ENTRE QUATRO PAREDES
O final definitivo do filme “Entre Quatro Paredes”,
— Pára com isso, Charles! O que passou, passou. Agora que tudo terminou, toca a vida pra frente, esquece o que passou.
— Eu sei, James. Mas desde aquela noite, não tenho mais um momento de sossego. As imagens me perseguem, a culpa não me abandona. Não sei quanto tempo vou agüentar.
— Olha, já se passaram mais de seis meses, tudo voltou ao normal.
— Para você, para Rose, para Sandra, sim, está tudo bem. Mas eu sei de mim. Nada voltou ao normal. Estou à beira de um colapso.
Os irmãos conversam aos cochichos. Estão fazendo o breakfast no restaurante de James e cercados por gente de todos os lados. Ao burburinho das pessoas acrescem-se o som de música de rádio e todo o barulho de um local movimentado. O Camden’s Bestfood à hora do café da manhã está cheio de fregueses, mas seu proprietário, James Wilkson, deixa por uns momentos seus negócios a fim de conversar com o irmão, enquanto ambos tomam a primeira refeição do dia.
— Charles, Charles! Toma cuidado. Por que você não tira umas férias? Você e Rose, façam uma viagem. Procure se distrair, mano.
— Você tem razão, vou pensar no assunto.
A bem da verdade, ele já pensara em sair, até em mudar de Camden. Foi quando lhe veio a idéia de eliminar Richard.
— Charles, não agüento mais! Em todo lugar aonde vou, lá está ele. Com aquele sorriso...
— Eu também vejo nosso filho sempre, Rose.
— Não, não estou falando de Peter. É o Richard. Ele aparece em todos os lugares em que me encontro. Chega a sorrir pra mim. Ele está me perseguindo! — Rose está apavorada. —É preciso que você dê um jeito nessa situação.
O casal não se conformava com os trâmites legais e a morosidade do processo. Richard matara Peter quando este o impedira de entrar na casa de Sandra. O crime brutal comoveu a pequena comunidade de Camden, mas através de filigranas legais, o crime fora desqualificado, Richard (ou melhor, seu pai, o poderoso proprietário da STOUT FISH) pagara a fiança e esperava, livre, pelo julgamento, que ocorreria dentro de oito, talvez dez meses.
Richard fora marido de Sandra, com a qual tinha dois filhos. Ela pediu e obteve o divórcio. Após algum tempo, Sandra e Peter iniciaram um namoro não aprovado pelos pais do rapaz.
— Você tem de continuar os estudos. Não pode se envolver com essa mulher, ainda mais com dois filhos e o ex-marido, um marginal que vive às custas do pai. — A mãe era incisiva, não concordava com o romance e não deixava o filho sossegado. Peter passou a ficar dias e noites com Joe Fisher, no barco deste, ajudando-o na pesca de lagostas.
A rotina continua para os demais habitantes de Camden, pequena cidade nas costas do Maine. Os pescadores continuam fornecendo lagostas gigantescas para os famosos restaurantes da região enquanto que a STOUT FISH segue sendo a responsável pela maioria dos empregos dos trabalhadores da localidade. O jogo de pôquer aos sábados à noite no trapiche, no barraco de Jack “Lobster” também é uma rotina inalterada da qual participam, além do anfitrião, os irmãos Charles e James e Joe “Fisher” Keller.
Charles não deixou de freqüentar a roda de amigos nem mesmo após o assassinato do filho. Era uma das formas de passar algumas horas com os pensamentos longe da realidade. Entretanto, estava se tornando inconveniente. Seus lances no jogo se tornavam cada vez mais demorados, hesitava em todos os movimentos e os companheiros se aborreciam. Vez por outra havia também deixado escapar palavras incoerentes, que revelavam o profundo drama de consciência em que vivia.
— Charles, Charles, cuidado, mano. Presta atenção no jogo. — O irmão o advertia, inutilmente.
Certa noite, Charles deixa escapar uma palavra que poderia revelar o crime que ambos haviam cometido. James se assusta, abandona o jogo, no que é acompanhado pelo irmão.
— O negócio é o seguinte, Charles: você está se deixando dominar pelo remorso, e isto não é bom. — Os irmãos, respeitáveis cidadãos de Camden, caminham lentamente na noite fria e úmida — Ou você muda de atitude, ou precisa se afastar de Camden. Se continuar dessa forma, vai acabar se dando mal.
Mais do que um aviso ou ameaça, as palavras de James eram uma verdadeira premonição do que estava para acontecer.
Após o assassinato de Peter em sua casa, Sandra se viu em dificuldades. O marido se negava a pagar a mesada e ela arrumou um emprego como caixa em uma drugstore. Foi lá que o doutor Charles a procurou.
— Como está indo?
— Como o senhor está vendo. Trabalho o dia todo, perdi a guarda dos filhos, que estão com os avós, o pai a mãe de Richard. Só permaneço em Camden esperando o julgamento de Richard, depois me mando. Vou pra Nova York, Miami, Califórnia, sei lá...E o senhor?
— Vou levando. Rose acha que sou o culpado da morte de nosso filho, acha que eu devia ter sido mais enérgico com ele, proibindo-o de encontrar-se com você.
— Eu compreendo. — À memória de Sandra ocorrem os principais lances do romance com Peter. Sua vida com o Richard fora um inferno. Mesmo divorciados, ele continuou assediando-a e nem admitia que ela tivesse outro namorado. Por diversas vezes Richard e Peter já tinham entrado em discussão, antes daquela fatídica tarde. Richard chegou exaltado, foi entrando de chofre na casa. Peter estava de passagem, eufórico ao anunciar-lhe que havia conseguido uma vaga como assistente no escritório de engenharia de renomado arquiteto. Estavam no quarto,no andar superior. Quando Richard entrou na casa, Peter desceu correndo a escada, enquanto ela mantinha os meninos no quarto. Ao ver Peter, Richard sacou do revólver e disparou. Atingido no rosto pelo disparo fatal, Peter rolou escada abaixo, levando de roldão o próprio Richard.
— Rose também não se conforma com a liberdade de Richard.— Continua o doutor. — Acha até que está sendo perseguida por ele. Me disse que o encontra em todos os lugares em que esteja. E continua me exigindo providências. Acha que eu poderia fazer mais.
— E o seu advogado, o que diz?
— É um burocrata, incapaz de ser flexível um milímetro além da letra da lei. Com o dinheiro dos Stout, Richard vai pegar uma pena leve. Cinco, dez anos, no máximo, de detenção.
— Por isso vou-me embora. Não conseguiria viver na mesma cidade onde o pai de meus filhos, culpado de um assassinato premeditado, estaria livre para, quem sabe, me assediar novamente.
A amargura de Rose não tem fim. Abandonou o trabalho (era professora de música na High School de Camden) e passa os dias em casa, fumando e fumando, revendo as fotos do filho nos quadros, nos porta-retratos espalhados pela casa, nos álbuns de fotografias. Não perdoa ninguém, nem a si mesma.
Eu também sou culpada. Se tivesse exigido de Charles uma atitude mais firme...Se tivesse telefonado para a polícia naquela manhã em que Peter chegara com o rosto cortado na sua primeira briga com Richard... Se não tivesse acolhido Sandra com amizade... Se...Se...Mas, de verdade, o culpado é Charles Ele é um frouxo, covarde. Agora, tem obrigação de remediar o mal. Ele é o maior culpado de tudo.
Já não cumprimenta o marido. Numa atitude infantil, age como se ele não existisse. Mas, ao mesmo tempo, cobra-lhe uma atitude.
— Faça alguma coisa, homem! Já que não soube defender nosso filho desse bandido, aja agora, resgate a memória de Peter.
— Fazer o que, Rose? Você estava comigo ns diversas vezes em que visitamos nosso advogado, e sabe de como tudo está tão moroso. O dinheiro de Stout fala mais alto.
— Sei lá, você é quem deve achar uma solução. Mas fica aí parado.
Charles ouvia a mulher. É como se ela estivesse me dizendo: “Faça justiça com suas próprias mãos”.
Rose estava particularmente amargurada no fim-de-semana em que passaram na propriedade rural de James. À mesa da refeição, só faltara acusar o marido de ser o autor do assassinato do próprio filho.
— Pára com isso! Você já está passando dos limites! Vamos acabar malucos, nós dois, com essa sua amargura, incompreensão. Abra os olhos para a vida, para a realidade.
No dia seguinte, um domingo esplendoroso, James leva Charles para um giro pela propriedade.
— São cerca de cem hectares totalmente cobertos de mata virgem. Intocada. Aqui só se pode tirar lenha para consumo próprio. E só das árvores que caem naturalmente. Não se corta nenhuma árvore. — Orgulhosamente, mostra a mataria fechada. — Tem uma família inteira de alces que vive por aí. E o córrego é abundante em trutas. Pescar é permitido, mas caçar, jamais.
Ali, na sombra densa da floresta, ouvindo somente o barulho de pequenos animais e o vento passando por sobre s copas das árvores, Charles achou como pôr em prática sua idéia.
— Só quero que você me empreste as chaves da propriedade num fim-de-semana.
— Que está planejando? — Desconfiado, James reluta em atender ao pedido do irmão. — Você não está pensando em nada perigoso, hein?
— Sim, estou pensando em algo muito perigoso. Perigoso e fatal. Para o assassino do meu filho.
James, no intuito de demover o irmão da empreitada, fica sabendo dos planos de Charles.
— É impossível você fazer tudo sozinho.
— Então me ajude.
Charles está decidido e arrasta James para a execução do plano. Um plano bem elaborado, em teoria.
Comprou a passagem da Amtrack para Nova York, no trem que passa pela madrugada, às quatro horas. Sábado à noite é a ocasião ideal. Richard gerencia um bar nas cercanias da cidade, que ele fecha usualmente pelas três da manhã aos sábados e só reabre na segunda à tarde. Sua ausência só seria notada na noite de segunda-feira.
Sábado de madrugada. Richard é o último a sair do bar. Sozinho. Charles o espera no estacionamento. Surgindo das sobras e sob a mira de um pequeno revólver, obriga o assassino do filho a entrar na Ranger de Richard. Força-o a dirigir até seu apartamento.
— Tire duas malas e enche de roupas leves. Você vai para o Sul.
Richard suspira, aliviado. Mas sabe das conseqüências de uma fuga, ainda que aparente.
— Para onde quer que eu vá, a polícia vai me encontrar.
— Não, não vai encontrá-lo onde você vai ficar.
Ao saírem do apartamento, Charles deixa o envelope das passagens, vazio, sobre uma mesinha. Novamente na camioneta de Richard, força-o a dirigir por um caminho entre a floresta de pinheiros.
— Mas este não é o caminho do aeroporto. — Richard até então pensava que iria viajar de avião.
— Cala a boca e dirige. Em frente, com cuidado e sem tentar nenhuma sacanagem. — As palavras do doutor Charles mostram sua ira e sua decisão. Richard está apavorado.
— Entra por essa estrada à esquerda. — Richard obedece e logo chegam à propriedade de James.
— Desça. — Charles está cada vez mais tenso, nervoso. Ao chegarem próximo à casa, James vem ao encontro dos dois, com uma lanterna. Vê distintamente quando Charles dá o primeiro disparo.
— Meu Deus, Charles! Não foi assim que combinamos!
— Não agüentei. Este bandido não merece nem mais um minuto de vida. — Aproximando-se do corpo encolhido no chão, faz mais três disparos. É como se em cada disparo descarregasse todo o ódio contido naqueles meses de angústia e sofrimento.
Charles e James carregam o corpo para dentro da mata. Em um lugar previamente escolhido, abrem uma cova e dentro colocam o corpo. Enquanto trabalham, ouvem um ligeiro ruído. Estacam por um momento: é apenas um cervo que passa a alguns metros, assusta-se com os dois homens e sai em desabalada carreira, mata adentro.
De volta à cidade, Charles dirige a camioneta de Richard, que deixa estacionada no pátio de estacionamento ao lado da estação ferroviária. Faltam doze minutos para quatro horas, tempo hábil para qualquer passageiro tomar a composição da madrugada. James aguarda o irmão em seu carro. Charles desce a dois quarteirões de sua residência.
O desaparecimento de Richard não surpreendeu a polícia. O rapaz, habitualmente violento, estava atravessando uma fase de instabilidade emocional. Simplesmente fugira. O plano de Charles fora perfeito e a polícia passa a procurar o fugitivo Richard Stout, que está bem enterrado na floresta do Maine.
Mas o que parecia ser a solução ideal para os pais de Peter, tornou-se, na verdade, um pesadelo para Charles. Acossado pelo remorso, vai definhando. Ter-se livrado de Richard em nada melhora seu relacionamento com Rose. Muito ao contrário. A esposa, instigadora de toda a trama, não lhe tem mais respeito. Continua acusando-o de incompetente, inábil e frouxo. O irmão fica chateado toda vez em que se encontram, pois Charles insiste em falar da madrugada em que matou Richard. No jogo, comporta-se indiscretamente. No trabalho, vai se deixando dominar pelo desleixo e pela falta de interesse, a ponto de perder os clientes mais importantes.
Suas noites, Charles passa-as em claro. Nem mesmo os barbitúricos ajudam-no a repousar. Remoído pela lembrança da noite terrível, pelo remorso, vai definhando. Já se passaram nove meses do fato, a polícia não se esforça nas investigações, o caso está em ponto morto. Sandra continua trabalhando no drugstore, Rose voltou aos ensaios do coral na escola municipal. Há dois meses que as noitadas de pôquer, aos sábados, deixaram de acontecer.
Domingo de manhã. Charles levanta-se após mais uma noite de insônia. Magro, abatido, veste-se com aprumo para o serviço religioso. É uma inutilidade, ir à Igreja. Nem lá encontro conforto. Se pelo menos pudesse falar com alguém, com o pastor, o compreensivo Mr. Lawrence. Mas, não, não posso envolver mais ninguém nessa história. Estou acabado.
Dirigindo lentamente o carro, deixa que os pensamentos de desânimo e de arrependimento o envolvam completamente. Ao entrar na Main Street, segue na direção da Igreja, pela qual passa sem parar. Prossegue até o final do próximo quarteirão e estaciona defronte da Delegacia de Polícia. Desce do carro, sobe os degraus com passos indecisos e entra no recinto. Dirige-se ao policial de plantão.
— Quero falar com o detetive encarregado da procura de Richard Stout.
— É Ed McDonald. — Informa o policial na seção de Informações. – Pode entrar, siga pelo corredor, segunda porta à direita.
O doutor segue o caminho indicado. Encontra-se frente a frente com um homem baixo, muito ruivo, olhos vivos, ladinos.
— Ed McDonald? — Pergunta. O detetive concorda com um aceno de cabeça, sem falar nada. Indica-lhe uma cadeira, na qual o doutor se assenta.
— Vim lhe falar a respeito de Richard Stout.
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ANTONIO ROQUE GOBBO –
Belo Horizonte, 12 de março de 2002.
CONTO # 150 DA SÉRIE MILISTÓRIAS