204 - QUERIDO DIÁRIO
Segunda-feira - 12-agosto-2002 – Querido Diário: estou com o rosto inchado e a cabeça doendo. Não consigo dormir. O pai me encontrou namorando Juca, a gente estava só trocando uns beijinhos debaixo do pé de magnólia. Estava escuro e nunca que pensei dele me procurar lá no quintal. Juca veio pra saber se nosso encontro na sexta-feira para ir ao forró do Barracão do Malaquias tava confirmado. “Claro que vou sim. Só se você não quiser ir”, falei pra ele. Já tava escurecendo, o pai tava demorando, resolvemos ir pro quintal. Juca é muito impaciente e logo vai avançando as mãos, me deixando tonta de vontade. A gente tava naquele entrevero, nem ouvi quando a cancela da frente da casa bateu, quando o pai entrou. Só percebi que ele tava em casa quando apareceu na porta da cozinha, com a lamparina levantada, pra iluminar mais longe. “Dorcelina, cadê ocê, menina? “ Não deu tempo nem de me recompor, ele foi chegando depressa, os passos miúdos, chegou correndo. Quando viu o Juca, ficou louco de raiva. “Já te preveni, menina, num quero esse namoro”. E foi descendo a mão. Pegou primeiro o Juca, que conseguiu tirar o corpo e evitar o cachaço. Depois, enquanto eu arrumava o vestido, me deu uma bofetada, que me derrubou. Juca correu pro mato. O pai não foi atrás dele, ficou me chutando as pernas, as costas e até me acertou um chute na cabeça.
Ensimesmado, ainda cheio de raiva, o pai continua maltratando a menina, agora com um destampatório.
— Cê num presta mesmo, é igualzinha à mãe. Aquela jararaca...Da última vez em que ela aprontou, foi também debaixo daquela árvore. Parece maldição. Ela quase me deixa louco de raiva, me traindo com o Ginivaldo. Ainda bem que tomou seu rumo, se ela continuasse aqui, eu acabava matando ela.
Dorcelina não ouve os impropérios do pai. Está no quarto e só pensa em se livrar daquela situação. As dores pelo corpo e na cabeça não a deixam dormir nem lhe interessa ouvir o que lhe chega como um resmungo de embriagado. Vou dar um jeito nesta situação, vou achar uma solução. Assim não dá pra continuar. O pai num gosta do Juca, mas é só de ruindade. Ele até já falou comigo em casamento. Mas só tenho onze anos, e o pai acha que inda sou uma menininha, num vai nem querer saber dessa história. Só se a gente fugir junto.
Segunda-feira, 19 de agosto de 2002 - Querido Diário: A gente se divertiu um bocado no forró do Malaquias. Menti pro pai, disse que ia visitar a mãe e que só voltava no domingo de tarde. Ele acreditou ou fingiu. Quando falo da mãe, ele finge que não ouve. Depois que ela separou do pai, foi viver com o Ginivaldo. Já faz tempo, mais de cinco anos, eu tinha uns seis anos. A Mirinda, que é filha dos dois, tem quatro anos. A mãe não liga pra mim. Quando vou lá, me chama de “Dor”, diz que eu só lhe dei desgosto, desde o dia em que nasci. Não me explica porquê. Mas pra ir pro forró, menti pro pai, disse que ia ver a mãe. Acabei ficando na casa da Gerusa, que é tia do Juca e deixou eu ficar na casa dela. De noite, nós fomos todos juntos para o forró. Acabou de madrugada, estava quase amanhecendo. Juca, por respeito à tia, não fez nenhum atrevimento. Foi na volta do forró que tive a idéia de como ficar livre da implicância do pai no nosso namoro. Mas preciso de dinheiro, comprar o necessário. Pedi ao Juca. Me empresta cinco reais? Ele refugou. — Pra que você quer? Se for pra comprar alguma coisa, eu compro pra você. Não podia revelar ao Juca o que havia imaginado, a fim de conseguir a liberdade, me ver livre da tirania do pai. —Se ocê gosta de mim, me empresta sem perguntar nada. Ele me emprestou. No sábado, fui à venda do Xisto e comprei o que era preciso para realizar o meu plano.
Sábado, 14 de setembro de 2002 - Querido Diário: Hoje consegui realizar o que venho planejando há mais de quinze dias. Fiz a comida pro pai, uma carne picadinha bem temperada, do jeito que ele gosta. Fazia tempo que ele não trazia carne do açougue. Está desempregado, tem pouco dinheiro e gasta tudo com a bebida. Mas hoje, trouxe um pouco de carne moída e me mandou:
—Faz um cozidinho com jiló, que tou louco pra comer um arroz com jiló e uma carninha moída por cima.
Fiz como ele me mandou. Só que no cozido de carne derramei um pouquinho do veneno de matar rato. Ele comeu com regalo, nem notou nada. De tarde, começou a passar mal e pediu pra avisar o cumpadre Firmino, que chegou, viu que tava mal e levou ele pro hospital. Desta noite ele num passa.
—Olhaí, garoto, vai falando tudo o que sabe. Não adianta me enganar, já sei de tudo.
—Não, seu delegado, eu juro que num tenho nada a ver com a doença do pai de Dorcelina..
—Vocês estavam de conluio, a fim de apagar o velho.
—Juro, doutor, não sabia de nada.
—Acho melhor você confessar logo. — O delegado sabe que os dois estão implicados, mas não tem provas. O velho fora envenenado com raticida, conforme laudo médico. A quantidade ministrada, entretanto, foi insuficiente para matá-lo. Já fez diversos interrogatórios dos dois, mas sem resultados. O pai da moça está internado no hospital há mais de três meses, e de tempos em tempos ele manda buscar os dois suspeitos. A menina e o rapaz teimam em afirmar que nada fizeram para envenenar o velho, que não morreu, mas se encontra em estado de coma irreversível.
—Guarda, leva o garoto lá pra dentro e me traz a menina.
Dorcelina entra, acompanhado pelo representante do Juizado de Menores.
—Agora, já sabemos de tudo, o Juca explicou direitinho. Vocês combinaram a morte do seu pai. — O delegado arma a cilada.
—Num fiz nada, seu delegado. Não tenho culpa de nada.
O jovem Alarico, que acompanha a menina, como guardião do Juizado de Menores, chama o delegado para um particular. Cochichando, relata:
—Olha doutor, não precisa “espremer” mais a menina. A tia dela encontrou um diário, que me entregou hoje, quando a gente chegava para o interrogatório. A menina tinha um diário. Escrevia tudo no livrinho. Está aqui o registro de tudo o que aconteceu. — Passa para o delegado um livro de capa cor-de-rosa, com flores e uma moldura para retrato, preenchida com a foto de Elba Ramalho.
O Delegado de Polícia da pequena cidade do interior baiano pega o livrinho, folheia e lê por alto alguns trechos. Chega, finalmente, às palavras incriminadoras, escritas na caligrafia redonda e insegura da menina:
“Desta noite ele não passa”.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE – 27.JANEIRO.2003
CONTO 204 DA SÉRIE MILISTÓRIAS