276-O DELEGDO ESPECIAL-Delegado Davanti

— Não, doutor Vitório! Não e não! — De pé, o Secretário de Segurança do Estado, charuto na mão esquerda e polegar direito enfiado no suspensório, pontuava para o homem sentado à sua frente. — Não posso aceitar seu pedido de demissão. Por mais coerente que seja. O senhor tem carradas de razão. Os políticos são uma praga, interferindo em tudo, corrompendo todas as áreas, poluindo todas as nossas instituições democráticas.

— Minha decisão é irrevogável e... — Começa falando o cabo Vitório Davanti, promovido naquele momento a “doutor”.

— Sei, sei. Sei, como o senhor, que já serviu o exército, que lutou nos campos da Itália, também sei do peso de uma decisão. — A peroração do Secretário transformava-se, aos poucos, num inflamado discurso de civismo. — Estamos atravessando tempos difíceis. A queda de Getúlio, o fim da ditadura, a extinção de diversos órgãos da polícia política, estão colocando em cheque nossa estrutura policial. Na área de segurança pública temos hoje, mais do que nunca, necessidade de homens probos e íntegros como o senhor.

E o discurso continuou por mais quarenta minutos. Vitório pouco pode falar. Sentiu-se como um aluno em classe, ouvindo a explicação do professor sobre polícia, política e segurança pública. A prosopopéia do secretário deu resultados. Ao sair do gabinete, o cidadão Vitório Davanti, cabo do exército brasileiro e “doutor” pela boca do secretário, estava re-investido das funções de Delegado de Polícia de São Roque da Serra e, ainda mais, como Agente Especial da Secretaria de Segurança.

O cargo de Agente Especial fora invenção do secretário, no afã de convencer o demissionário a permanecer no cargo. Seria algo como um investigador regional, com poderes para intervir em qualquer caso mais importante, ocorrido na cidade como em toda a região, de limites não determinados.

— Sei que suas funções serão limitadas apenas pelo seu bom senso, no qual acredito. — Havia dito o secretário, antes de despedir-se de Vitório. — Como acredito na sua capacidade para resolver os casos mais complicados. Tudo vai depender do senhor. Vai ter carta branca onde quiser intervir, onde for necessária sua presença. Devemos manter sigilo desse cargo, e só a mim o senhor deverá se explicar, quando e se for o caso.

A notícia da confirmação de Vitório como Delegado de Polícia precedeu sua volta à pequena cidade. Foi recebido com homenagens pelas autoridades municipais, que o haviam escolhido para o cargo, bem como por políticos com os quais havia colidido em confronto de interesses e até mesmo por “puxa-sacos” que nada tinham a ver com sua permanência.

Organizado e metódico, o delegado — agora tratado por todos de “doutor” Vitório — passou a registrar com minúcias todas as suas atividades na polícia, numa espécie de diário, dando destaque às diligências mais importantes e criando um arquivo particular para os casos — crimes, fatos relacionados com a manutenção da ordem, e até de casos que começavam com denúncias sérias e tinham desfechos surpreendentes.

Tais registros e arquivos foram mantidos em sua residência, trancados em sua escrivaninha, cuja existência só ele e Dona Valéria, sua mulher, sabiam. Deles foram extraídas notas e idéias para muitos dos relatos que, anos mais tarde, seriam publicados como casos de ficção, contos de mistério ou policiais, num alentado volume cuja edição logo se esgotou.

Homem de poucos estudos, até a data de sua nomeação como “Delegado Especial” , resumia-se ao curso ginasial. Entretanto, a partir da investidura em cargo tão especial, começou a freqüentar cursos alternativos e de especializações em assuntos criminais. Assim, tornou-se, pela prática e pelos estudos, uma autoridade em seu ofício.

Mas a simplicidade jamais o abandonou. Acompanhava os soldados em tarefas simples, ouvia atentamente os “palpites” dos auxiliares, sempre fazendo questão pela correção de atitudes.

Uma importante investigação o levou, numa manhã de domingo, ao distrito de Lapinha, vila situada no alto do Morro do Indaial, varrida por ventania constante. Naquela manhã, especialmente gelada, Vitório sentia o frio atravessando o paletó de casimira e queria agilizar a diligência, que o levou diretamente à extremidade da única ruela, onde fora encontrado o corpo de Matias Pretinho, objeto da investigação. Ali era o reduto das prostitutas do local, que ocupavam um casarão colonial, caindo aos pedaços.

Ao chegar ao local, o delegado viu uma fileira de mulheres, vestidas pobremente, cabelos desgrenhados, sentadas em bancos ou à beira da calçada. Mostravam-se em atitudes relaxadas, esquentando-se ao sol, algumas catando piolhos em crianças. À vista da indignidade, do desleixo, das posições indecorosas (duas exibiam as coxas e até as partes mais íntimas de seus corpos), o delegado se exasperou:

— Mulheres! Tomem tento! Vejam só como estão, essas pernas abertas, mostrando tudo. Vamos, recomponham-se! Isto não é atitude de gente civilizada!

Elas fizeram ouvidos moucos. Não sabiam de quem vinha a ordem, da importância do delegado de polícia, que, aliás, nem mesmo conheciam. Uma delas, coçando a cabeça, respondeu preguiçosamente:

— É qui nóis semo puta, seu dotô.

O delegado ultrajou-se mais ainda com o palavrório da mulher.

— ”Semo” não, “SOMOS putas”! É assim que se diz: “SOMOS PUTAS”. Ouviram bem?

Outra mulher, como que acordando do marasmo, retrucou:

— Uai, o dotô também é...?

ANTONIO ROQUE GOBBO =

BELO HORIZONTE, 21.MARÇO.2004

CONTO # 276 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/07/2014
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