Quimera
Não fazia nem cinco minutos que havia feito a ligação e a impaciência já lhe corroía a alma.
- Por que diabos demoram tanto? - disse ela quase que num sussurro.
Olhou em volta, como se estivesse tentando gravar cada pedacinho daquele lugar em sua memória. Essa era a segunda e última vez que poria os pés ali.
- Fiz o que tinha de fazer. Sim, e ninguém pode me julgar por isso, nem mesmo Deus. – disse ela apagando a guimba do cigarro no velho e mal conservado criado mudo.
Caminhou até a janela do quarto, deu uma olhada por entre as cortinas e tornou a fechá-las. Se deixou cair na beirada da cama olhando fixamente para o teto. Era como se estivesse em verdadeiro transe, também não era de se admirar, havia acabado de matar um homem.
Os calafrios e a pequena tremedeira que vinha sentindo, desde o momento que fora feito o disparo, era apenas o começo. Por mais que ela tivesse planejado todos os detalhes cuidadosamente antes de cometer o crime não podia deixar de pensar que alguma coisa havia lhe escapado, que de alguma maneira havia se esquecido de algo que poderia ser crucial para seu futuro.
Repassou todos os seus atos um a um em sua cabeça, como se estivesse a fazer tudo novamente. Chegou à conclusão de que estava tudo perfeitamente em ordem e, no entanto a sensação estava ali.
- Bobagem minha, só pode ser. – disse para si mesma – Fiz tudo certo, tudo!
Ouviu o som das sirenes se aproximando.
- Finalmente chegaram. - pensou ela - É agora. Tudo ou nada.
Estudou sua imagem mais uma vez no espelho quebrado em um canto do quarto. Estava praticamente nua, um dos seios estava à mostra enquanto o outro e a genitália estavam cobertos por um pedaço de pano parcialmente rasgado, os longos cabelos castanho-avermelhados estavam totalmente desgrenhados, tinha o rosto manchado pelas lágrimas e pela pesada maquiagem, e do ombro esquerdo escorria sangue resultado do tiro que havia levado.
Podia ouvir cada vez mais perto o passo dos policiais. Rapidamente deitou-se ao pé da cama quase que em posição fetal, com os joelhos bem rentes aos seios. Respirou fundo e a última coisa que viu foram dois homens invadindo o quarto derrubando a porta principal.
- Evelyn Saldanha. É assim que se chama não é mesmo?
- Esse é o meu nome. E você quem é? – perguntou ela ainda um pouco atordoada.
Havia acabado de acordar, estava deitada na cama de um hospital por ela ainda desconhecido. Passou os olhos por todo o quarto, nenhum policial parecia a estar vigiando. Seria isso bom ou ruim? Será que estariam do lado de fora esperando por ela acordar? Ou de repente... Sim! – pensou ela triunfante – Deu tudo certo, não tem policial algum aqui por que não sou considerada culpada de nada. Claro que não sou!
- Sou o detetive Cardoso, e gostaria de lhe fazer algumas perguntas. Tudo bem?
- Se você acha que vou poder respondê-las, detetive. – disse a mulher
- Pergunte à vontade.
- Muito bem. – disse o detetive abrindo um pequeno caderno preto e escrevendo alguma coisa que ela não pode ver. – Me diga sua idade, profissão, e endereço. – continuou ele.
- Tenho 28 anos. Moro no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro. – disse-lhe sorrindo.
- E faz o que da vida? – Houve um breve silêncio - Já que não quer responder eu mesmo digo. É garota de programa, não é?
- Sou sim e daí? É crime, agora, trabalhar pra se sustentar? – disse ela num tom desafiante.
- Há vários tipos de profissões que poderia estar exercendo, senhora Saldanha. Mas não é sobre isso que quero lhe falar.
- E então, sobre o que é?
- Quão bem conhecia Alexandre do Amaral? – perguntou Cardoso agora fitando-lhe os grandes olhos azuis.
- Era um cliente, só isso!
- E poderia me dizer o que aconteceu que resultou na morte do senhor Amaral e lhe trouxe a este quarto com uma bala no ombro e algumas costelas quebradas? E por favor, me dê todos os detalhes. – disse ele de maneira simpática.
- Bom, foi tudo muito rápido... – ela se agitou na cama - não me lembro exatamente como aconteceu. Nós dois tínhamos bebido um pouco além da conta, fizemos o programa e depois o canalha não queria me pagar. Disse que eu deveria estar grata por ter tido: ‘a melhor foda da minha vida’. Imagina só?! Eu queria a minha grana, e disse a ele que não sairia de lá sem ela. A carteira dele estava em cima do criado mudo, fui até lá, peguei meu dinheiro e disse a ele que nunca mais me ligasse. Estava saindo do quarto quando ele me puxou com força me jogando ao chão, me deu vários chutes, rasgou minha roupa, e me forçou a fazer sexo com ele novamente. Me lembro que durante todo o tempo fiquei dizendo a ele que agora teria que pagar em dobro, e o filho da mãe ria... Ele apenas ria.
- E depois, o que aconteceu? – perguntou o homem.
- Do nada ele pegou um revólver, desses pequenos... prateados. Começou a atirar para todos os lados do quarto, acho que o safado queria me assustar. Mas eu já estou nessa vida faz tempo detetive, e não ia ser um sacana como ele que iria me pôr medo. Fui pra cima dele, alguns tiros foram disparados e ele caiu no chão, ao pé da cama. Só depois de alguns minutos que me dei conta que um deles havia me atingido no ombro, foi então que liguei para a polícia e pedi que viessem, pois eu estava ferida e... E havia matado um homem. – ela disse essas últimas palavras quase que uma a uma. Queria se certificar de que estava dando à história a emoção necessária, porém sem muito drama.
- Então foi legítima defesa?!
- O que mais poderia ser, detetive? Eu apenas lutei pela minha vida, não queria matar ninguém.
- Muito bem, senhora Saldanha. – disse Cardoso dobrando o pequeno caderno e tornando a guardá-lo em um dos bolsos de seu paletó branco. – Entraremos em contato com a senhora se necessário for. Desejo-lhe melhoras.
- Sim, sim. Obrigada! – disse Evelyn Saldanha tentando conter o alívio que sentia.
Naquela noite não demorou muito a adormecer sonhando com a nova vida que teria daqui para frente.
- E então doutor, o que achou?
O médico chefe da ala de psiquiatria Doutor Otávio Cardoso virou-se por alguns instantes e analisou novamente a jovem deitada na cama, antes de responder a pergunta do enfermeiro à sua frente.
- Ela continua fantasiando. – disse ele, finalmente. – Ainda pensa ser uma prostituta chamada Evelyn, que Alexandre do Amaral era um de seus clientes, e tudo o que fez foi para livrar a própria pele. Na cabeça dela ele ia matá-la.
- Pobre doutor Amaral. – disse o enfermeiro – Ele realmente se importava com ela, e acreditava estar conseguindo algum progresso com essa paciente.
- Realmente foi uma fatalidade. Um erro que não podemos deixar que se repita. – retrucou o Doutor Cardoso – Foi a segunda vez que ela teve um desses ataques nesses sete anos em que aqui se encontra internada. E esse infelizmente resultou na morte de um de nossos melhores profissionais. Aqui entre nós dois, - adicionou o médico - não acredito que ela jamais recobre a sanidade.
- É uma pena. – disse o outro – É bonita como o diabo.
- E agora sabemos que pode ser tão perigosa quanto ele.