274-JOGO DO BINHO- Delegado Davanti

O delegado Vitório Davanti chegou rapidamente à esquina da rua Fragoso com a viela da Lapinha. Acompanhado do seu auxiliar direto, o escrivão Demétrio, se vê obrigado a afastar os curiosos para chegar ao local. A viela nada mais é que um beco sem saída, sombrio durante o dia e negro durante a noite. Nem a luz da manhã consegue clarear o local. Pouco transitado, atulhado de detritos e malcheiroso, o beco é evitado pelos moradores da pequena cidade.

Sobre um monte de pedras e tijolos quebrados, areia e pedaços de reboco , um corpo de homem está estendido. A cabeça arrebentada, a face exibe um esgar de dentes, o morto parece rir para os assistentes.

— Péssimo lugar para morrer. — Comenta Demétrio.

— Mas muito apropriado para se cometer um assassinato. — Retruca o delegado.

O chefe da polícia abaixa-se com cuidado para não pisar onde poderia haver pegadas ou alguma pista.

— Além da paulada na cabeça, foi atirado. Veja, Demétrio, o furo na camisa. Mas já estava morto quando deram o tiro. Pouco sangue na roupa.

— Serviço completo. Cruz credo. — O auxiliar não se sente bem à vista de pedaços do cérebro, espalhados por perto, sangue coagulado empastando os cabelos do morto sobre o que restou do crânio.

— É o seu Mamede. — O delegado reconhece a vítima, antes mesmo de encontrar uma carteira no bolso interno do paletó.

— Um homem tão bom... — Uma voz feminina entre o ajuntamento de curiosos se faz ouvir. — Nunca fez mal a ninguém.

— Era o dono do jogo do bicho da cidade. — Comentou Demétrio.

O jogo do bicho era a mania geral da cidade. Cem por cento de seus habitantes joga, já jogou ou jogará, um dia, no jogo do bicho. Fazendo uma fezinha, como dizem. O delegado Vitório Davanti, no curto período em que exercia a atividade, já fizera diversas diligências, prendera alguns envolvidos. Mas a praga era como a tiririca: quanto mais se arranca, mais se espalha. Brota até em chão cimentado, ruas calçadas.

Certa ocasião, quando foram presos todos os chefões do jogo, a cadeia com todas as celas ocupadas pelos contraventores, as apostas continuaram. O jogo era “descarregado” na cidade vizinha de Ribeirão Vermelho. Um coletor de apostas, o elo mais fraco da cadeia — nem por isso menos importante — foi preso com as apostas escondidas numa marmita, debaixo de repulsiva mistura de arroz com feijão, farinha de mandioca e pedaços de batata cozida. As apostas prosseguiram.

Um outro coletor foi detido: uma morena baixinha, Noêmia, de imensa cabeleira negra, era a coletora das “poules” (assim se chamavam os pequenos papéis, com os números apostados). Estava no ônibus para Ribeirão. Trazida para a delegacia, jurou inocência até que, numa tentativa de escapar, foi puxada por um soldado, pelos cabelos. Ou melhor, pela peruca, sob a qual estavam as apostas.

O pior, contudo, era o efeito devastador que causava nas classes mais pobres, entre os poucos assalariados da Tecelagem Irmãos Guimarães. As esposas de muitos operários da fábrica de tecidos eram tão viciadas que usavam dum artifício mirabolante. Retiravam, a crédito, na cooperativa de consumo dos operários, gêneros de primeira necessidade — arroz, feijão, banha, açúcar, etc. — que vendiam por preços irrisórios, à vista, para conseguir dinheiro e fazer apostas no jogo do bicho.

Pelo menos três casos tornaram-se do conhecimento geral do pessoal local: dona Nenê do seu Elpídio; Emerenciana, casada com Zico Fenemê, o motorista da firma; e dona Chiquita, que vivia com o vigia Carlos Castanho.

Quando descobriu o artifício da mulher, Zico Fenemê aplicou-lhe vigoroso corretivo: tapas, safanões e murros, que a impediram de sair de casa por mais de mês. O vigia Carlos, aparentemente mais sereno, além de proibir a cooperativa de entregar mercadorias à mulher, prometeu, em alto e bom tom, no Bar do Centro (um dos melhores “pontos” do jogo, na cidade):

— Mato esse disgraçado do Mamede, se minha mulher apostar de novo jogo do bicho.

Seu Mamede era um homem miúdo: baixo, magro, passaria desapercebido numa multidão. Mas ali em São Roque era figura conhecidíssima. Todas as tardes, entre o meio-dia e duas da tarde, o homenzinho, chapéu preto enterrado na cabeça até às orelhas, vestido no seu surrado (único?) terno de casimira azul-marinho, os sapatos muito usados, com precisão de graxa e meia-sola, uma carteira de couro debaixo do braço, era visto cruzando as ruas da cidade, indo de um “ponto” a outro, coletando as apostas.

Estendido ali, sobre o monturo de caliça, sua figura encolhera-se, parecia mais um menino, um garoto com roupas de gente grande.

— Serviço bem feito. Além da paulada, o tiro. — Demétrio dava palpites que em nada ajudavam o chefe.

— A paulada foi primeiro. O tiro foi depois. Quem o matou, queria ter a certeza de que ele não sobreviveria. Se o local não fosse tão escuro, o matador veria que só a paulada seria o suficiente. Mas, não, tinha de ter certeza. — Conversando consigo mesmo, o delegado vai pondo suas idéias em ordem. — Isto é coisa de profissional. Bandido acostumado a lidar com arma de fogo.

— Aqui na cidade, nem meia dúzia de pessoas tem revólver.

— Eu sei. — Enquanto fala, Vitório Davanti vai procurando pistas. Vira o corpo do morto. — Ah! Aqui está a bala: atravessou o peito, e alojou-se neste pedaço de tijolo. Vê, Demétrio?

Retirando o lenço do bolso do paletó, cavouca o pedaço de tijolo e tira a bala.

— Esta é a prova mais importante. Sabendo de que arma veio, encontraremos o dono e o assassino.

— Epa! Aqui nesse documento diz que o homem é turco!

— É, Demétrio. Natural de Ancara. E o nome é Mohamed Salim Elias. Confira aí.

Já era do conhecimento do delegado não só a nacionalidade de Mamede, aliás, Mohamed, como um pouco da sua vida pregressa.

O homenzinho chegara há muitos anos, antes dos anos atribulados da Segunda Guerra. Veio de São Paulo e foi trabalhar na casa de Maria Tirolesa, na zona, cuidando da sala de carteado. Dali para organizar uma banca do jogo do bicho, foi um pulo. Mamede (sempre foi assim conhecido na cidade) começou pequeno, ele mesmo bancando as apostas, isto é, pagando as apostas que acertavam no bicho apostado. Entre as prostitutas e os clientes que freqüentavam a zona, corria o boato de que Mamede teria muito dinheiro.

O próprio Vitório Davanti cruzara com Mamede, nos tempos de solteiro, quando ia de vez em quando à zona — antes de ser convocado para o exército e ir combater na Itália. O interessante é que, mesmo sendo o “dono” do jogo, Mamede fazia questão de fazer, ele mesmo, a coleta de apostas. Com dois auxiliares (sendo uma delas a miúda Noêmia, de longos cabelos negros que lhe chegavam à cintura), Mamede comandava e fazia funcionar, com eficiência, o jogo do bicho na cidade. Preso algumas vezes, nada revelou de seu passado. Sempre achava meios de se safar das grades, com seu bando.

— Demétrio, faça um levantamento de todas as pessoas que têm revolver, na cidade. Vou mandar a bala para a perícia na capital, e logo saberemos o calibre, a marca da arma que disparou o tiro. Ah! E vamos interrogar os proprietários de armas, para saber onde cada um estava na noite do crime.

Na cidade, apenas cinco pessoas eram sabidamente proprietárias de revólver. Juca Sereno era comerciante de gado, estava ausente fazia quinze dias, e levara seu revólver. Capitão Camilo, fazendeiro, mantinha sua arma na fazenda, onde, aliás, estava na noite do crime. Ricardo Sanches, agitado anarquista, era dono de um Colt, que mantinha na cintura tudo o tempo. Passara a noite no velório do cunhado, e tinha uma dezena de testemunhas a seu favor. Carlos Castanho, o vigia da Tecelagem, mantinha em seu poder uma arma, por força de seu ofício: era vigilante noturno e não dispensava a arma. E o professor Hiparco Refeira, homem de vasta cultura, com o qual . Vitório Davanti já havia trabalhado no estudo do “diário” de Ana Ariel.

Carlos Castanho estava trabalhando na madrugada do crime. Seu serviço consistia em rondar, das nove da noite às cinco da manhã, o perímetro da fábrica de tecidos, adentrando-se por todas as dependências, a fim de exercer uma severa vigilância.

— Além de não poder provar onde estava, realmente, na hora do crime, ele tinha ameaçado o Mamede de morte. — Demétrio lembra do incidente com a mulher do vigia.

— É, eu sei. Manda recolher o revólver dele. Vamos mandar com a bala, para a perícia.

O professor Refeira também não tinha um álibi para aquela noite. Como todas as noites, ficou até de madrugada em seu escritório, lendo, estudando e escrevendo. Não tinha como provar uma eventual escapada noturna.

— Nem sei pra que tenho esse revólver. Era de meu pai, e o mantenho aqui na gaveta, inutilmente. Nem sei atirar. — Foram suas primeiras declarações, quando o delegado o visitou.

— Estou meio perdido nesse caso. — Confessou o delegado. Não existem motivos, a não ser a ameaça do Carlos Castanho. Mas ele afirma que jamais usaria sua arma para matar alguém. “No máximo, atiro nas pernas, se for ladrão”, ele me afirmou. E além disso “a mulher parou de uma vez com o jogo, pois não tem mais dinheiro”, assegurou-me.

— Por que não procura m motivo na vida pregressa do Mamede? Aliás, Mohamed. O crime é muito violento, não foi feito por gente inexperiente.

— É verdade, já pensei nisso. Mas a vida de Mohamed é um mistério. Em São Paulo, já tentei descobrir, a polícia não tem nada sobre ele.

— A polícia...a polícia... Ora, Vitórioi, tem de procurar é com os patrícios. Aliás, tenho um amigo que poderá nos ajudar. Se quiser, entro em contado com ele.

— Claro, professor. Toda informação me ajudará no esclarecimento deste caso.

O professor Refeira sabia do que estava falando. Ali mesmo, em São Roque da Serra, um grego poderia ter a explicação para o cruel assassinato. Procurou o professor Odutiesque, colega que lecionava no ginásio. Se Refeira era maníaco por heráldica e pela genealogia dos habitantes da cidade, Sarvalaperbos Odutiesque era um sábio da língua portuguesa. Os alunos o chamavam de Zé Alencar, em homenagem debochada ao grande escritor. Além disso, Odutiesque tinha um interesse quase que doentio por coisas orientais. Sendo ele mesmo grego de nascença, gostava de pesquisar tudo o que estivesse relacionado com a cultura e a civilização mediterrânea.

— Claro, professor Hipólito. Vou descobrir, sim, quem foi esse Mohamed que se fazia passar por Mamede. Dê-me um tempo. Será um prazer, delegado Davanti. — A promessa foi espontânea e prometia resultados.

Vitório Davanti recebeu um telefonema do Departamento de Perícia Criminal da capital:

“A BALA É DO MESMO CALIBRE DA ARMA ENVIADA, SEGUE RELATÓRIO.”

— Cabo Josino, vá com o soldado Ramiro e me traga aqui o Carlos Castanha.

A ordem foi executada com presteza e dali a quarenta minutos, o suspeito número um dava entrada no gabinete do delegado, trazido pelos dois agentes da lei. Seguiu-se um prolongado interrogatório, durante o qual Carlos insistiu na sua inocência. Com veemência, repetiu ao delegado o que já havia dito.

— Como vou saber onde estava as três ou quatro horas? Fico rondando a fábrica. Uma noite começo por um lado, noutra noite, vou por outro. Ninguém sabe, nem eu mesmo, qual o caminho que vou fazer numa noite. É para que ninguém saiba mesmo onde estou. Mas juro por tudo quanto é sagrado que não saí da minha vigilância nessa noite — nem em qualquer outra noite.

O delegado não se convence. Manda recolher o vigia à cela. No terceiro dia após a prisão, chega o relatório oficial e por escrito, extenso e pormenorizado, com páginas cheias de diagramas e desenhos. Com o relatório, são devolvidos a bala e o revólver. O delegado imediatamente se põe a ler o calhamaço. Ao final, explode numa raiva incontida:

— Merda. Que porra de relatório é esse? Primeiro diz que a bala e a arma são do mesmo calibre, mas no final não conseguem afirmar se a bala saiu mesmo deste Colt. Assim não dá. Não prova nada contra o Carlos Castanha.

Ainda enraivecido, chama Demétrio.

— Mande soltar o Carlos. Não dá para mantê-lo preso. O relatório é uma porcaria.

O processo empacou. A única esperança estava nas diligências do professor Odutiesque. Mas o homem viajara ninguém sabia para onde. Assim se passaram quinze dias. Quando volta, procura, incontinenti, o delegado Davanti.

— Chame aqui o professor Refeira. Quero que ele ouça também o que tenho a dizer.

Perante os dois, relata o que descobriu a respeito de Mamede, aliás, Mohamed Salim Elias.

— Toda a sua vida é uma farsa. Antes de tudo, não é turco, como está em seus documentos. É grego. Nascido no norte da Grécia, perto de Montenegro. Desde jovem, esteve ligado a contrabandistas e terroristas daquela conturbada região. Quando as coisas começaram a ficar pretas na Europa, veio para o Brasil, com passaporte turco. Aqui, sempre esteve ligado ao mesmo tipo de pessoas. “Aves da mesma plumagem...” Tornou-se membro de confiança de um grupo poderoso, que alguns já ouviram falar. “A Mão Negra”. Aqui mesmo, em São Roque, durante a primeira guerra mundial, tivemos um crime que foi atribuído a essa organização. Mais poderosa do que a máfia dos italianos. Mohamed era aventureiro e jogador profissional. Entrou no jogo em São Paulo e ganhava sempre. Quer dizer, roubava sempre. Sumiu de São Paulo em 1931. Quando desapareceu, levou consigo uma fortuna, constituída de seu próprio dinheiro e dos fundos da célula da Mão Negra. O cara é atrevido. Roubar uma organização como a Mão Negra! Ninguém sabe mais nada a respeito de Mohamed.

— Agora, vamos ao que nós sabemos de Mamede. Ele chegou aqui por volta de 35. Estabeleceu-se na zona do meretrício no ramo que era especialidade de Mohamed: o jogo. Tem conhecimento e capital para peitar o jogo do bicho. Monta o esquema. Ele é o único: coleta as apostas, faz o sorteio, paga os acertadores de sorte. Todos sabemos como este jogo é manipulado. Ninguém ganha grandes prêmios, só alguns mil-réis são distribuídos às “apostas sorteadas”. Um negócio de alta velhacaria. Mas o jogo tem grandes chefões em São Paulo, no Rio. Querem dominar todo o negócio. Encontram resistência em Mamede. Em algum momento, descobrem a verdadeira identidade de Mamede. Jogo e crime são aliados no mundo inteiro. Os jogadores passam informações ao chefões da “Mão Negra”. A vingança não tarda. Mohamed foi eliminado a mando da organização da qual roubara importante quantia.

— Mas, então, o assassino...— O professor Hiparco começa.

— Não está entre nós, caro colega. O criminoso, certamente, estará em São Paulo. Ou em qualquer outra parte do país, a soldo de sua organização.

— Como é que conseguiu apurar toda essa história? — Pergunta o delegado.

— Bem, meu caro delegado, pode ter certeza que inventada não foi. Mas como consegui saber de tudo...? Bem essa é outra história. Algum dia conto para vocês.

Entre os dentes, Vitório Davanti murmura, falando consigo mesmo:

— Si non é vera, é bene trovata...

(1) – Ver “O Delegado Coerente”, nesta Coleção Milistórias

(2) – Ver “Notas Póstumas de Ana Ariel”, nesta Coleção Milistórias.

(3) – Ver “O Professor Enigmático”, nesta Coleção Milistórias.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 19 DE MARÇO DE 2004

CONTO # 274 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/07/2014
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