pendenga verbal, que já durava mais de meia hora, Serena pegou o revolver do marido, saiu como que possuída por trinta demônios, e empurrando a multidão, chegou até onde os dois já estavam chegando às vias de fato. Deu um tiro para o ar e ordenou:
— Tirem esses dois cata-ossos daqui, já e já. Vão resolver essa pendenga na puta que os pariu!
Os dois choferes, vendo a arma na mão e a disposição da pequena mulher, entraram cada qual em seu carro e se escafederam.
De outra feita, o marido, depois do repouso após o jantar do domingo, vestiu sua melhor roupa e, como de hábito, avisou a mulher:
— Vou dar o plantão.
Serena não conseguiu dormir naquela noite. Duas da madrugada e nada de Militão aparecer. O cuco do relógio gritou as três, e nada de Militão. Dona Serena, que já andava desconfiada do marido, decidiu sair à sua procura. Se for preciso, vou até a zona.
Mas como não era costume as mulheres saírem à noite na pequena cidade, decidiu se disfarçada. Como vou me disfarçar? Abriu o guarda-roupa, à procura de algo, e viu a farda do marido. Melhor disfarce não é possível ! Vestiu a farda.. A roupa ficou bem folgada. Melhor, assim ninguém vai me reconhecer mesmo. Colocou o quepe, escondendo os cabelos enrodilhados sobre a cabeça, apertou o cinturão e colocou o revolver na cintura.
–- Que plantão é esse, que nem arma levou? Pensou enquanto se equipava para a procura do marido.
A cidade estava deserta naquela adiantada hora da noite. Madrugada já. Dona Serena passou pelo centro: tudo fechado, nem carro de praça tinha, para ela tomar. Foi descendo pela rua Marechal Deodoro, tomou pela Frei Caneca. Tudo quieto, só ela caminhando nos pequenos círculos de claridade lançados na calçada pelas fracas lâmpadas elétricas dos postes de madeira.
Desembocou na travessa Marcondes Dias, onde alguns bares permaneciam abertos e as quatro casas das mulheres da zona estavam iluminadas. No primeiro bar, não havia nenhum cliente, o dono cochilava sentado em cadeira rente à porta. Passou direto. Na primeira casa, a de Zelma Polaca, cuja porta permanecia aberta, entrou de supetão.
O susto foi geral. Não se sabe se pelo ímpeto da entrada ou se pela estranha figura, houve uma correria geral e no salão só ficou mesmo o elegante mulato Militão.
Sem reconhecer, de imediato, a mulher naqueles trajes mal assentados, foi dando ordens:
— Soldado, fica aqui de plantão que já tou me retirando.
— Que plantão, que nada, seu safado! Passa pra casa já-já.
Militão assustou-se ao escutar a voz tão familiar, que só ele ouviu, pois estavam sozinhos na grande sala.
— Tá bom. Tá bom. O plantão já terminou. Já tava mesmo indo pra casa..
Se algum freguês ou prostituta testemunhou a cena, ninguém sabe.
— Mas alguma coisa aconteceu com o tenente — comentavam as meninas de Zelma Polaca — Depois daquela noite, ele nunca mais apareceu.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE, 2 DE ABRIL DE 2004
CONTO # 277 DA SÉRIE “MILISTÓRIAS”