A. Escritora
Antes de me tornar escritora eu tinha essa visão deturpada de como uma escritora deveria ser, de como ela deveria se portar, usar um determinado estilo de escrita, eu não sabia se escrevia do meu jeito ou do jeito que aquela escritora famosa, morta há séculos, escrevia. Ah! E tinha também a aparência, além de ser eu tinha de parecer uma escritora. Cabelos curtos meio desgrenhados, o cigarro sempre a mão. No inicio foi um pouco estranho, nunca havia fumado, mas com o tempo você se acostuma e não consegue mais largar, já são 25 anos comigo. Não posso me esquecer de mencionar os óculos sem grau que tinham o único intuito de me dar um ar mais intelectual, me dar mais crédito junto aos editores, as grandes editoras e com o público obviamente. O mais difícil mesmo de escolher foi o meu novo nome, o nome pelo qual todos me conheceriam a partir daquele dia. Eu, particularmente, sempre achei que escritores com nomes abreviados se davam melhor do que os outros. Mais uma das minhas bobagens.
Depois de tudo isso acertado, faltava me decidir que caminho escolher, romance; mistério; policial; autoajuda? Meus dois primeiros livros foram inteiramente sobre romances, uma melação tortuosa do começo ao fim e bastante fantasiosa devo confessar. E talvez por esse motivo não tenham sido muito bem aceitos pelos leitores. Decidi então mudar de estratégia, se eu queria ser uma grande escritora - e eu queria - tinha que escrever sobre o que povo mais gosta de ler. Eles gostam de tragédia, de ver que existem pessoas em situação pior ou similar à deles, como alguém já disse e muito bem: “O povo quer sangue!”
Durante todos esses anos, conheci muitos aspirantes a escritores que achavam, e provavelmente muitos continuam achando, que para ser um bom escritor você precisa ser um ótimo mentiroso. Ledo engano! Você tem que falar a verdade, a mais pura verdade. Se a sua escrita tiver verdade vai ser muito mais bem aceita por quem as lê.
O meu novo foco passou a ser os assassinatos. “Quem matou?”, “Como ele fez?”, “Como conseguiu se safar?” Essas eram as principais perguntas que me fazia sempre antes de começar a escrever um novo livro. O motivo da morte nem sempre é relevante, pode se ter ou não um motivo e na verdade ninguém liga muito para a real causa da morte. As pessoas gostam de falar, gostam de dar as suas versões do crime, sem claro, deixar de dar a sua própria opinião a respeito.
Meu maior impedimento inicial, se é que você já conseguiu captar, é que eu nunca havia vivenciado o mecanismo de um assassinato. De certo que lemos sobre o tema todos os dias nos jornais, vemos no noticiário, ouvimos o porteiro comentar com o síndico do prédio. Mas eu nunca havia realmente experimentado nada parecido. Nenhum amigo, parente ou até mesmo um relés conhecido havia sido assassinado. Como poderia eu escrever sobre um tema do qual não tinha conhecimento de causa?
Espero que acredite quando digo que não foi uma coisa planejada. Certamente que foi providencial, e até mesmo essencial para o meu desenvolvimento como grande autora de livros policiais, mas não foi de maneira alguma premeditado.
Tudo de que alguns autores precisam para se inspirar é o silêncio e a solidão e talvez uma boa taça de vinho também. Eu sou exatamente o oposto, sempre busquei minha inspiração nas pessoas, no falatório das ruas, na multidão. E foi numa dessas minhas andanças a procura de algo que me inspirasse que me ajudasse a escrever que eu o conheci.
Lembro-me como se estivesse acontecendo neste exato instante, eu entrando naquele bar altas horas da madrugada, cansada de andar o dia inteiro atrás de inspiração sem sucesso algum. Instalei-me numa mesa ao fundo, com uma garrafa de cerveja na mão, entretida em meus próprios pensamentos quando ele sem nada falar sentou-se junto a mim. Olhávamo-nos intensamente, nenhuma palavra fora dita, mas foi como se tivéssemos tido uma longa conversa apenas com aqueles olhares. Lembro-me de na manhã seguinte acordar na cama dele, nua. O sexo fora incrível e violento do jeito que eu gosto. Em um mês estávamos morando juntos, eu pouco sabia sobre ele, mas não me importava. Foi lá pelo terceiro mês, durante mais uma noite de sexo intenso, bem hardcore mesmo, que me veio à ideia. Eu queria vê-lo com outras mulheres, fazendo com elas o que ele estava fazendo comigo naquele momento.
Ernesto não era um homem com muitos pudores, muito pelo contrário. Aceitou a ideia de primeira. O que ele não sabia, era que o que para ele seria só mais uma incrível noite de sexo, para mim seria o começo de uma nova vida.
Deixei que ele mesmo escolhesse a garota, qualquer uma que lhe agradasse. Assisti aos dois durante todo o tempo, ele parecia gostar de se mostrar a mim com ela, estava muito mais excitado e violento do que o de costume e a vadia também parecia se divertir bastante. Foi quando ambos estavam próximos de alcançar o ápice do prazer que me aproximei calmamente dos dois, entrelacei minha echarpe no pescoço dela e puxei com toda a força que havia dentro de mim. A sensação de ter uma vida esvaindo-se em suas mãos é indescritível, te faz sentir tão poderosa, como se você própria fosse Deus.
Ernesto olhava-me espantado, os olhos arregalaram-se por um instante, mas ao irem de encontro aos meus rapidamente acalmaram-se como se tivessem chegado a um acordo entre si, do qual nenhum de nós sabia exatamente quais eram os termos. Ele foi livrar-se do corpo e eu comecei a escrever. Estava tão cheia de ideias, todas tão igualmente maravilhosas, não tinha tempo algum a perder.
O livro fora um sucesso, e com a sensação de impunidade tanto para nós quanto para o assassino em meu livro, muitos outros se seguiram, assim como muitas outras mortes até hoje sem solução. De início as vítimas eram estritamente mulheres, o que com o tempo e uma inversão de papéis entre mim e Ernesto foi mudando gradativamente. As maneiras de cometer os assassinatos tornaram-se cada vez mais elaboradas e cada um deles foi muito especial para nós dois, especialmente para mim. Sete anos se passaram até que cometemos o primeiro deslize. Tudo culpa do filho da mãe do Ernesto. Eu disse a ele exatamente o que deveria fazer e como fazer, o único trabalho que ele tinha era executar o plano. Mas o idiota se achava mais esperto do que eu, e fez diferente, pouco se importando com o que eu lhe havia dito. Eu já havia me tornado uma escritora consagrada, de renome internacional e não poderia correr o risco de ser presa por todos aqueles crimes. Então assim como os outros, Ernesto teve de ser apagado da minha vida. E eu escrevi mais um grande sucesso, um dos senão o de que mais me orgulho até hoje. Devo confessar que no meu íntimo sempre quis que todos soubessem que eu era a mente por trás dos assassinatos. Eu, a grande escritora.
Se sinto algum tipo de arrependimento ou remorso? Nenhum! Todas as mortes foram necessárias para que eu me tornasse quem sou hoje. Como fiz para não ser descoberta? Ainda é cedo para lhes contar. E afinal, que graça teria se eu lhes dissesse tudo?
Sinceramente,
A. Escritora