231-NA LONGA NOITE DE NATAL
231 — NA LONGA NOITE DE NATAL
— Vem, Cleidson, a banheira está uma delícia. Entra aqui comigo.
— Tou indo — Ele respondeu. Aproximou-se da enorme banheira de hidromassagem onde Acendina esparramava sais de banho na água. O vapor escondia as formas graciosas da mulher e disfarçava os movimentos do rapaz. As luzes do quarto do motel mal penetravam na sala de banhos. Ela entreviu apenas a sombra do homem, quando ele, assomando à margem da banheira circular, colocou a mão em sua cabeça, forçando-a para baixo, sob a água quente. Instintivamente quis gritar, mas a água entrou-lhe pela boca. Levantando as mãos, agarrou o braço que insistia em mantê-la mergulhada. Suas longas unhas entraram na carne, num aperto desesperado. O sangue do braço machucado espalhou-se pela água, tornando-a cor-de-rosa. A força da mão que a empurrava para baixo diminuiu, e ela pôde elevar a cabeça para fora d’água e respirar, tossindo e espadanando água, que salpicou os braços, o rosto e a roupa do homem.
Uma nova tentativa de grito foi frustrada por um tremendo tapa no seu rosto. Ela consegue erguer metade do corpo e segura firmemente as bordas da enorme banheira circular. Não percebe, entretanto, quando o homem, ajoelhado pelo lado de fora, saca da cintura uma faca e aplica-lhe a primeira punhalada que lhe atinge o ombro. Uivando de dor, larga a borda da banheira e tenta defender o rosto de novos golpes. Com o desespero de uma fera ferida de morte, lança o peso de seu corpo nu contra o rapaz e os dois caem fora da banheira. Ele, entretanto, continua os movimentos com a peixeira, atingindo-a no pescoço, nos seios e no abdome. Uma facada definitiva atinge de novo o pescoço. O sangue esguicha por todos os lados: a água está turva, as roupas do rapaz estão manchadas e sobre o tapete uma mancha rubra aumenta sem parar.
Enquanto a mãe era brutalmente assassinada no Motel Ponta Negra, Jarlene aguardava, assistindo a um filme antigo na televisão, a chegada do namorado. Ele havia lhe telefonado horas antes, dizendo que tinha um encontro com o pessoal da agência de modelos para a qual trabalhava, mas que viria vê-la assim que a reunião terminasse.
Absorta, via as imagens. O pensamento, entretanto, viajava, na lembrança do namorado, na saudade de suas carícias e no estranhamento de suas atitudes nos últimos dias. Cleidson sempre fora carinhoso e atencioso, desde o dia em que se conheceram e durante todos os meses em que já durava o romance entre eles. Mas, nesta semana, ele estava estranho. Calado. Triste. Tão acabrunhado que ela o interpelara:
— Tá acontecendo alguma coisa? Cê anda tão emburrado, mal fala comigo. Que foi?
— Nada não. Coisas da agência, o trabalho tá pouco.
Cleidson era um rapaz alto, elegante, loiro, vistoso. Ao chegar à cidade, há coisa de um ano, empregara-se numa agência de modelos e participara de alguns comerciais exibidos na televisão. Mas seu gênio turbulento fechou-lhe definitivamente as portas desta carreira ao brigar — e esbofetear — o chefe da produção. Disso Jarlene não sabia. Mas agora uma nova oportunidade — ele lhe assegurara — estava surgindo e a reunião daquela noite seria definitiva para conseguir trabalho.
Até os seus doze ou treze anos, Cleidson fora um garoto normal. Seus pais não tinham do que se queixar. Moravam na periferia de São Paulo, o pai e a mãe trabalhando e o menino desenvolvendo-se como qualquer garoto de sua idade: estudante tranqüilo, convivendo bem com colegas e amigos. Foi quando, por um incidente trivial, ficou sabendo que era filho adotado. A revelação, numa idade crítica — a passagem da meninice para a adolescência — colocou grilos na cabeça do jovem. Quis saber tudo a respeito de sua origem: onde tinha nascido, quem eram seus pais, por que havia sido adotado. As explicações, dadas principalmente pela mãe, não o satisfizeram. Mesmo porque tinha sido adotado antes de completar um ano, e, sob circunstâncias inexplicáveis, fora registrado como filho legítimo de Arlindo Fagundes com a esposa Flora. Não havia registros de seus pais verdadeiros, nada que pudesse fornecer uma pista de sua origem.
O mistério tornou-se cada vez mais fascinante e a solução cada vez mais urgente. Uma transformação ocorreu na sua personalidade, levando-o a se tornar rebelde, respondão, desleixado nos estudos e direcionando-o para o caminho da marginalidade. Mudou de atitudes e de amigos. Mal e mal terminou o curso básico, ao mesmo tempo em que se tornava um jovem bem apessoado, de porte atlético e elegante. Graças a essa figura clássica, conseguiu algum trabalho como modelo em agências de propaganda. Mas, inquieto e rebelde, nunca permaneceu muito tempo num só trabalho.
A grande interrogação acerca de sua origem o perseguia dia e noite. Vasculhando furtivamente os papeis, documentos, cartas antigas de seus pais, obteve um endereço. Quando perguntou ao pai do que se tratava, a negativa foi tão peremptória, o susto do velho fora tamanho, que ele teve certeza: ali tinha uma pista.
Estava, então, com dezoito anos. Homem feito. Com alguma independência, pois, se o trabalho como modelo era irregular, conseguia algum dinheiro em troca de pequenos serviços, nem sempre dentro da legalidade, que exigiam coragem e audácia. Ao descobrir o endereço inexplicável — apenas um endereço, sem nomes, num envelope amarfanhado e amarelado, com rua e número de um bairro de Natal, no distante estado do Rio Grande do Norte — ficou obcecado pela idéia de que lá estariam morando seus pais verdadeiros. Impulsivo, não tardou em largar tudo, sem um aviso sequer, e partir para a cidade distante.
Chegou em Natal cansado da longa viagem de ônibus: mais de trinta horas, entre passageiros de todos os tipos, muitas crianças e um constante mau cheiro de cigarro e vômito. Não eram nem cinco e meia da tarde, mas o sol já se escondera num poente de sangue e areia. Um quarto numa pensão ao lado da estação rodoviária serviu-lhe para o repouso da noite.
No dia seguinte, o endereço no envelope amassado e antigo leva-o a uma das ruas no bairro Capim Macio. Uma rua comum, com as casas antigas de um só pavimento, as fachadas encostadas umas às outras, espremendo-se em longos quarteirões, numa seqüência sem graça de janelas e portas ao rés da calçada. A quebrar a monotonia, apenas o colorido desbotado das paredes, berrantes ocres, azuis, verdes e vermelhos de diferentes idades.
Observa com atenção a seqüência das placas de números, sobre as portas. Ao deparar com a casa procurada, presta atenção: a pintura está escurecida pelo tempo, com evidentes sinais de falta de cuidado. Algumas telhas quebradas, portas e janelas empenadas, o reboque caindo aqui e ali deixa à vista tijolos vermelhos. Na manhã plena de sol, as cores e os desbotados ganham destaque inusitado. Um pedaço de papelão pregado na janela anuncia qualquer coisa, mas está ilegível: as letras transformaram-se em borrões, desfeitas pela umidade e pelo sol.
Enquanto observa, sai uma mulher, vestida modestamente, apressada, batendo a porta com força. Aparenta uns trinta anos, vistosa e viçosa, cabelos pretos soltos sobre os ombros. Bolsa a tiracolo, sapatos de saltos baixos, cabelos soltos. Roupa limpa. Caminha rapidamente, com a urgência de quem está atrasada para o trabalho. Ele continua na espreita, do outro lado da rua. Devo bater à porta? Se a mulher saiu, por certo ainda estará em casa o marido, talvez. Ou os filhos, quem sabe? Melhor aguardar. Sentado nos degraus de uma escadaria que leva a lugar nenhum, ele espera.
Algum tempo depois (meia hora? uma hora?) aparece uma jovem. Garota de seus quinze, dezesseis anos. Trajando uniforme escolar. As mãos seguram pasta, livros, objetos de estudo. Os cabelos loiros, compridos, agitam-se com o vento que sopra da margem do rio. Caminha despreocupadamente até virar a esquina.
Cleidson a acompanha com o olhar. Imóvel. Surpreso com a figura graciosa, um tanto infantil. Anima-se. Levanta-se, cruza a rua e bate à porta da casa. Ninguém atende. Insiste, batendo cada vez com mais força. Um velho, saindo da casa vizinha, informa-lhe:
— Tem ninguém aí não, moço. Dona Dina foi trabalhar e a Lena já saiu para a escola. O senhor quer alugar o quartinho dos fundos? — Ante a cara de surpresa do rapaz, o homem prossegue: — Elas só voltam de tardinha. Melhor o senhor voltar à noite.
Cleidson não desanima. Tem certeza de que ali está a resposta para sua indagação maior. E agora tem um pretexto para entrar na casa: o aluguel do quarto.
No dia seguinte, bate à porta antes da saída da mulher mais velha. É ela que o atende.
— Queria saber do quartinho dos fundos.
Acendina leva um choque ao atender o rapaz. Sente uma sensação estranha, algo de inexplicável. É como se, de um passado remoto, uma sombra emergisse e passasse entre ela e o jovem ali a sua frente. Um arrepio percorre-lhe o corpo ao ouvir a voz.
— Ah!... Entra... Vou lhe mostrar. É por aqui.
Feito o acordo, Cleidson se estabelece no quarto dos fundos.
No dia seguinte, conversa com Jarlene pela primeira vez. No início, apenas as formalidades de um novo conhecimento, o trocar de cumprimentos. No fim-de-semana, já estão amigos e a garota promete mostrar–lhe os melhores locais nas praias da cidade.
Isto é uma loucura! Não posso me deixar levar pelo que estou sentindo por esse rapaz! — Nas noites insones, Acendina tenta sufocar seus sentimentos — sua paixão, sim! — pelo misterioso loiro. Afinal, não o conheço, nada sei a seu respeito. Não, não posso nem devo... Tenta apagar o fogo que sente em seu íntimo. Após tantos anos de viuvez, é a primeira vez que sente um tal sentimento, uma paixão avassaladora.
Procura saber mais a respeito do rapaz. No início, ele está evasivo, não quer se abrir, pretende conhecer mais do misterioso endereço. Aos poucos, entre uma conversa e outra, Acendina vai se rendendo aos enleios de uma paixão irrefreável. A sedução acontece, enquanto Cleidson vai lhe revelando, pouco a pouco, a sua procura. E é entre beijos e afagos que, finalmente, o jovem louro completa a informação. .
— Quero encontrar meus pais. E acho que neste bairro, nesta casa está a ponta do fio que me levará a encontrá-los.
Ao ouvir, tais palavras, uma certeza se estabelece na mente da amante. Ele está na pista certa, mas ela reluta em lhe revelar a desconfiança — quase certeza — do que pode ser o final da procura. Porque, na realidade, está perdidamente apaixonada pelo rapaz. Que bem pode ser meu próprio filho!
Jarlene não cabe em si de tanta felicidade. A simpatia mútua entre ela e o moço vindo de São Paulo evoluiu rapidamente e os dois se engajaram num namoro de adolescentes. Ela, recatada, simples, mas cuidadosa e avisada; ele, mais preocupado em encontrar suas raízes. Mantêm um relacionamento inocente, tranqüilo.
Cleidson sente, entretanto, que os olhares, sinais, palavras e trejeitos da mãe são de inequívoca sedução. Aos poucos, deixa-se enlear pela mulher experiente, cedendo aos seus toques e abraços. Não demora muito, o triângulo está estabelecido.
As linhas do destino estão todas emaranhadas. Sob o mesmo teto, Jarlene namora Cleidson, que convive com os carinhos e afagos da fogosa Acendina. Um arranjo que parece contentar a todos os envolvidos.
Cleidson sabe que ali, naquela casa, está a ponta da meada do mistério que envolve sua origem. Mas empacou na procura. Não consegue estabelecer nenhuma conexão entre os atuais moradores — mãe e filha, pelas quais está irresistivelmente enleado — e os possíveis moradores anteriores, por certo, seus pais.
Nas longas conversas com Acendina, vai revelando sua obsessão. E, aos poucos, a mulher vai se certificando de que há algo muito maior entre ela e o rapaz. Até que uma noite, entre abraços, beijos, ânsias de desejo e gritos sufocados de amor satisfeito, ela tem a certeza total de tudo o que pressentira na primeira vez em que vira o rapaz.
A paixão de Acendina é avassaladora. Não se contenta em ter o rapaz nas madrugadas, no seu próprio leito. Não tolera o namoro da filha com Cleidson. Quer exclusividade. Agora já não importa saber quem é aquele homem que a satisfaz plenamente na sua demanda por amor e sexo. A longa continência de muito anos desabrochou numa sêde insaciável.
— Quero você só pra mim. Não suporto saber que você está namorando minha filha.
— Mas Acendina, não posso deixá-la assim, sem mais nem menos. Que desculpa vou dar?
— Sei lá. Inventa qualquer coisa. Não agüento mais ver vocês dois juntos.
A exigência da amante tornou-se incômoda. Cleidson ama de verdade Jarlene, mas está irremediavelmente seduzido por Acendina. Não quer perder as madrugadas de amor intenso nem desistir do namoro gentil e carinhoso.
A obsessão de Acendina pela exclusividade da afeição de Cleidson se torna doentia. Já que não pode ser só meu, não vou repartir com ninguém. Muito menos com minha filha.
Trama uma surpresa o amante.
— Hoje quero ir para um motel. Chega de ficar fazendo amor de madrugada, escondidos. Eu me contendo para não deixar transparecer para Lena nossa paixão. Vamos passar a noite juntos. Jantamos num restaurante e depois vamos para o motel.
Cleidson concorda. Já está enjoado das exigências da amante e este encontro longe da casa onde os três mantêm o círculo vicioso de amor, paixão, ciúmes e mentiras será perfeito para acionar um plano que tem para livrá-lo do domínio de Acendina.
Surpreso pelo desfecho sangrento de seu plano, Cleidson é tomado de um frenesi. Antes mesmo do último suspiro de Acendina, ele a joga de volta para a banheira, . A água tinge-se de rubro, o sangue esvaindo-se da jugular secionada. Não consegue sufocar um choro convulsivo. Levanta-se, vai ao quarto, volta para a banheira. Pega uma toalha de banho, de uma alvura impecável, e começa a esfregar o chão, o tapete, na tentativa de apagar as manchas de sangue. Inutilmente.Tira a camisa e lava as partes salpicadas de sangue. Não quer olhar, mas seus olhos são irresistivelmente atraídos para a banheira, onde bóia o corpo. Pelo menos me livrei da cadela. Agora, é cair fora daqui. Ajeitando como pode a própria roupa, passa as mãos úmidas pelos cabelos. Olha para o relógio: já passa da uma da madrugada. Ainda tem tempo para fugir. Pega a bolsa da mulher, coloca dentro todos os pertences que possam identifica-la. Esconde-a dentro de sua camisa e disfarça o volume mantendo o braço esquerdo sobre a barriga.
Ao sair do motel, avisa o porteiro:
— A dona quer ficar repousando até mais tarde. Pediu para ser acordada às dez horas. Agora, por favor, chama um táxi.
Tomou o táxi, deu a direção ao motorista:
— Vamos pro Capim Macio. Mas vai pela avenida que beira o rio.
Em determinado momento, pede ao motorista.
— Pare aqui. — Sem qualquer cuidado, desce do táxi, chega à margem da avenida e lança a bolsa no meio do rio.
O interrogatório foi curto e grosso. Preso poucas horas depois, quando o dia ainda não tinha clareado, Cleidson não ofereceu a mínima resistência. Na delegacia, vendo que tudo estava perdido, confessou o crime. O delegado de plantão estava satisfeito por ter solucionado o mistério do assassinato no Motel Ponta Negra apenas quatro horas após a denúncia recebida. Entre as perguntas incisivas ia comentando os lances da diligência.
— Pois é, seu espertinho, pensa que todo mundo tá dormindo, que ninguém vê nada? O porteiro do motel viu logo que você tinha aprontado alguma no quarto, nem esperou o táxi virar a esquina para chamar a polícia. E o taxista também ficou muito intrigado quando você jogou a bolsa no rio. Ela veio direto para a margem, pois a maré está subindo. Você não sabe, não é daqui, mas quando a maré sobe, afeta a correnteza do rio, e devolve tudo o que é jogado nas suas águas.
Cleidson vai contando sua história. E o delegado:
— Pois é, cara, cê nem queira saber o que fez. Porque na carteira da mulher que você assassinou encontramos documentos seus. Uma certidão de nascimento. Do seu nascimento. E sabe o que consta dessa certidão? Não, é claro que você não sabe.
O delegado faz uma parada, um suspense. Quer ver o efeito de sua revelação na cara do assassino.
— Agora, me conta aí, seu bandido de meia-tigela, o final desta história toda. — Levantando-se, o delegado chega bem perto do rapaz, puxa os cabelos e faz incidir sobre seus olhos a forte luz da sala de interrogatórios.
— Você matou sua própria mãe!
ANTONIO ROQUE GOBBO =
BELO HORIZONTE, 4 DE JULHO DE 2003.
CONTO # 231 DA SÉRIE MILISTÓRIAS