193 - HONRAR PAI E MÃE

— Vamos logo, Peter. Estou com pressa. Se quiser carona, deixa de moleza.

O jovem joga um casaco sobre os ombros e sai, apressado, de seu quarto. Desce as escadas aos pulos, sem tempo sequer de dizer um tiau à mãe, que está na copa, preparando sanduíches para si e o marido, que assiste a um documentário na TV. Ao entrar no carro da irmã, está esbaforido. Ela arranca o carro com determinação.

— Vou te deixar na esquina do cibercafé. Te apanho mais tarde. Tá bom pra você?.

— OK. — Peter é lacônico. Tem respeito pela irmã, mas ultimamente não estão muito bem nas relações, por conta do namoro de Regine .

Ao entrar no cibercafé, Peter vê Felipe saindo da sombra de uma marquise. O namorado parece furtivo ao entrar no carro. Esses dois juntos de novo. Ela havia prometido à mamãe que não iria mais se encontrar com Felipe.. O pensamento é fugaz, pois logo encontra amigos com os quais pretende passar as próximas horas.

— Onde está Igor ? — Ela pergunta, assim que Felipe, o namorado, bate a porta do carro.

— No Lavônia, logo ali na frente. — Ela conhece o local e em dois minutos estaciona sob uma placa de Estacionamento Proibido. Felipe sai, vai até o interior do bar e volta acompanhado de Igor, portando uma sacola de mão, que coloca ao seu lado, no assento traseiro do carro.

— Vamos rodar um pouco por aí. — A jovem olha o relógio do carro, marcando quase meia-noite. — Ainda é cedo para os velhos irem pra cama.

— Que tal esperarmos num drive-in. — Sugere o namorado.

— Nós três num drive-in? Estás brincando, Felipe?

— Tenho uns baseados. Vamos dar um teco antes.

— Tá bom. — Aqui perto tem o Cranker. Vamos pra lá.

Igor permanece silencioso. Essa garota é das minhas. Topa tudo. Hoje vai ter....

No drive-in os três repartem o cigarro. Para ficarem mais à vontade, sentam-se todos no banco de trás do carro. A moça entre os rapazes. O namorado passa a mão esquerda pela perna de Regine , levantando-lhe a saia. A coxa alva se destaca na pouca luminosidade. Igor coloca, descuidadamente, a mão no joelho dela que, alegre, não se incomoda com as bolinações. As tragadas se sucedem, bem como os avanços das mãos. Regine é pródiga em carinhos, que distribui tanto para o namorado quanto para o amigo. Dentro de alguns minutos, mãos, pernas e corpos estão numa mistura total. Roupas arrancadas, cabelos desgrenhados, bocas que se procuram. As identidades se perdem, todos se manipulam e se possuem freneticamente. Logo, os três estão saciados de droga e de sexo.

Regine é bonita. Alegre. Gosta de aventuras, esportes radicais, coisas que tais. Tem dezenove anos, é inteligente. Estudante do primeiro ano de direito da melhor faculdade de São Paulo, destaca-se por ser uma das mais aplicadas. Tem seu próprio carro e os pais lhe proporcionam todo o conforto desejável. Fluente em alemão (o idioma do pai), em francês(a língua pátria da mãe), em espanhol e inglês, freqüenta também a academia de caratê onde chegou à categoria de faixa marrom.

Tendo tudo para ser uma garota feliz, estava enfrentando sérios problemas com os pais. Não sei porque essa implicância com Felipe. Já faz três anos que estamos nos encontrando, e agora, eles querem que a gente termine tudo. Mas já sei como resolver essa questão, eles vão ver...

A implicância de Gustaffson, o pai, e Thelma, a mãe, tem justificativa. Há menos de um ano, notavam um desvio na conduta do namorado da filha. O pai, engenheiro, quase não tinha contato com o rapaz. Entretanto, a mãe, psicóloga, via a mudança. Ele não estudava nem tinha emprego fixo e mantinha um padrão de vida incompatível com sua condição: roupas caras, muito dinheiro vivo na carteira,e um comportamento visível de usuário de droga. A mãe tinha quase certeza: Felipe mexia com drogas. Talvez fosse até traficante.

— Querida, acho esse namoro de vocês completamente sem futuro. Vejo você formada, com uma bela carreira pela frente. Impossível estar acompanhada por um moço sem juízo, sem estudos. Melhor terminar com isso enquanto é tempo.

O que a mãe não sabia é que Felipe já iniciara Regine no uso de drogas. Ela era refém do namorado, que a mantinha sob um jugo aparentemente amoroso mas cruel e implacável. Dele partiu a insidiosa idéia de todo o plano mirabolante que a fria e calculista Regine elaborou e colocou em prática.

— Felipe, por que você não estuda? — O pai procurava mostrar-se amistoso com o rapaz. — Aprenda inglês, faça alguma coisa, a fim de que você possa realmente ser um marido à altura de Regine . — Inutilmente. Aliás, o olhar de desdém que recebeu do jovem sinalizava como o conselho era recebido.

Quando Gustaffson e Thelma tiveram a certeza de que Felipe estava no caminho das drogas, cogitaram de mandar Regine estudar na Europa.

— Mamãe, pode ficar tranqüila, terminei com Felipe. — A mentira, bem pregada pela filha, foi aceita pela mãe. A doutora Thelma, psiquiatra com cinqüenta anos e mais de vinte anos de experiência profissional, ficou satisfeita com a afirmação da filha.

— Graças a Deus ela rompeu com Felipe. Agora ela voltará a ter a felicidade que merece. — Alegremente, a mãe contava aos amigos a intenção da filha.

Entretanto, o pai não aceitou na íntegra a afirmativa da filha. Desconfiado de que estivesse mentindo, seguiu-a e constatou a triste verdade.

— Thelma, você pode não acreditar no que vou lhe contar. Regine está se encontrando com Felipe . Às escondidas. Ela mentiu pra nós.

O que o engenheiro Gustaffson não podia imaginar é que a filha, além de enganá-los, fosse capaz de idealizar o macabro plano para se livrar da incômoda implicância dos pais ao seu namoro.

Saindo do ligeiro torpor, Regine observa os amigos, praticamente desmaiados ao seu lado.

— Vamos, gente, temos muito que fazer. — A moça chama os parceiros à realidade. Passa para o banco da frente para assumir a direção do carro. — Os velhos já estão dormindo.

— Espera um pouco. Ainda estou vestindo minhas calças. — Igor fumou demais e está lerdo.

Ela dá partida e dirige com perícia, rumo à casa dos pais. Conhece a rotina: após verem programas de televisão até onze e meia ou meia-noite, deitam-se e caem logo no sono. O relógio do painel marca uma hora e trinta minutos.

— Estamos em cima da hora. É agora ou nunca. — Ela conclama o namorado e o amigo, Ao contrário dos rapazes, está muito esperta, os olhos brilhantes, ansiosa para pôr em prática o plano mirabolante que há mais de três meses vem idealizando. Já pensou e repensou todos os detalhes. Quando chamou Felipe e Igor para ajudá-la na execução da tarefa, tinha na mente tudo encaixado.

Toma cuidado ao se aproximar da casa. No bairro residencial, está tudo quieto e tranqüilo. Manobra o carro, entrando na garagem. Tanto o jardim quanto a garagem estão às escuras. Apenas uma luz fraca no pórtico de entrada.

— Estamos combinados. — Olha no seu relógio de pulso que marca 01:25. — Vocês ficam aqui e eu subo. Se os velhos estiverem dormindo, eu acendo a luz do hall. É o sinal para vocês entrarem e subirem.

Felipe e Igor permanecem no carro. Igor abre a bolsa e examina o conteúdo. Checa as duas barras de metal, reforçadas com madeira no seu interior. Máscaras pretas feitas de meia, pedaços de flanelas para segurarem os canos e limpar o que fosse necessário.

— Deu trabalho encher essas barras com madeira. Mas valeu a pena. Veja só como ficaram pesadas e firmes. — Igor brande uma barra na direção de Felipe .

— Pára com isso! Presta atenção. A luz já acendeu. Vamos subir.

Felipe conhece a casa, pelas inúmeras vezes que ali estivera. Seguindo na frente, sobe as escadas e dirige-se resolutamente para o quarto do casal. A porta está entreaberta. Tira da sacola a máscara, que enfia na própria cabeça. Pega uma das flanelas e abre cuidadosamente a porta. Pega uma das barras de ferro e aproxima-se da cama onde o casal dorme profundamente.

Igor segue Peter, também de máscara e a outra barra segura na mão esquerda, pois ele é canhoto. Como se tivessem ensaiado, os dois partem ao mesmo tempo para matar o casal. Igor malha a cabeça e o rosto do homem, enquanto Felipe amassa a testa da mulher, num golpe fatal. Há alguma resistência por parte do homem, que reage aos primeiros golpes. Inutilmente, pois Igor rapidamente o prostra mortalmente.

A seguir, em movimentos precisos, colocam panos úmidos sobre os rostos. A idéia tinha sido de Regine :

— Assim, retarda a coagulação, dá a impressão de que a morte ocorreu bem mais cedo.

Regine não perde tempo. Na biblioteca do pai faz o trabalho de despiste. Joga no chão documentos, contas, papéis, na tentativa de simular um assalto à casa. Encontra o revólver do pai numa gaveta de fundo falso.

— Tome, Felipe, coloca a arma ao lado do corpo. Vai confundir a investigação.

Retira do cofre, fechado sem o segredo, notas de reais e dólares. Entrega os maços de dinheiro a Igor : é a recompensa pela sua ajuda na perigosa tarefa.

— Todo o dinheiro que tiver em casa, e as jóias que você puder levar, serão o seu botim. — Ela havia prometido.

Igor coloca na bolsa as barras ensangüentadas, os pedaços de flanela que evitaram as impressões digitais, os maços de dinheiro e as jóias, relógios, e pequenos objetos de valor que vai encontrando pelo quarto.

— Missão cumprida, gente. Vamos embora! — Assim, sem constrangimento nem remorsos, a moça dá por encerrada a macabra e terrível execução dos próprios pais.

— Felipe, você dirige um pouco. Vou relaxar e cochilar uns minutinhos.

De novo os três no carro. Felipe ao volante. Igor ao seu lado e Regine escarrapachada no banco de trás.

Felipe consulta o relógio: são 02:10. A ação na residência dos infelizes pais de Regine havia demorado apenas quarenta minutos. Tão pouco tempo para nos livrarmos de uma chateação tão grande.

— Vamos primeiro levar Igor à sua casa. Depois, toca pro hotel. — Ela determina, antes de entrar numa dormência tranqüila.

O jovem dirige com calma. Como se estivesse na noite mais sossegada de sua vida. A madrugada está tranqüila, o trânsito pouco. Ela foi esperta até na escolha da noite. Terça-feira de madrugada o movimento é quase nenhum.

— Pára aí nesse McDonald. Tou com uma fome do cão. — Igor fala com o irmão.

Sem acordar Regine, os dois descem e compram sanduíches, que comem no carro. Trinta minutos depois, chegam à casa de Igor, no subúrbio distante: ele mora com uma tia solteirona, mulher de seus cinqüenta anos, que o tem como companhia. Retira da bolsa o dinheiro e as jóias, deixando as barras de metal, as máscaras e as flanelas.

— Até amanhã, brother! Valeu, hein?

— Tá, bicho. Amanhã a gente se vê.

Felipe dirige o carro para o Hotel Miramax, superluxuoso, situado no centro da cidade. À chegada, acorda Regine .

— ´Tamos chegando, querida.

— Pode ir entrando, já reservei a suíte presidencial. Vamos passar algumas horas aqui.

No cibercafé, Peter se aborrece com a demora da irmã. Já são três da madrugada e está enjoado após muitas horas de chats e jogos eletrônicos na internet. Regine me disse que o trabalho iria ser rápido, por que essa demora? Tem uma admiração e um respeito pela irmã, mais velha dois anos. Costumavam viajar juntos, com os pais, e a irmã era uma companheira alegre, gostava de esportes radicais, enquanto ele era mais quieto. Seu hobby é o aeromodelismo. Entretanto, depois que Felipe entrou no seu círculo de amizades, ela se transformou. Agora, toda a atenção da irmã está voltada para o amigo ou namorado ou...Ah, deixa pra lá. Mas que ele é viciado, isso lá é. Perigoso. Não gosto dele. Puxa, mas como demora. Acho que vou tomar um táxi. Saindo do cibercafé, aguarda alguns instantes a passagem de um táxi, quando a irmã encosta o Twingo. .

— Me desculpa o atraso. O trânsito... — As palavras de desculpa se transformam num murmúrio ininteligível. O que ela deixa de falar é que a demora foi ainda maior devido ao fato de que ela e Felipe tiveram de jogar a sacola com as barras de ferro num terreno baldio, distante do centro.

Chegam em poucos minutos à própria casa. Já passa das quatro horas, o movimento na rua é nenhum.

— Ué, as luzes estão acesas. — Ela observa, ao encostar o carro no meio fio. — Melhor não entrar, pode ser que haja assaltantes lá dentro. — Com fingida naturalidade, usa o celular para chamar a polícia. Quando chega o carro com os agentes da ordem, os dois irmãos entram com eles. Constatando irregularidades — a porta da entrada apenas encostada, objetos caídos no chão — sobem até o andar superior. Mais constatações de violação da casa no escritório. Entram no quarto do casal, onde deparam com a chocante cena do crime.

Declarações do delegado de polícia Dr. Douglas Santoro, à mídia,

em entrevista após o esclarecimento do crime.

— Percebi logo que não se tratava de latrocínio, por diversas coisas estranhas, no local do crime. — A casa não estava arrombada, o alarme não fora acionado. A papelada espalhada na biblioteca nada tinha a ver com a procura de dinheiro ou jóias. Completamente fora de lugar. A falta de impressões digitais mostra que o crime foi planejado. O fato de os rostos estarem cobertos com toalhas úmidas leva a duas constatações: os criminosos são conhecidos das vítimas, e há intenção de confundir a hora do crime. Tudo leva a crer num crime planejado com muita antecedência e muita acuidade.

— Por outro lado, a conduta da moça foi também completamente destituída de disfarce. Apesar de mostrar-se muito triste, chorando demais durante o enterro dos pais, ela foi surpreendida pelos investigadores que apareceram para uma vistoria na casa: a moça, o irmão Peter, o namorado Felipe e um casal de amigos se distraiam alegremente à beira da piscina.Cantarolavam e ouviam música que, evidentemente, não era nada fúnebre. Dois dias depois, o casal de namorados foi até o sítio da família, no interior de S. Paulo, onde comemoraram alegremente os 18 anos de Regine. Na faculdade, os colegas se intrigaram com seu comportamento: mesmo dispensada de assistir às aulas, fez questão de comparecer. Dois dias após o crime, chegou a fazer uma palestra.

— Igor deu bobeira. No dia seguinte, apenas 10 horas após o crime, adquiriu uma moto Suzuki por 3.600 dólares, que pagou com notas de cem dólares. Detetives do distrito policial onde as investigações estavam sendo feitas, passaram em frente à casa de Igor, viram a moto e, desconfiados, descobriram que acabara de ser adquirida. A prisão de Igor, suas declarações confusas e, finalmente, a confissão na participação do crime nos levaram à solução do caso.

— A moça estava sob forte jugo do namorado. A droga era o elemento de dominação. Mesmo assim, nada poderá atuar em seu favor. — Apenas o fato de poder ter sua pena atenuada em dez anos, por ser menor de 21 anos. Como manda a lei....Hoje, vamos fazer à reconstituição do crime. Assim, teremos todas as provas de que necessitamos para trancafiar os três por muitos e muitos anos na cadeia.

Na tarde de sábado é feita a reconstituição do crime. Tudo é minuciosamente esclarecido. Inexplicavelmente, as armas usadas não foram localizadas. A frieza dos assassinos, nas suas confissões, impressionou até mesmo os mais experimentados agentes da polícia.

O jovem Peter, também presente na reconstituição dos fatos, mostrou-se afável com todos, principalmente com a irmã. Conversou com Igor e Felipe, naturalmente, como velhos amigos. Consolou a irmã, nas suas crises de choro. Os rapazes se exasperaram com a fraqueza de Regine. Depois de todas as formalidades legais, foi permitida aos acusados uma conversa particular com Peter.

— Prometo que estarei sempre ao lado de vocês. — Peter os animou. — Vamos contratar um bom advogado. Tudo vai acabar bem. — Foi até o móvel da copa e voltou com uma caixa de bombons, da marca preferida de Regine . Ofereceu-os à irmã e aos rapazes. Os três comeram quase todos os bombons.

Terminada a reconstituição e a rápida conversa íntima, os irmãos Igor e Felipe são colocados na parte traseira do camburão. Regine foi em outra viatura, algemada à agente Celina. No meio do percurso, Regine começou a sentir fortes cólicas abdominais. Gemendo e estorcendo-se de dor, pediu para ser levada a um hospital. Celina, a princípio, pensou que era uma finta da assassina, mas em vista dos estertores da moça, concordou em levá-la ao hospital mais próximo – que não era tão próximo assim.

Comunicou o fato à delegacia, que lhe deu permissão para o procedimento. Ao chegar ao hospital, Regine não conseguiu caminhar. Suava muito e gritava de dor. Colocada na maca, não resistiu ao mal que a acometia: morreu no corredor, antes de receber qualquer medicação.

Os irmãos, trancafiados na parte traseira do camburão, começaram a sentir dores no estômago ao mesmo tempo. Bateram com os punhos algemados na parede divisória de metal, que separava o cubículo no qual se encontravam da parte dianteira, onde os dois guardas conversavam animadamente.

— Tião, será que estou ouvindo um barulho vindo aí de trás?

— Esses caras estão querendo nos aporrinhar. Deixa pra lá.

E voltaram à conversa interrompida.

Por mais que batessem na parede de metal e gritassem de dor, não obtiveram resposta por parte dos dois vigilantes. Num instante de lucidez, Felipe conseguiu compreender o que se passava:

— Os bombons! Aqueles bombons estavam envenenados!

Ao chegarem à delegacia de polícia, grotescamente embolados no cubículo da viatura policial, ambos estavam mortos.

Antonio Roque Gobbo —

Belo Horizonte, 19 de dezembro de 2002 -

CONTO # 193 DA SÉRIE MILISTÓRIAS .

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/05/2014
Reeditado em 08/05/2014
Código do texto: T4793168
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